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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Jorge Vieira, jogos antropomórficos como imagem de transmutação

Jorge Vieira, anthropomorphic games and image of transmutation

 

Prudência Antão Coimbra*

*Portugal, artista visual. Licenciatura em Artes Plásticas – Pintura (Escola Superior de Belas-Artes do Porto). Mestre em História da Arte Contemporânea em Portugal (Faculdade de Letras da Univesidade do Porto). Leciona na Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico do Porto.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Aqui se expõe como a representação do corpo humano, nos trabalhos de Jorge Vieira, se faz ou por hibridismos zoomórficos ou pela quase infinita exploração de possibilidades combinatórias dos "poucos" elementos intervenientes, tornando-se uma espécie de montagem de fragmentos, fundada na construção e desconstrução sistemática da sua unicidade e do seu sentido.

Palavras chave: corpo, hibridismo, surrealismo, primitivismo, metamorfose

 

 

ABSTRACT
Here is exposed as the representation of the human body, in the work of Jorge Vieira, becomes hybrid zoomorphism or the almost endless exploration of combinatorial possibilities of the "few" elements involved, becoming a sort of assembly of fragments, founded in construction and systematic deconstruction of its uniqueness and its meaning.

Keywords: body, hybridity, surrealism, primitivism, metamorphosis.

 

 

Introdução  

Jorge Vieira representa, na história da arte do século XX em Portugal, o momento em que a escultura se desliga claramente de uma produção "engajada" em modelos ideológicos de poder, responsáveis pela manutenção de uma produção estatuária indissociável de arquétipos passadistas, ancorados ao século XIX, servindo fins propagandísticos ou apologéticos do poder que a mantinha.  

Com efeito, a obra de Jorge Vieira rejeita a tradição da estatuária do Estado Novo, desenvolvendo-se estilisticamente segundo duas grandes vias, a abstraccionista e a surrealista e desenvolve características abrangentes e recorrentes ao longo do tempo: a escala intimista, o barro como material essencial, a presença do exotismo (primitivismo, iberismo e culturas arcaicas, populares e mediterrânicas), o valor simbólico da forma, a presença do corpo, etc.  

Neste texto propomo-nos abordar as metamorfoses da representação do corpo como forma de pensar e reinventar o humano.  

 

1. Jogos antropomórficos como imagem de transmutação

Nos anos cinquenta, Jorge Vieira inicia a sua pesquisa em torno da representação animal. Trata-se de um zoomorfismo antropomorfizado que vai crescendo no fascínio da estranheza das imagens produzidas.  

Com reminiscências evidentes das culturas primitivas, ou da arte popular, sobretudo do Norte do país, compõem-se em associações inesperadas, em que a anatomia humana se confunde e mistura com a do animal, em exercícios de deformação "expressionista". É o próprio autor que o confirma ao afirmar: "Como escultor sinto-me próximo da Rosa Ramalho, não me sinto próximo do Francisco Franco ou do Leopoldo de Almeida" (Vieira, 1981).  

É o encontro com a memória popular, presente no barro, e presa nas imagens de um inconsciente colectivo, que as tornam familiares no seu saber ser insólito.  

Com facilidade lembram as formas grotescas de Rosa Ramalho, de Rosa Cota ou de Mistério, artistas populares, para quem a arte não é dever de imitação da natureza (Figura 1). "Daí o excesso, a caricatura, o monstro, as formas grotescas que implicam um grau zero de fidelidade no que toca aos mecanismos miméticos" (Guedes, 1987: 13).

 

 

Rosa Ramalho, barrista do Minho, lamentava não poder trabalhar "só para a memória" e assim estabelecia o universo exacto da sua criação. Referindo o seu bestiário dirá: "Depois de prontos até me fazem medo […] ainda haverá destes bichos, lá por essas serras?" (Sousa, 1987:29) e a pergunta torna evidente que se está a dar corpo a um real só existente na natural ingenuidade da mente livre de saber literário (Bachelard, 1967: 8).  

Por isso, esse mundo de monstros se torna numa realidade imaginada (Figura 2). Ganha autonomia acrescentando à realidade realidades estéticas, coexistindo naturalmente com elas.  

 

 

Esta escolha, sublinho, intencional, deriva ainda de uma outra pesquisa em que o autor se embrenha, que o liga aos processos do surrealismo.  

Trata-se da referida busca de imagéticas primordiais, residuais nos povos primitivos, também presentes em sectores sociais sem acesso à erudição e portanto libertos dos preconceitos formais da história da arte do ocidente.  

Como outros artistas modernos, viu nos exemplos dessas manifestações artísticas uma possibilidade de fuga ao academismo e aos valores sociais nele implicados recorrendo ao primitivismo como um instrumento de crítica, tornando-o numa arma de contracultura, em oposição aos artistas do passado, mesmo próximo, que celebravam na arte, o colectivo, os valores institucionais da sua cultura ocidental (Krauss, 1966).  

Essa apropriação de imagens diversas, de princípios construtivos e de associação, foi também uma estratégia de Jorge Vieira para, simultaneamente, se libertar da tradição académica, ainda actual no quadro ideológico português, e do ideário dominante do neo-realismo, introduzindo indiscutível actualidade na produção escultórica nacional. Aproximou-se, deste modo, das vanguardas europeias dos anos cinquenta.  

Jorge Vieira embrenha-se, portanto, neste mundo de representações, procurando a estrutura ideológica que o sustenta. Nessa busca do processo metodológico para a criação, encontra a fórmula para libertar os sonhos, ou pesadelos, respeitando a sua condição de surrealista. Cria, pois, formas cujas partes, pertencendo a contextos diferentes, ou a diferentes entes, geram seres híbridos que não são nem animais personalizados nem pessoas animalescas mas novos seres, de um improvável mundo paralelo, que, no entanto, identificamos como possível. Tornam-se verdadeiros, no sentido que lhes dá Deleuze, ao caracterizar o ideal nietzischeano de arte:  

 

A arte inventa precisamente mentiras que elevam o falso ao mais alto poder afirmativo, faz da vontade de enganar qualquer coisa que se afirma no poder do falso. […] Então, verdade pode ter uma nova significação. Verdade é aparência. […] Em Nietzsche, nós, os artistas = nós os que procuramos conhecimento ou verdade = nós os inventores de novas possibilidades de vida (Deleuze, s/d: 155)

 

Da mesma forma, nos trabalhos dos anos oitenta, em que o único tema é a figura humana, o corpo sofre múltiplas intervenções, numa variada e quase infinita exploração de possibilidades combinatórias dos poucos elementos intervenientes, tornando-se, uma espécie de montagem ou construção de fragmentos, "construção biomórfica como imagem de transmutação" (Krauss, 1966: 39).  

Essa acção sobre o corpo pode assumir diferentes formas, como por exemplo as deslocações de partes, ablações, torções, inclusões, associações, decapitações/ amputações / desmembramentos, e ainda hibridações.  

As "deslocações" de partes do corpo quebram a unicidade, a integridade física do humano, parecendo que são as suas diferentes parcelas a adquiri-la. Ganhando autonomia deslocam-se para novos lugares criando ambivalências de leitura pela ambiguidade da imagem assim criada. É uma questão de Gestalt, mas é também mais do que isso. A desarticulação da estrutura alerta o observador para a impossibilidade da análise, de uma interpretação global. Nessa brecha se insinua a metáfora, se impede a interpretação e se cria lugar à poesia: explora a similitude das formas que permuta e associa, num processo de descontextualização e assim recria constantemente a identidade corporal – o redondo dos "seios" pode substituir o dos "olhos."  

Mas para além dessa questão de jogo formal deve considerar-se um outro, lúdico, muito mais surrealista, que naquele se funda. É o jogo simbólico assim criado. Quase sempre originando leituras erotizadas a partir da quebra de sentido lógico produzido – o redondo dos seios ocupa o lugar do redondo dos olhos, que observam e desejam os mesmos seios.  

Da mesma forma as "ablações" (entendidas como a supressão de partes do corpo) geram novos entes, de estranheza surrealizante, e formalmente surpreendentes, não por causa das formas ou das imagens, mas pela relação criada entre formas e imagens, ou impossibilidade dessa relação.  

O sentido de humor é neste caso levado ao extremo. Estas imagens podem considerar-se completas se pensarmos na expressão do senso comum "ter pés e cabeça". Com efeito todas elas, seja qual for a ablação a que foram submetidas, têm sempre pés e cabeça.  

Associadas às anteriores surgem as "torções", sobretudo do eixo organizador da figura humana, importantes nesse processo de desarticulação e recriação da estrutura e composição dos novos "seres" que redefinem as relações entre a realidade do corpo e as condições de existência da "forma" (Figura 3).

 

 

Em todos estes casos nos encontramos perante a concretização do desejo de Artaud do corpo sem órgãos. Com efeito, à medida que a figura se deforma e transforma, sujeita a essas estratégias metamórficas, dilui-se o organismo, para, na falha da anatomia redescobrirmos o corpo. Corpos que em Jorge Vieira respondem ao "Porque não andar com a cabeça, cantar com os seios, ver com a pele, respirar com o ventre [ …]" (Deleuze, 2007: 200).  

As três restantes formas de intervenção sobre a imagem do corpo não se assumem como metamorfoses, na medida em que não se organizam intrinsecamente numa coerência unitária, mais ou menos deformada. Pelo contrário, nelas se mantém e identifica a imagem tradicional da representação da figura humana.  

As associações relacionam elementos (muitas vezes o mesmo elemento) organizando-os segundo princípios não canónicos do discurso figurativo. Estabelecem relações não ilustrativas ou narrativas entre as figuras e o facto visual. A estranheza, não está agora na insólita coesão formal dum novo ser produzido, mas na constatação da distinção das individualidades intervenientes e na ausência de uma lógica imediata para a sua associação. Tal facto é que remete para estranhas interpretações (Figura 4).

 

 

As decapitações / amputações / desmembramentos perturbam porque desarticulam, de facto, uma unicidade indestrutível do ponto de vista quer sagrado, quer filosófico quer ainda sensível – o corpo humano e consequentemente o conceito de homem. Um corpo "retalhado" é um cadáver, perde a qualidade de ser que lhe é dado pela vida. No entanto, estas figuras não são ainda cadáveres pois, "retalhadas, fragmentadas, divididas [estão] todavia inteiras" (Listopad, 1981) (Figura 5).

 

 

Esclarecendo essa impossibilidade de ser ser, recorre-se agora às palavras de Jean Paul Sartre, que comenta, exactamente a capacidade de Giacometti revelar a vida que há no ser, bem como em preservar e evidenciar tal unidade nos seus trabalhos:

Da árvore pode-se isolar um ramo que balouça; mas do homem é impossivel isolar um braço que se levanta ou um punho que se fecha. O homem é a unidade indissolúvel e a origem absoluta dos seus próprios movimentos. Permanecendo aí, o homem é um mágico de sinais; os sinais prendem-se-lhe aos cabelos, brilham nos olhos, dançam entre os lábios, empoleiram-se na ponta dos dedos; ele fala com todo o corpo: se corre, fala; se pára, fala; se adormece, o seu sono é a palavra. […] É preciso que [o escultor] inscreva o movimento na total imobilidade, a unidade na multiplicidade infinita […]' (Sartre, 1971: 258).

Espécie de ex-votos alguns desses trabalhos parecem reunir destroços, fragmentos que sugerem objectos encontrados. Noutros, sobretudo as decapitações, apontam para leituras de possíveis e complexas problematizações existenciais (Figura 5).

 

Conclusão  

Jorge Vieira, liberta-se do academismo, partindo de estratégias formais próximas das culturas primitivas e popular, integra princípios do surrealismo que o levam a considerar a figura humana como um meio de reflexão ideológica e existencial, concretizada no hibridismo e na metamorfose do corpo das figuras que constrói. Cria, desta forma, uma imagética própria e única nos meados do séc. XX em Portugal, acertando-se com a vanguarda europeia do seu tempo.

 

Referências  

Bachelard, Gaston (1967) La Poetique de l'espace. Paris: PUF, 1967.         [ Links ]  

Deleuze, Gilles, (s/d) Nietzsche e a Filosofia. Lisboa: Res. p. 155- 300.         [ Links ]  

Guedes, Maria Estrela (1987) "Olhar de Soslaio" in Sousa, Ernesto (eds) Itinerários. Porto: Casa de Serralves, Setembro, p.13-30.         [ Links ]  

Krauss, Rosalind (1996) La originalidad de la Vanguardia y Otros Mitos. Madrid: Alianza Editorial.         [ Links ]  

Listopad, Jorge (1981) (s/t) Diário de Notícias. 24 de Novembro.         [ Links ]  

Rodrigues, Rogério (1981) " Jorge Vieira 'Próximo de Rosa Ramalho'", JL.         [ Links ]  

Sartre, Jean-Paul, (1971) Situações III. Lisboa: Europa América.         [ Links ]  

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: prudenciacoimbra@gmail.com (Prudência Coimbra).

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