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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Arlindo Daibert: o livro como morada das palavras e das ideias

Arlindo Daibert: the book as home of words and ideas

 

Maria do Carmo de Freitas Veneroso*

*Brasil, artista visual e professora na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharelado em Belas Artes (Escola de Belas Artes da UFMG); Master of Fine Arts, Pratt Institute, Nova York, EUA; Doutora em Literatura Comparada, Faculdade de Letras da UFMG.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
O objetivo do artigo é analisar as relações intertextuais entre o livro objeto, Moradas, do artista brasileiro Arlindo Daibert (1952-1993) e o texto de Teresa d'Ávila, Castelo Interior ou Moradas. Textos de Leo Hoek fornecerão importantes referências para este estudo assim como a biblioteca pessoal do artista. Pretende-se com este artigo continuar a iluminar o trabalho deste artista, em cuja obra o texto dialoga com a imagem de uma forma instigante.

Palavras chave: Arlindo Daibert, livro objeto, Moradas, palavra e imagem

 

 

ABSTRACT
This paper aims to analyze the intertextual relations between the book object, Moradas, by the Brazilian artist Arlindo Daibert (1952-1993) and the text of Teresa d'Ávila, Castelo Interior or Moradas. Texts by Leo Hoek provide important references for this study as well as Daibert's personal library. The intention of this article is to continue illuminating the work of this artist, where text and image dialogue in a provocative way.

Keywords: Arlindo Daibert, book object, Moradas, word and image

 

Introdução  

A obra do artista brasileiro Arlindo Daibert (1952-1993) inscreve-se em uma forte tendência da contemporaneidade, filiando-se ao trabalho de uma linhagem de artistas que trabalham com textos visuais, explorando a visualidade da letra e as relações entre arte e literatura, onde a "citação" literária é uma das principais fontes de criação de suas poéticas. Afinidades existentes entre seu trabalho e a minha própria produção artística também me motivam a investigar sua rica e vasta obra, a fim de melhor compreender o universo deste artista, que deixou um importante legado para a arte brasileira. Na sua breve carreira, Daibert teve uma produção intensa, com a realização de um grande número de exposições individuais e coletivas, além de participações e premiações em salões de arte. Apesar de já ter sido tema de alguns trabalhos críticos, sua obra, por toda a sua riqueza e complexidade, ainda não recebeu a atenção que merece.  

São muitas as possibilidades de abordagem da mesma, e neste artigo, pretende-se analisar as relações intertextuais entre o livro objeto, Moradas (Figura 1), e o texto de Teresa d'Ávila, Castelo Interior ou Moradas. Textos de Leo Hoek fornecerão importantes referências para o estudo da primazia do texto no trabalho citado de Daibert. A biblioteca pessoal do artista também desempenha um importante lugar neste trabalho, pois a partir de pesquisas lá realizadas foi possível estabelecer relações entre seus livros e referências encontradas na obra analisada. Pretende-se com este artigo continuar a iluminar o trabalho deste artista, que com erudição e sensibilidade construiu uma obra na qual o texto dialoga com a imagem de uma forma instigante.

 

 

1. Moradas  

O objeto de análise deste texto, Moradas, é um livro objeto criado por Arlindo Daibert em 1992. O livro objeto é "o objeto tipográfico e/ou plástico formado por elementos de natureza e arranjos variados" (Silveira, 2001: 25). Porém, esta definição, ainda que seja muito concisa, como concorda Paulo Silveira, ainda não abarca toda a complexidade do livro objeto. O próprio conceito de livro de artista ainda é muito problemático, e se encontra em discussão, até mesmo por tratar-se de uma categoria recente da arte contemporânea. Assim, o livro de artista é um tema amplo, que pode ser abordado a partir de várias perspectivas. Ampliando o conceito de livro objeto, ele pode abarcar construções híbridas, tratando-se geralmente de livros que buscam formas alternativas e tridimensionais, escultóricas, muitas vezes explorando soluções matéricas.  

No caso estudado, Moradas, trata-se de um livro tridimensional, que pode ser manipulado pelo leitor, e ao ser aberto remete a uma forma arquitetônica, uma "morada", metáfora presente em vários aspectos da obra, além do título. É um livro objeto único, construído utilizando papelão como suporte, sobre o qual é feita a colagem de fragmentos de textos impressos e manuscritos. O livro, em forma de sanfona, quando aberto, produz formas triangulares, unidas entre si pelas extremidades, através de uma faixa de tecido que dá flexibilidade à montagem. Um texto manuscrito, contínuo, atravessa Moradas, conduzindo nossa leitura.  

A princípio as referências ao texto, em Moradas, são fragmentadas e disseminadas, não se fazendo tão claras. Pode-se perceber fragmentos de páginas de um livro, recortados e colados aleatoriamente. O artista recobre uma forma tridimensional, arquitetônica, que remete a uma "morada", com a matéria textual, remetendo visualmente ao título e ao assunto da obra. São oferecidas várias pistas ao leitor, fazendo com que ele trabalhe numa construção de sentidos. Percebe-se, a princípio, tratar-se de um texto religioso, sendo possível localizar o fragmento "VIDA DE Sta. TERESA DE JESUS", que fornece uma primeira chave de leitura.  

Moradas intertextualiza com o livro Castelo Interior ou Moradas (d'Ávila, apud Alvarez, 1995), escrito por Teresa d'Ávila em 1577, no Mosteiro de São José de Ávila, no qual são criadas, metaforicamente, sete moradas que a alma deve habitar em união com Deus. Trata-se de um texto de amor místico, cuja narrativa remonta à Espanha do século XVI, cenário da vida de Teresa d'Ávila. O Castelo Interior, escrito pela monja a mando do seu padre confessor como orientação espiritual, apresenta uma série de estágios a serem seguidos pelas religiosas para que seja alcançada a perfeita união com Deus. Assim, as sete moradas correspondem a esses estágios, sendo a porta do castelo a oração; nas moradas do centro obtém-se passagem à experiência mística: é aí que o natural e o sobrenatural se imbricam. A sétima morada é a culminância do matrimônio místico da alma com Cristo (Cf. Neto, 2007). Porém, sabe-se que Daibert costumava se referir aos textos fonte como "mero pretexto" (1995: 15), e assim ele se apropria do texto de d'Ávila de uma forma pessoal. Os fragmentos são escolhidos aleatoriamente, de várias partes do livro Obras Completas de Teresa de Jesus (d'Ávila, 1577, apud Alvarez, 1995), e parecem ter sido colados sem seguir uma ordem específica, apontando para a importância da textura gráfica na obra. Daibert constrói oito moradas, extrapolando as sete moradas originais. Um texto manuscrito, contínuo, atravessa Moradas, conduzindo a nossa leitura da obra. Nota-se que da primeira à sétima "morada" as colagens são dispostas em duas colunas de textos fragmentados. A última "morada", porém, é uma montagem caótica de fragmentos sobrepostos em várias direções e sentidos (Figura 2).

 

 

O trabalho é composto de 17 partes unidas entre si, de modo a formarem os tetos das oito moradas e uma "entrada" estendida no chão. As páginas de papelão, forradas frente e verso com recortes do texto, formam duas colunas de "emendas", separadas por outra faixa, em sentido oposto ao das colunas, de maneira a compor um "fio condutor" que percorre todas as moradas e de onde fluem trechos do relato da Santa, manuscritos pelo artista. Todos os recortes do texto impresso vêm de uma edição em língua portuguesa (d'Ávila, 1577, In Alvarez, 1995), já os trechos manuscritos por Daibert estão em espanhol, língua original do texto de Teresa d'Ávila.  

Na obra nota-se uma profunda integração entre texto e imagem, fazendo com que o trabalho possa ser lido visualmente. Há uma densa utilização da matéria textual, criando várias camadas de significação. Porém, a partir da maneira como Daibert relaciona texto e imagem em Moradas percebe-se a primazia do texto sobre a imagem, considerando as colocações de Leo Hoek (Hoek, 1995, In Arbex, 2006: 177) ao postular sobre as relações entre a literatura e as artes plásticas, analisadas a partir das suas situações de produção e recepção. Na perspectiva da produção, Hoek diz que a situação de comunicação estabelecida leva em conta: o "texto existindo antes da imagem, ou a imagem existindo antes do texto" (apud Arbex, 2006: 168). Muitas obras de Daibert, incluindo Moradas, partem da primazia do texto, ao dialogarem com textos já existentes. Seus trabalhos lançam novas luzes sobre estes textos, criando outras possibilidades de leitura dos mesmos, ou seja, traduções visuais. Assim, além da obra aqui analisada, pode-se citar a série Grande Sertão: veredas, na qual Daibert intertextualiza com o livro homônimo de João Guimarães Rosa, e Macunaíma de Andrade, que se refere ao conhecido livro de Mário de Andrade, Macunaíma.  

A presença da matéria textual leva à idéia do livro e a forma da obra sugere a 'morada' (Figura 3): o livro é a morada da palavra, o livro é a morada das ideias, mas da relação de Daibert com Teresa d'Ávila, esse livro-objeto torna-se também "morada" da alma. O livro remete metaforicamente às muralhas de Ávila (Figura 4), lugar das revelações místicas da santa. Esta referência às muralhas que cercam a cidade espanhola é reforçada pelas pesquisas realizadas por Gislane Gomes Neto na biblioteca pessoal do artista, que ofereceu importantes pistas para a leitura de seus trabalhos. A pesquisadora explica que um pequeno exemplar da Colección Guias Everest: Ávila, e que traz uma foto bastante significativa das muralhas, é acompanhado de uma sugestiva legenda: "Ávila ES el castillo de las Moradas...", fazendo alusão ao texto teresiano. No texto fonte "O castelo tem traçado linear. Estrutura e processo dinâmico coincidem" (Alvarez, 1995: 436) e Daibert faz construção similar nas suas Moradas (Figura 5).

 

 

 

 

Conclusão

Extrapolando as relações demonstradas entre Moradas, de Daibert, e o livro de Teresa d'Ávila, é possível "ler" a obra do artista também através da captação poética (e desconfio que seja essa a maneira de se ler todo texto visual 'ilegível'), numa referência à não intelecção própria do sentido obtuso de que fala Roland Barthes: "graças ao que, na imagem, é puramente imagem, [...] podemos passar sem a palavra e continuamos a nos entender" (Barthes, 1990: 55).  

 

Referências  

Alvarez, Fr. Tomas, O.C.D. (1995). Obras Completas de Teresa de Jesus. Tradução de Adail Ubirajara Sobral et al. São Paulo: Edições Loyola, Edições Carmelitanas.         [ Links ]  

Andrade, Mário de (s/d). Macunaíma: O herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir.         [ Links ]  

Barthes, Roland (1990). O Óbvio e o Obtuso. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. ISBN: 85-209-0243-X           [ Links ]

Daibert, Arlindo (1995). Caderno de Escritos. GUIMARÃES, Júlio Castañon (org.). Rio de Janeiro: Sette Letras. ISBN: 85-85625-27-9           [ Links ]

Daibert, Arlindo (1998). Imagens do Grande Sertão. Miranda, Wander Melo; Arbach, Jorge (coord.). Belo Horizonte: Ed. UFMG; Juiz de Fora: Ed. UFJF. ISBN: 85-7041-166-9           [ Links ]

Daibert, Arlindo (2001). Macunaíma de Andrade. ARBACH, Jorge (coord.). Juiz de Fora: Ed. UFJF.         [ Links ]  

Hoek, Leo H. (1995) "Da Transposição Intersemiótica" In: Arbex, Márcia (org.) (2006). Poéticas do Visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG. ISBN: 85-7758-003-2           [ Links ]

Neto, Gislane Gomes (2007) Eros e Babel na obra intermidiática de Arlindo Daibert: processos de leituras intertextuais. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Dissertação de Mestrado em Artes. Arte e Tecnologia da Imagem. Orientador: Maria do Carmo de Freitas Veneroso.         [ Links ]  

Rosa, João Guimarães (1979). Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.         [ Links ]  

Silveira, Paulo (2001). A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS. ISBN: 85-7025-585-3         [ Links ]

 

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: cacau_freitas@yahoo.com.br (Maria do Carmo de Freitas Veneroso).

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