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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

DOSSIER EDITORIAL

EDITORIAL SECTION

FREE WILLIAMS: redes semióticas na produção videográfica de Elisa Queiroz

FREE WILLIAMS: cultural networks at Elisa Queiroz's videographer work

 

José Cirillo*

*Conselho editorial; Universidade Federal de Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Busca-se uma abordagem da criação que coloque o produtor em uma cadeia de relações culturais que mediam a obra em sua execução, de modo a compreender o processo para além dos arquivos pessoais, de ateliês ou bibliotecas, mas pensar todo esse processo conectado à realidade atual ou virtual que envolve o gesto criador, rompendo a noção de isolamento do ato de criação e compreendendo este saber e fazer com a complexidade da não linearidade, da imprecisão e do inacabamento do signo.

Palavras-chave: Elisa Queiroz; videografia; arte capixaba; arte contemporanea Brasil

 

 

ABSTRACT
This paper tries to identify cultural relations that mediate the creative process beyond files and personal papers, workshops and libraries. We take a look at the relationships from the art process till its' connections between the creative gesture and the cultural scenery. To this job we took as reference the video available on Youtube named Free Williams, by the artist Elisa Queiroz (2004).

Keywords: Elisa Queiroz, videograpic work, brazilian art

 

 

Introdução  

O gesto criador é quase sempre acompanhado de marcas processuais de sua ação, chamadas arquivos da criação – conexões que espelham uma rede de relacionamentos na criação em ato. Centrados nesta premissa, nos aproximamos de aspectos rizomáticos da obra Free Williams (2004), de Elisa Queiroz (1974-2011), produzida em e para o meio digital.

Estudos preliminares sobre a artista evidenciam suas reflexões sobre seu corpo e revelam uma estética resultante de uma poética auto-referenciada. Discutir o corpo e a obra em simbiose é uma tendência do projeto poético de Elisa Queiroz, que rediscute o seu lugar na contemporaneidade. Sua obra exala um grotesco poder sedutor. Sua obra invade os sentidos. Uma tendência que revela uma intencionalidade: dialogar com a sedução e a revisão de valores engessados pelos sistemas do corpo, da arte e da cultura.

É neste contexto que a análise de Free Williams estabelece-se. As escolhas da artista parecem ter a tendência a uma estética do grotesco, da opulência, da ironia, da apropriação: o que se revela em uma frase postada por ela, logo abaixo do título do vídeo: Uma sátira bem umorada aos musicais de Bugsy Berckley (o erro ortográfico é transcrição da página no Youtube; e vale destacar que Bugsy é o maior diretor americano de musicais com coreografias sincronizadas). Queiroz toma para si uma série de índices da sociedade contemporânea, nos mesmos moldes de suas obras anteriores. A artista busca no seu tempo e em suas questões próprias o diálogo com obras das quais lhes toma a imagem ou conceito como partida para sua própria obra. A ação citacionista é evidente. Ela ironiza valores, costumes e ditames sociais para construir obra na paródia, na brincadeira, ou – para usar um conceito da crítica de arte – ela o faz por meio da apropriação simbólica da sociedade contemporânea.  

Na medida em que cresce como artista, assume uma volúpia criativa, apropria-se da história da arte e da cultura; e se oferece: em sacos de chá, uma Maja Desnuda; em biscoitos recheados, um gordo Piquenique sobre a Relva... Mas, não existe uma Elisa. Ela é ao mesmo tempo várias; é em rede. Tomada por essa rede, Queiroz passa a produzir prioritariamente em meio virtual, seus documentos autógrafos (quase não mais) passam a ser digitais, encerrados em suas máquinas cada vez mais possantes. Necessita de acesso à internet rápida; assim como de mídias armazenadoras cada vez maiores. Seu processo de criação ganha a complexidade de um artista tomada pelo rizoma da criação no hiperespaço. Sensualidade e volúpia fixam uma busca do lugar de mulher, amante de além-mar.  

 

Free Williams: um diálogo em rede  

Free Williams é uma obra digital, produzida e realizada no meio digital, sem documentos autógrafos acessíveis. Porém, é no confronto com aspectos do projeto poético da artista que se buscou estabelecer as primeiras conexões entre a obra Free Williams, e seu percurso gerador. Se não há documentos tradicionais, é no campo expandido do conceito de documento que buscamos os vestígios do processo de criação desta obra. Assim, nos aproximamos de Free Williams por meio do mapeamento de interconexões instáveis que constroem a interatividade da obra com a cultura, com o seu tempo de feitura e de recepção.  

Nesta obra videográfica, Elisa parece reconstruir discursos e poéticas que se dão já no título, o qual revela um jogo semântico de conectividades, inserido-o no contexto rizomático da cultura. Os signos "free" e "williams" fazem uma clara associação da artista com dois personagens da cultura videográfica mundial: a baleia Willy, de Free Willy (de 1993, dirigido por Simon Wincer) e a atriz Esther Williams (musa do cinema conhecida como a Sereia de Hollywood). A fusão entre os dois mitos: a baleia e a sereia não é um trocadilho oportunista. É comum no projeto poético de Queiroz o uso do jogo de palavras para construir sentidos.  

 

No documento (Figura 1) pode-se observar que há evidencias materiais de que a artista usa as palavras em associação (+), ou (=) ou (→), signos gráficos que implicam em agregação de sentidos. Queiroz aproxima "baleia" de "gordo" e, na sequencia, estes a "abundância estética". Ainda aqui, se pode ver que ela se apropria de um dito midiático para transcrevê-lo ao sabor de seu projeto poético: "não salvem os gordos" Aqui parece já haver indícios de sua aproximação com a orca Willy (salvem as baleias!).

 

 

Tomando o outro signo, "Williams", somos levados à musa que instiga desejos com um corpo esculpido pela natação desde a infância e mantido pelo rigor da estética que aprisiona as atrizes. A Sereia de Hollywood tem em comum com Queiroz alguns aspectos: Elisa também era exímia nadadora, mas ao contrário da atriz, isto não lhe esculpiu o corpo idealizado. Essa aproximação com Williams não é ocasional: elas parecem representar polos opostos do mesmo ato de construir um campo fenomênico de existência feminina.  

Queiroz inicia o trabalho com um frame congelado: a calda de uma baleia, aparentemente uma jubarte, índice de individualidade. Na sequencia, a artista, em vermelho, com acessórios na cabeça e no pescoço, e seguida de seis homens de branco, desce as escadas até uma piscina. Essa sequencia é interrompida por um breve trecho de um filme antigo em que outra mulher, seguida por alguém de branco, caminha na borda de outra piscina. Elisa e seu séquito seguem; posicionada, mergulha. Novamente interrompida a sequencia pela outra mulher que mergulha com elegância. Queiroz imerge, e das águas emerge a Sereia de Hollywood, Esther Williams. Essa construção sequencial conduz a uma intenção: a aproximação entre a artista e a atriz. O título da obra apresenta o seu sentido.  

Duas questões se colocam. Primeiro, considerando a tendência citacionista de Queiroz, é evidente que toma do filme de Williams a referência para a construção da obra; ela contrapõe a elegância da produção hollywoodiana com a rusticidade da sua produção caseira. Uma bem humorada versão, ela já nos antecipou. Segundo, ao universo do nado sincronizado ela coloca uma oposição edificante: típica prática feminina parodiada pela artista que escolhe um grupo de homens, nadadores híbridos de masculinidade e de feminilidade. Estas questões tornam evidentes aspectos da rede de relações que a artista vai estabelecendo em seu percurso. As oposições semânticas parecem ser estratégias de Queiroz para atingir o efeito de sentido que a obra necessita. Mas, estas oposições não são disjuntivas, mas conectivas. Como o hipertexto, Queiroz dá possibilidades de entrada, não garantias.  

Sua intencionalidade se revela: há o questionamento sobre o lugar da mulher, do corpo, do diferente, do particular. Se for possível falar de um diálogo com a cultura, ela se refere à multiplicidade, aos diferentes tratados diferentemente. Isto se materializa em seus companheiros de nado. Ela própria é da opulência do excesso e da elegância do nado que exibe na obra. Toma para si a sobreposição da imagem de Esther Williams não com ingenuidade de quem teme encarar seu próprio corpo, mas na evidência de ser outro padrão se sobrepondo ao do modelo.  

O humor característico de Queiroz interpõe-se pela sucessão de frames intercalados com Williams, e aproveitando certo grau de ironia no filme da atriz, a artista insere-se na mesma imagem. Coabita o universo da Sereia de Hollywood. De forma quase sarcástica, insere-se no filme quase desnuda nos seios – uma provável alusão aos escândalos morais que envolveram o nadadora que inspirou esse filme de Williams.  

A imagem da artista (Figura 2) aparece no lado direito superior da tela e, com suas mãos e pés em pequenos e nervosos movimentos simula estar no mesmo espaço que a atriz; ambas em acrobacias com dois personagens da história em quadrinhos; Tom e Jerry aplaudem (Figura 3) a saída das duas mulheres da tela. A beleza do corpo obeso, em contraponto com o corpo escultural de Williams; dançam pela piscina. Parece que Queiroz adverte que na água todas são leves.

 

 

 

Conectando as biografias da artista e da atriz, pode-se perceber que com Williams, Queiroz compartilha não só o nado desde a infância, ou um corpo especialmente construído, mas a dedicação à moda: Williams dedica-se à moda para banho, maiôs e peças específicas que se adequassem ao corpo de uma nadadora diante das câmeras de filmagem, ação semelhante àquela que se percebe em obras ou nos rascunhos de Queiroz, buscando encontrar e construir objetos vestidos que adequasse ao corpo obeso. O maiô de cada uma das mulheres é idealizado por elas mesmas. Essas aproximações de subjetividades parece serem evidenciadas pela sobreposição de imagens pessoais que nos fazem imaginar que há mais da vida delas sobreposto.  

 

Conclusão  

No apoteótico final do vídeo, a artista cede seu lugar à atriz que se encerra em um circulo de águas flamejantes que vão envolvendo-a e desaparecendo com sua imagem. Esther Williams fica presa nessa cela de água. A imagem de baleia novamente aparece, mas não sua calda como no início; agora ela emerge liberta, novamente respira. Se a forma modelar de Williams encerra-se num manto de água e fogo, Willy se liberta da água que a limita, salta radiante em busca de liberdade. Essa analogia final conduz à reflexão de outro aspecto relacional do vídeo: seu título e sua construção de sentido.  

– Free Williams! ( parece gritar a artista)  

Mas essa liberdade parece se configurar mais forte na escolha de uma mídia social para a veiculação do trabalho. No Youtube todos podem postar independente de estarem no sistema da cultura; na realidade, parece-nos que o site em questão tem modelado a sociedade da sobremodernidade em que vivemos. Assim, a postagem no site é mais que um emolduramento para que a obra se apresente ao sistema das artes, é o elemento final para que este trabalho de Queiroz galgue para si a liberdade dos mares do mundo navegável. A artista coloca-se na rede, constrói-se em mares virtuais que pela sua dinamicidade e flexibilidade acrescentam refinamento à bem humorada ironia aos musicais que endeusaram um tipo feminino e um lugar para a mulher.  

Essa ação transformada em obra por Queiroz nos lembra de Borges, que diz que "publicamos para não passar a vida corrigindo". E Queiroz parecia saber que não teria tempo para correções; ela opera no universo da incerteza e imprecisão. No ciberespaço, em sua lógica de rizoma, sua produção parece se em um novo paradigma, cujas regras de funcionamento são tão instáveis quanto às conectividades possíveis, mas permitem uma tolerável materialização instável e falível da obra e da artista.  

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: josecirillo@hotmail.com (José Cirillo).

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