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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Processo e Conceção Escultórica – a propósito de alguns desenhos de Salvador Barata Feyo

Process and Conception in Sculpture – Apropos Some of Salvador Barata Feyo Drawings

 

Raquel Pelayo*

*Portugal, artista visual. Doutorada em Ciências da Educação, mestre em História de Arte, licenciada em Artes Plásticas – Pintura. Professora na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e investigadora no i2ads – Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade da mesma Faculdade.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
A partir de cinco desenhos preparatórios de Salvador Barata Feyo reflete-se sobre o papel do desenho no processo criativo da escultura.

Palavras chave: desenho, processo criativo, Barata Feyo, escultura, oficinal.

 

 

ABSTRACT
Apropos five preparatory drawings of Salvador Barata Feyo considerations are made upon the role of drawing in the sculpture creative process.

Keywords: drawing, creative process, Barata Feyo, sculpture, craft.  

 

 

Introdução

Neste artigo propomo-nos refletir sobre os modos como o desenho opera no contexto de um processo de criação artística, efetivando uma relação concetual e oficinal do artista com a sua obra. Para tal, centramo-nos numa série de cinco desenhos do escultor português Salvador Barata Feyo (1898-1990) preparatórios da monumental estátua de bronze de Vímara Peres, obra de 1968 ao terreiro da Sé do Porto (Figuras 1 e 2).  

 

 

Feyo foi um prolífico escultor, ativo nas décadas de 30 a 60 do século xx. Formado em escultura na Escola de Belas Artes de Lisboa, foi professor de escultura na Escola de Belas Artes do Porto. Mais do que escultor Feyo foi um estatuário, tendo produzido obras de grande porte, concebidas para espaços públicos citadinos, motivo pelo qual intensamente terá integrado o desenho no seu processo oficinal, tornando o seu caso particularmente útil a uma reflexão sobre o papel do desenho na práxis artística.

Na sua obra, onde se encontram influências tanto da tradição clássica como da idade média, Feyo reinventa formas e volumes por processos de nivelação e/ou acentuação, em exercícios formais que articulam entre si diversos níveis de representação e de abstração, resultando numa figuração modernista de claro cunho pessoal.  

Este artigo desenvolve-se em três partes, onde se discute o uso do desenho no processo criativo do artista. Para tal utilizou-se uma inédita reflexão manuscrita pelo próprio cerca de 1966 em França. Na primeira parte incide-se no desenho como médium para o desconhecido. Numa segunda parte reflete-se sobre a ordem temporal dos processos físicos e cognitivos em jogo. Por fim, verifica-se como os dispositivos oficinais tão distintos do desenho e da escultura se completam harmoniosamente. Conclui-se com enunciação das propriedades do desenho que servem o desenvolvimento do processo criativo.

 

1. Do Exercício da Dúvida  

Naquilo que faço move-me sempre o humano e o abstracto… Isto não é novo, já os gregos o fizeram há 2 mil e tantos anos. E não se admirem das minhas dúvidas, constantes que se prendem ao que faço como a raiz à árvore ou as folhas aos ramos. Já Miguel Ângelo, segundo dizem, era um poço de dúvidas mesmo no fim da vida. Os outros, os maiores duvidaram sempre há milénios como hoje. Tudo, seja desenhado ou modelado é sempre uma adaptação. Às vezes, talvez por negligência, esqueço-me de duvidar. Isso é muito mau. Basta um instante para, não digo perder tudo, mas perder muito (Feyo, s.d.).

Nestas notas pessoais, Feyo já sexagenário reflete sobre o seu processo criativo e de como este se estrutura a partir do ato de duvidar, ou seja, de uma procura sistemática do novo, do desconhecido, que carateriza um processo aberto de resolução de problemas em pleno exercício da criatividade. O problema eternamente em resolução, que despoleta esta reflexão é o da exploração dum jogo formal entre o esquema mental abstrato, de cariz proposicional (o abstrato) e a riqueza de um realismo proveniente da plena experiência sensorial do mundo (o humano) (Figura 3; Figura 4).

 

 

 

Na série de desenhos para a estátua de Vímara Peres podemos observar cinco momentos dessa luta contra o estereótipo ou solução fácil. O uso de carvão e escala do desenho (cerca de 70x50) propiciam o fazer e o desfazer da imagem, assim como a sua realização em gestos largos e manchas nebulosas que exibem apagamentos a pano ou à mão e alternativas de posições dentro do mesmo desenho que revelam a sistemática insatisfação, a procura de outras soluções alternativas e mais justas. Por detrás do último desenho encontra-se, de seu punho, um comentário "muito igual ao Dórdio Gomes" que demonstra, mais uma vez, sua insatisfação, seu duvidar sistemático e sua exigência criativa.  

De uns desenhos para os outros observam-se figurações alternativas que ensaiam a posição do cavalo e a pose do cavaleiro, o nível e lugares do realismo e do abstrato (entre as figuras, as texturas ou os adereços) e ainda as linhas de força da composição, crescentemente triangular, que se parecem afirmar pela posição da capa, elemento que na estátua final quase desaparece cedendo sua função compositiva ao expressivo erguer do braço do herói (Figuras 5, 6 e 7).

 

 

Nestes desenhos o braço sofreu várias alterações em termos de ser mais ou menos fletido e, só naquele que supomos ser o último desenho (Figura 8) do conjunto, o braço projeta-se para cima, num movimento de acentuação da verticalidade do conjunto, "aguentando" a nova posição do observador que o desenho adota, já não lateral mas de cima para baixo, vista a figura a dois terços por trás. Aqui, a mão que apenas segurava o estandarte/lança ergue-se, já este não cabendo na folha de cartão, fornecendo atitude e significado à figura do herói histórico anterior à nacionalidade.  

O cavalo, agora parado, cede protagonismo ao gesto do cavaleiro, sublinhando-o ao cumprir agora, de patas bem estendidas, o papel de base da piramidal da composição tridimensional. Do lado inverso do cartão deste desenho encontra-se uma nota escrita que reforça esta interpretação "+ alto só em cima e em baixo".  

Neste poderoso desenho (Figura 8), através do qual o artista cria/descobre a formalização da ideia para a estátua, as poses e gestos das figuras representadas, desprovidas de qualquer detalhe ou adereços, encontram harmonia com a composição das massas e definem uma linha estruturante de força ascendente que contraria com graciosidade o pesado volume do cavalo, providenciando simultaneamente justo e expressivo significado iconográfico à obra.  

 

2. Do Tempo Cognitivo e do Tempo Operativo  

O desenho, especialidade que tantas vezes pratico, faço-o para aprender. Não há como esse exercício para compreender melhor o que era, ou podia ser, uma visão vaga. Delinear numa folha de papel plana sem espessura sensível… Eu só queria desenhar com a espontaneidade com que penso. Era assim que devíamos desenhar, todos nós, como se pensássemos. Essa relação directa, imediata, rápida, seria o melhor trunfo neste jogo, no qual frequentemente perco (Feyo, s.d.).

Com a lucidez que só a experiência diária do desenho traz, Feyo elege como fator mais determinante do desenho a rapidez de execução que lhe é própria. Esta rapidez operativa permite acompanhar o ritmo mais acelerado das operações cognitivas, mesmo quando se trata do mais veloz e impreciso vislumbre. A imediaticidade do desenho permite fixar em imagem rapidíssimas (Pelayo, 2002) momentâneos pensamentos visuais, quase inconscientes, os quais de outra maneira permaneceriam inacessíveis. Ligando espontaneidade e aprendizagem, Feyo valoriza o conhecimento intuitivo e seu papel de relevo na práxis do desenhar.  

Por vezes as ideias surgem quando fazemos outras coisas e anotam-se esquissando num qualquer pedaço de papel à mão, dada a premência em não deixar escapar o vislumbre fugidio. Noutras vezes, ou após essa imprecisa ideia inicial, o esboço proporciona o meio para uma procura sistemática e plenamente voluntária de forçar o desenvolvimento das ideias.  

A série de desenhos em análise exibe esboços que variam em tempo operativo aproximado de 15' (Figura 3) a 30' (Figura 7) no máximo. O desenho linear pode ter sido abandonado por a figura estar encostada ao lado esquerdo da folha limitando o levantamento da pata do cavalo, mas documenta o arranque linear dos desenhos desta série.  

O mesmo ponto de partida é retomado no desenho da Figura 5, agora centrado e que, conjuntamente com o desenho seguinte (Figura 6), marcam uma primeira fase do processo de conceção escultórico da estátua. Para o artista tratar-se-á de conhecer plenamente o problema, os seus elementos e sua complexidade, onde se oferece possibilidade de detetar padrões ou ligações entre dados. De facto, em quase nada se parecem estes desenhos com o produto final, a não ser o elenco de grande número de elementos que são convocados: um cavalo, um cavaleiro medieval, um pedestal, um terreiro urbano, elmo, espada, malha, capa, arreios e laçarotes numa miscelânea de memórias e reminiscências.  

Um segundo grupo que pensamos ser posterior (Figura 7, Figura 8) mostra variações na posição de observação da escultura, sempre inserida no espaço urbano, que permanentemente fornece o contexto e escala nos quais ela é pensada. Nestes interessantíssimos dois desenhos tudo muda. É o próprio Feyo quem esclarece a complexidade do processo em jogo quando diz:  

Em todas as peças que executei fiz por discernir proporções, por dar densidade aos volumes, grandeza ao conjunto, resistência ao conteúdo e força a uma ideia a que sempre inundei de mim próprio. Nunca me comprazi em fazer deformações por capricho, nem tão pouco me contentei facilmente (Feyo, 1956).

No primeiro deles o cavalo estanca e enrijece, os pés do cavaleiro esticam-se numa ordem ao cavalo e o conjunto ganha unidade. Apenas as cabeças das duas figuras continuam a elencar adereços e tudo o resto são sombras desfocadas: tomada de consciência da recusa das hipóteses que se insinuavam nos desenhos anteriores e o assumir desse vazio no qual o desconhecido revela-se, indicando o lugar de novas questões.  

No derradeiro desenho insiste-se na posição do desenho anterior para cavalo e cavaleiro e, mudando arrojadamente o ponto de vista, como quem quer ver melhor, resolve-se a posição da cabeça do cavalo e afirma-se o erguer da haste do cavaleiro. O, agora sim, herói lendário estanca-se saudando o pórtico da Sé. Vemos aqui a substituição do negrume anterior por uma luz baixa mas intensa que cria ambiência espacial e representa bem o terreiro da Sé e sua distância à estátua. As grandes questões de conceção da forma da escultura estão resolvidas já que sentido e forma entram, neste vigoroso desenho, em plena sintonia.  

 

3. Do Incorpóreo e do Perene  

O desenho consegue ser transparente, mais leve. A folha de papel oferece todas as profundidades que soubermos encontrar-lhe. Portanto aí é mais fácil certamente descobrir o espírito (alma) do retratado e vesti-lo de ossos, nervos e roupa traduzidos em formas e somando estas num todo uníssono. É mais fácil apagar com um pano leve o carvão de uma folha de papel do que destruir uma forma modelada. Esta necessita de uma estrutura/esqueleto de ferro, cruzetas e barro enquanto que o desenho precisa apenas de uma folha de papel e carvão. Isso basta (Barata Feyo, s.d.).

As dificuldades oficinais da escultura e de forma mais acutilante da estatuária são aquelas da qual este meio retira a sua especificidade ou seja o desejo do perene, no sentido de imortalizar e perpetuar algo. Mobiliza para tal os mais duradouros materiais que se caracterizam pelo seu peso, massa e escala. No caso do metal, recorre-se a um material moldável, o barro. Depois faz-se um molde em gesso que servirá para moldar a peça metálica final. Naturalmente que quanto maior a escala da peça mais difícil e complexo se torna o empreendimento e arrependimentos estruturais inviabilizam o processo.  

É neste contexto que o desenho, malgrado a sua efemeridade, traz sua quase incorporeidade ao processo e com ela a imediaticidade e a simplicidade que facilita os arrependimentos, as alterações e o lançamento de novas preposições. Sua enorme maleabilidade não se vê limitada, como aponta Feyo, pela sua bidimensionalidade já que esta é passível de ser simulada.  

Ao contrário do modelo em escala reduzida, qual bibelot indutor de gigantismo e desmedida proporção aquando da infeliz subida ao pedestal da praça pública (Mendes, s.d), o desenho permite, como se constata na série de desenhos da estátua de Vímara Peres, conceber a obra considerando o local para onde ela se destina, contemplando desde logo sua escala. Ele permite ainda a criação de um espaço virtual, visualizável de diferentes pontos de vista, que considera estátua e seu entorno, permitindo uma conceção sempre em controlo das questões em jogo na estatuária.  

 

Conclusão  

Graças à sua debilidade e simplicidade matérica, o desenho oferece imediaticidade operativa e cognitiva ao processo criativo de resolução de complexidades ou, dito à maneira de Barata Feyo, ao exercício da dúvida.  

 

Referências  

Feyo, Salvador B. (s.d.) Naquilo que faço move-me sempre o humano e o abstracto... Anotação escrita em papel A4. Espólio de Salvador Barata Feyo. Família Barata Feyo.         [ Links ]  

Feyo, Salvador B. (1956) "A exposição da obra do estatuário Mestre Barata Feyo no museu Municipal de Viana do Castelo" in Mestre Barata Feyo – Exposição Retrospectiva. Porto. Escola Superior de Belas Artes do Porto, (Outubro de 1981). Catálogo de exposição.         [ Links ]  

Mendes, Manuel (s.d.) "Sobre a Estátua Equestre de D.João VI da autoria de Barata Feyo" in Mestre Barata Feyo – Exposição Retrospectiva. Porto. Escola Superior de Belas Artes do Porto, (Outubro de 1981). Catálogo de exposição.         [ Links ]  

Pelayo, Raquel (2002) "Campo de acção e imediaticidade do desenho" in Psiax – Estudos e Reflexões sobre Desenho e Imagem, (nº1), FAUP e FBAUP.         [ Links ]  

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: mpelayo@arq.up.pt (Raquel Pelayo).

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