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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Joana Vasconcelos e Rafael Bordalo Pinheiro: uma relação "à flor da pele"

Joana Vasconcelos and Rafael Bordalo Pinheiro: a "skin-deep" relationship

 

Alexandra Cabral*

*Portugal, design de moda. Frequenta o doutoramento em Design (vertente Moda) na Faculdade de Arquitectura de Lisboa (FAUTL). Mestre em Design de Moda (FAUTL) Licenciada em Arquitectura de Design de Moda (FAUTL).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
O recurso ao ready-made e à moda tem sido recorrente na obra de Joana Vasconcelos. As faianças de Rafael Bordalo Pinheiro são recicladas pela artista através do revestimento a croché, de modo a destacar a crítica social que este faz. As peças do ceramista adquirem assim uma segunda-pele e, com ela, novas leituras, porque o têxtil é, em si, portador de significados.

Palavras chave: Joana Vasconcelos, Rafael Bordalo Pinheiro, Croché, Arte Contemporânea, Autoria.

 

 

ABSTRACT
Ready-made and fashion have been used in Joana Vasconcelos' work as constant resources. The artist recycles Rafael Bordalo Pinheiro's animal shaped faience figures, by fully covering them in crochet, so as to enhance his peer's social critique. Thus, the ceramist's art pieces acquire not only a second-skin but also new readings, since the textile is, in itself, bearer of meanings.

Keywords: Joana Vasconcelos, Rafael Bordalo Pinheiro, Crochet, Contemporary Art, Authorship.

 

 

Introdução  

Rafael Bordalo Pinheiro incutiu cariz artístico no ramo industrial das faianças, no âmbito da Arte Nova, seguindo a mesma tendência de William Morris, que fundou o Grupo de Artes e Ofícios para preservar o artesanato em circunstâncias de produção colectiva. A desvalorização do artesanato face à produção industrial e a validade das obras de arte reprodutíveis são assim questões levantadas desde o surgimento da reprodutibilidade técnica, posteriormente escrutinada por Walter Benjamin. Actualmente, a técnica permite evidenciar o valor acrescentado do artesanato no próprio design, nas vertentes etnográficas e culturais. Artistas como Joana Vasconcelos usam objectos dos dois universos, reciclando-os em recontextualizações artísticas. No caso das faianças decorativas de Rafael Bordalo Pinheiro, a artista fá-lo com recurso ao ready-made e à moda. O revestimento a croché confere um novo carácter estético às peças, através de significações de segunda-pele, como podemos observar em Cleópatra (2009) ou Mamba (2012). A escultora, nascida em Paris em 1971, está entre os artistas nacionais mais internacionalizados. Do percurso mais recente, destacamos a exposição no Palácio de Versalhes (2012), onde obras que integraram faianças de Rafael Bordalo Pinheiro estiveram presentes, nomeadamente em Le Dauphin et La Dauphine (2012). Também é de referir que Joana Vasconcelos foi convidada para representar Portugal na Bienal de Arte de Veneza 2013.  

 

1. Naperonizando…  

Joana Vasconcelos possui três linhas mestras com que orienta a sua produção artística (Cunha, 2005). A primeira foca o tema do consumismo e da urbanidade, da banalidade dos objectos do quotidiano. A segunda diz respeito à mulher, ao carácter da sua existência na sociedade, segundo uma postura anti feminista. A última relaciona-se com o Novo Realismo, ou seja, assuntos sociais e políticos. As duplas leituras, em que vários assuntos se misturam, são, no entanto, características distintivas da sua obra. Na relação «à flor da pele» com Rafael Bordalo Pinheiro, Joana Vasconcelos consegue conjugar as duas últimas, sem se afastar da primeira. Atavios pouco urbanos a que nos prendemos são eles, para além do croché, também figuras de loiça. A artista já nos habituou a trazer a público o universo privado, dando visibilidade a objectos ou práticas do mundo globalizado, usando assim tampões, panelas, garfos ou garrafas de vidro. Com a utilização das faianças de Rafael Bordalo Pinheiro como ready-made, acaba por colocar a esfera pública no universo privado, aludindo ao consumo de bibelots relativos a determinados animais, que ela própria faz questão de naperonizar (Figura 1). Esse termo que inventa traduz o acto de revestir, forrar objectos para embelezá-los ou preservá-los, como se tal gesto proporcionasse um sentimento de conforto: uma maneira portuguesa de dependência a determinadas coisas que nos fazem sentir melhor, apesar de não resolvem as nossas vidas (Cabral, 2010:150). É esse gesto que coloca em destaque a utilização da obra de Rafael Bordalo Pinheiro, porque a artista sabe, tal como o ceramista sabia, que ao proteger animais através da sua arte, tal não impede os seus maus-tratos (apesar de delatá-los). A nova estética serve de alerta para uma realidade menos bela, pois ficamos sem saber o que pensar da nossa condição.

 

 

É o gesto de naperonizar que conjuga a produção em série com a produção artesanal, na obra de Joana Vasconcelos. Esse processo é também, em si, uma ânsia incontida que destaca uma aproximação ao ceramista que a mesma venera. Ao contrário do que diz sobre a sua obra, "quando pego nos objectos não os transformo, utilizo e massifico. O pequeno toque é o que faz as pessoas darem-lhe outros significados" (Nobre, 2007), aqui Joana Vasconcelos pega e transforma, sem massificar. O pequeno toque é, neste caso, uma pequena contradição, pois a subtileza de escolher padrões específicos para determinados animais, revela uma atitude deliberada na caracterização da sua personalidade (Cabral, 2012: 264). Por usar uma técnica artesanal, o croché, cada obra acaba por ser ligeiramente diferente da anterior. Que diferenças identificamos nos lobos Garibaldi (2012), Rabelais (2011) ou Blue Night (2008), todos eles resultantes da naperonização de peças de faiança idênticas? Conceptualmente poucas, mas analisadas à lupa, mais do que as que conseguimos identificar entre Marilyn (2009) ou Dorothy (2007), sapatos-esculturas feitos de tachos, obras 100% reprodutíveis. No croché, diz-nos Joana Vasconcelos, "há peças que têm uma forma estranha, portanto até na forma podem ser diferentes" (Cabral, 2010: 238).  

O acto de cobrir a croché não dissimula apenas, mas transforma verdadeiramente a peça original, sem no entanto encobrir a sua origem. É talvez esse o motivo pelo qual esta vertente da sua obra não tenha estado presente na sua retrospectiva Sem Rede (2010) no Centro Cultural de Belém. A esse respeito, "a exposição teve todo o cuidado com a organização e com a escolha das peças (…) [e com] a opção de excluir as obras em croché" (Bieger, 2011: 72). Por outro lado, se os objectos não se transformam em obras de arte, o que se altera é a forma como os vemos, como se lhes déssemos a oportunidade de terem um novo uso (Nobre, 2009: 33-34), e aqui Joana Vasconcelos incute-nos, sem dúvida, essa necessidade de releitura dos mesmos. Pensemos em Rafael Bordalo Pinheiro e na técnica magistral da sua arte, revelada pela superfície do vidrado, realista e vibrante, dando «vida» aos animais que molda em cerâmica. Por que os cobre então Joana Vasconcelos? Julgamos que os detalhes são suprimidos para darem lugar de destaque à forma, reciclando a necessidade de criticar actos sociais que nunca deixaram de existir. A aparência das obras naperonizadas assemelha-se àquela das obras marcadamente exuberantes, em que "Joana Vasconcelos opta pelo oposto da beleza ou da bela aparência, reivindicando, ao fazê-lo, uma estética da fealdade" (Vasconcelos & Lageira, 2007:27). Atrai-nos, desse modo, ao consumismo de algo que tem realmente valor: objectos que representam coisas que não conseguimos controlar (Almeida, 2008:36), mas que insistimos em dominar – reproduzindo assim a postura acutilante e certeira que o ceramista teve perante a sociedade da sua época.  

Esta questão do domínio, revelada através do croché, está, na obra de Joana Vasconcelos, intimamente relacionado com a sua crítica ao feminismo, embora a artista acabe por, em alguns momentos, apoderar-se dele, quando, na obra Super Napron (2005) reveste (subliminarmente) um homem a croché. Esse poder, de quem subjuga outro ao seu desígnio, pode também ser interpretado como maternal, transposto para a protecção dos animais que atacamos. Assim, tanto as loiças como os bordados que são hoje obsoletos, parecem afinal ser reveladores de determinada inteligência e saber técnico. A própria artista interroga-se sobre o poder do croché, dizendo: "Comecei por explorar esta técnica usada pelas mulheres sempre em bordadinhos e questionei-me: por que razão este material, pouco nobre, não pode ganhar nobreza?" (Rodrigues, 2009: 50).  

Contudo, o objectivo de Joana Vasconcelos em "trasladar a low culture à high culture, ligando uma coisa banal, quotidiana e sem valor, ao conceito de escultura contemporânea" (Rúbio, 2007: 45) é, no caso da adaptação das obras de Rafael Bordalo Pinheiro, redundante, pois as peças desse artista eram mais do que simples peças decorativas. Aqui não é a nossa cultura, expressa através da moda (acto de vestir) que está em destaque, mas é a que nos toca através da cerâmica: aquilo que faz realmente parte da nossa identidade revela-se na contribuição de Rafael Bordalo Pinheiro (Bieger, 2011: 66). O trabalho feminino de outrora, nomeadamente o de bordar, era uma forma de expressão dentro de casa, traduzindo uma produção intimista de mulheres que poucas hipóteses tinham de se expressarem socialmente. No entanto, as peças que revestem as cerâmicas são compradas nas feiras, podendo ser reproduções de motivos veiculados por revistas, porque o croché é, afinal, uma técnica global. A biblioteca têxtil do atelier de Joana Vasconcelos, organizada por caixas etiquetadas por cores e tipos de materiais, condiz com a diversidade de figuras de cerâmica à espera de serem revestidas, e por momentos esquecemo-nos que estamos num atelier de uma escultora (Cabral, 2010: 164). Estará a artista a apegar-se a atavios pouco urbanos, mas que a fazem sentir-se melhor?  

 

Conclusão  

Nas fronteiras indefinidas da arte contemporânea podemos usar o ready-made, incorrer na facilidade da técnica, incutir a originalidade através de uma roupagem. O papel da criatividade na arte contemporânea está, repetidamente, na reciclagem de ideias e materiais pré-concebidos. Assim, as fronteiras daquilo que é autoral ou copiado, reconvertido ou transformado, parecem estar patentes numa abordagem de curadoria, aqui explorada por Joana Vasconcelos. A relação "à flor da pele" pode ser também uma relação à flor da nossa pele, enquanto artistas, de encontrarmos um caminho na arte.  

O croché inverte a crítica social, relativamente à da época de Rafael Bordalo Pinheiro. O papel masculino, da protecção, foi substituído pelo feminino, maternal. É novamente uma crítica ao feminismo, habitual em Vasconcelos, mas com âmago de crítica ao sistema social em que vivemos, e não como crítica ao feminismo em si. Por outro lado, na relação "à flor da pele" com Rafael Bordalo Pinheiro, Joana Vasconcelos revela-se, tal como ele, em Zé Povinho. O ceramista, embora não se identificando com a estatueta, faz parte do universo a que ela alude. Igualmente, numa relação de amor-desamor, Joana Vasconcelos leva as cerâmicas naperonizadas a Versailles, fazendo-nos novamente a caricatura: mostrando que continuamos pitorescos, mas iguais a nós próprios. E a relação de "co-autoria" entre Joana Vasconcelos e Rafael Bordalo Pinheiro é assim… desvendada.

 

Referências

Almeida, J P (2008) 'Não Conheço Ninguém Como Eu', ARTES & LEILÕES, Artes & Leilões, Sociedade Editorial S.A., Lisboa, Issn 1646-8139, 10 (Set), pp.34-37, 4p.  

Bieger, I (2011) Paradigmas do Feminismo e da Educação pela Arte: O Caso Joana Vasconcelos. Tese de Mestrado. Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.         [ Links ]  

Cabral, A. (2010) Moda e Obra de Arte Contemporânea: Processos, Percursos e Contaminações na Obra de Joana Vasconcelos. Mestrado. Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa.         [ Links ]  

Cabral, A. (2012) 'Joana Vasconcelos: Contaminações entre Escultura e Moda', Revista Estúdio, vol.5, pp.260-268. Lisboa: Centro de Investigação e de Estudos em Belas Artes, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.         [ Links ]  

Cunha, N (2005) 'Joana Vasconcelos', DOMINGO MAGAZINE, suplemento do Correio da Manhã, Presslivre S.A, Lisboa, 9493 (22 de Maio) pp.28-34, 7p, ].[Consult. 2009-03-15] Disponível em URL: http://www.joanavasconcelos.com  

Nobre, S (2007) 'Lugar de Passagem', TABU, suplemento do semanário Sol, Newshold S.A, Lisboa, (24 Fev) 3p., ].[Consult. 2009-03-15] Disponível em URL: http://www.joanavasconcelos.com  

Nobre, S (2009) 'Ninguém me Leva a Sério', TABU, Newshold S.A., Lisboa, 121 (3 Jan) pp.32-38, 7p.  

Rodrigues, C S (2009) 'Joana Vasconcelos, Quinze Anos a Trabalhar', NOTÍCIAS MAGAZINE, suplemento do Diário de Notícias, Controlinveste Media SGPS, S. A., Lisboa (Mar) p.50, 1p.  

Rubio, A P (2007) 'Do Micro ao Macro e Vice Versa', in: Adiac Portugal: Corda Seca, Joana Vasconcelos, pp.38-61.         [ Links ]  

Vasconcelos, J & Lageira, J (2007) Joana Vasconcelos, Adiac Portugal: Corda Seca, Lisboa.         [ Links ]

 

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: cabral.fashion@yahoo.com (Alexandra Cabral).

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