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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Fumo, Vapor e Lava: as Paisagens incer tas de Francisco Afonso Chaves (1857-1926)

Smoke, Steam and Lava: the Uncertain Landscapes of Francisco Afonso Chaves (1857-1926)

 

Vítor Manuel Guerra dos Reis*

*Portugal, artista visual. Licenciado em Artes Plásticas-Pintura (ESBAL). Doutorado em Belas-Artes / Teoria da Imagem (FBAUL).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa. Faculdade de Belas-Artes. Centro de Investigação e de estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

No espólio do naturalista e fotógrafo Francisco Afonso Chaves (1857-1926) encontram-se diversas fotografias estereoscópicas de formações vulcânicas. Trata-se de representações imersivas de paisagens inóspitas que, por via da estereoscopia, operam uma ampliação da experiência visual face às representações convencionais e, ao mesmo tempo, uma redução sensorial face à realidade. Atmosfericamente incertas estas são paisagens estranhas, perturbantes e sublimes.

Palavras-chave: fotografia / estereoscopia / vulcânico / sublime / incerto.

 

ABSTRACT

Between the photographic works of the Portuguese naturalist Francisco Afonso Chaves (1857-1926) there are stereoscopic photographs of volcanic structures. These immersive images must be inscribed in a peculiar kind of landscape: the hostile landscape. In comparison to the normal representations they produce an expansion of the visual experience and, in comparison with reality, a reduction of the sensorial experience. These are strange, sublime, uncanny and uncertain landscapes.

Keywords: photography / stereoscopy / volcanic / sublime / uncertain.

 

Introdução

O naturalista açoriano Francisco Afonso Chaves (1857-1926) dedicou-se ao longo da vida ao estudo da meteorologia mas também da sismologia e da vulcanologia. No âmbito desta área, o seu interesse científico foi acompanhado por um fascínio pelos lugares e, sobretudo, pelos indícios visuais resultantes desta poderosa manifestação do mundo natural … que a sua extensa obra fotográfica, de natureza estereoscópica, testemunha.

O fumo, o vapor e as poeiras emanadas dos cones, das crateras, das caldeiras, das furnas e de outras aberturas, as inóspitas saliências montanhosas ou as profundas reentrâncias, as acidentadas extensões de rochas moldadas pela lava, a cor escura do basalto e a peculiar luminosidade destes lugares vulcânicos são o tema de múltiplas imagens – sempre em suporte de vidro – que, ao longo das duas primeiras décadas do século XX, o autor criou usando uma máquina Vérascope.

À semelhança de textos publicados anteriormente, ou em vias de publicação, o presente artigo procura contribuir para o conhecimento da peculiar obra visual deste cientista e fotógrafo português e para o seu reconhecimento como uma das mais interessantes na história da fotografia portuguesa (cf. Reis, 2010a; Reis, 2010b; Reis, 2011; Reis, 2012; Reis, 2013a; Reis, 2013b).

 

1. O lugar: a paisagem inóspita

O interesse de Francisco Afonso Chaves pelos lugares magmáticos e, em geral, pela complexa actividade geológica, tectónica ou vulcânica, radica, desde logo, no tipo de preocupações científicas que desenvolve enquanto naturalista e na sua profunda ligação aos Açores. Mas também num fascínio notoriamente visual e estético que as suas fotografias demonstram. Realizadas durante os seus passeios micaelenses ou as viagens pelo arquipélago açoriano e o continente europeu, não sendo tematicamente inéditas, apresentam um conjunto de qualidades notáveis que merecem análise e reflexão.

A primeira dessas qualidades é a transformação do inóspito, inerente à natureza dos lugares fotografados, num valor intrínseco das próprias imagens e, dessa forma, da categoria em que se inscrevem: não se trata de meros exemplos da fotografia de paisagem mas antes de criações de um novo tipo de paisagem por via da fotografia. Tal transformação ocorre tanto através do ponto de vista escolhido como do enquadramento definido. Seja nas encostas do Vesúvio (Figura 1 e Figura 2), nas crateras de Pozzuoli (Figura 3), ou nas caldeiras das Furnas, na ilha de São Miguel (Figura 4 e Figura 5). Ou seja, as imagens referidas inscrevem-se não só na longa tradição da paisagem como contribuem para o alargamento e enriquecimento, tanto formal como estético, deste género: são representações fotográficas do hostil e ameaçador, da paisagem inóspita. Esta surge na fotografia portuguesa por via de um original cruzamento entre arte e ciência; ou melhor, entre a motivação científica e a prática artística do seu autor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nestas paisagens inóspitas o acidentado, fruto das abruptas elevações e depressões, a obscuridade, fruto da luz filtrada pelas poeiras e gases em suspensão e da cor basáltica das rochas, e o informe, fruto dos fumos, vapores e poeiras presentes na atmosfera, são estruturantes da sua especificidade estética e visual. Mas também a condição estereoscópica das imagens.

 

2. o processo: ampliação visual e redução sensorial

Na construção destas representações visuais Afonso Chaves recorreu sistematicamente a um dispositivo estereoscópico – o sistema Vérascope, criado e desenvolvido por Jules Richard (1848-1930) – que ao impor uma observação mediada, obrigando ao uso de visores binoculares, e inevitavelmente individual, impedindo a observação simultânea por diferentes observadores, tinha como objectivo a criação de uma verosímil percepção espacial e, desse modo, de uma efectiva experiência de imersão do observador na representação criada.

Apesar de desfasada temporalmente das primeiras experiências com a imagem estereoscópica e sobretudo da autêntica moda fotográfica que atravessou a segunda metade do século XIX, tal imersão, visual e emocional, é de novo profundamente moderna: familiar e compreensível para nós à luz das recentes tentativas de tornar a imagem estereoscópica, particularmente a imagem em movimento, o âmago do espectáculo visual de massas …cinematográfico ou baseado nos novos meios digitais.

Porém, além do intenso impacto visual, estes lugares quentes, pedregosos e de cheiro intenso fotografados por Francisco Afonso Chaves, são territórios de uma variada experiência sensorial. Isto significa que a ampliação da experiência visual operada pelo dispositivo estereoscópico – produtor de uma verosímil percepção tridimensional e espacial – é acompanhada de uma redução sensorial, típica de toda a representação visual por oposição à experiência do real. Esta contradição conduz inevitavelmente a uma alteração da experiência estética e emocional: a mistura de estranheza e perturbação que caracteriza estas paisagens é, afinal, indissociável da sua inscrição na ideia de sublime (Burke, 1757; Kant, 1790), que tanto marcou a imagem oitocentista, e de unheimlich (Freud, 1919), que Sigmund Freud (1856-1939), da mesma geração de Afonso Chaves, desenvolveu no século XX. Entre fumos, vapores e lavas, nestas imagens atmosfericamente carregadas opera-se uma estranha erosão e corrosão do visível, das formas e limites vislumbrados que impede a sua percepção clara mas também o seu pleno reconhecimento cognitivo. Por isso, inóspitas, ameaçadoras e hostis, estas paisagens são visualmente incertas.

 

3. A imagem: o informe, o incerto e o sublime

As fotografias de Francisco Afonso Chaves, centradas na desolação da paisagem efusiva e eruptiva e, ao mesmo tempo, na sua estéril grandiosidade, são afinal representações vigorosas: estes são lugares em processo contínuo de erosão, de dissolução e de incerteza. Erosão das formas, em permanente mutação; dissolução da solidez dos corpos, ou da nitidez das suas imagens; incerteza das fronteiras físicas e, especialmente, incerteza do visível: da sua continuidade com o mundo familiar. Incerteza afinal sobre o visual: sobre a exacta fronteira entre registo e ficção, entre realismo e cenografia, entre razão e emoção. É neste sentido que através da sua observação assistimos a uma outra transformação: as inóspitas e, até certo ponto, terríveis paisagens vulcânicas de Francisco Afonso Chaves são, afinal, paisagens vivas e, enquanto tal, paisagens incertas, porque em permanente mutação. Na sua incerteza atmosférica e telúrica e na sua grandiosidade são ainda expressão dessa ideia de sublime teorizada a partir de meados do século XVIII.

Em 1757, no seu A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, Edmund Burke (1729-1797), a propósito da pintura, atribuía à obscuridade leonardesca e ao deleite pelas coisas confusas uma dimensão filosófica nova, doravante inseparável do impacto subjectivo da imagem e da sua capacidade de suscitar uma forma superlativa de emoção:

uma judiciosa obscuridade em algumas coisas contribui para o efeito da imagem; porque as imagens da pintura são exactamente semelhantes às da natureza; e na natureza imagens escuras, confusas e incertas têm um maior poder na imaginação para originar as grandes paixões do que aquelas que são mais claras e determinadas (Burke, 1757: II, iv, 106).

E acrescentava: "Em geral, para criar algo de muito terrível parece ser necessária a obscuridade" (Burke, 1757: II, iii, 102) porque a "escuridão é mais criadora do sublime que a luz" (Burke, 1757: II, xiv, 121).

Para Burke o sublime é, assim, uma emoção desenfreada, uma "força irresistível" (Burke, 1757: II, 1, 101), desregulada e ingovernável – uma violenta perturbação do espírito, nascida do pasmo, do espanto ou, melhor, da estupefacção e que, em última instância, conduz ao rapto do observador (Reis, 2006).

A paixão provocada pelo grande e pelo sublime na natureza, quando tais causas operam de forma mais poderosa, é a Estupefacção; e a estupefacção é esse estado da alma no qual todos os movimentos estão suspensos, com algum grau de horror. (…) Portanto, tudo o que em relação à vista é terrível é também sublime, quer a causa deste terror seja, ou não, devida à grandiosidade das dimensões; pois é impossível considerar como insignificante ou desprezável qualquer coisa que possa ser perigosa (Burke, 1757: II, 1, 101 e II, 2, 101).

Segundo Immanuel Kant (1724-1804), esta estupefacção, "que confina com o pavor, o horror e o estremecimento sagrado" (Kant, 1790: §29, 167-168), indissociável do sublime, surge em nós quando estamos perante o espectáculo atraente e terrível da natureza

no seu caos ou na sua desordem e devastação mais selvagem e desregrada (…) quando somente magnitude e poder se deixam ver. (…) Rochedos audazes e proeminentes, por assim dizer ameaçadores, nuvens de trovões acumulando-se no céu, avançando com relâmpagos e estampidos, vulcões na sua inteira força destruidora, furacões deixando para trás devastação, o ilimitado oceano revolto, uma alta queda d'água de um rio poderoso, etc., tornam a nossa capacidade de resistência de uma pequenez insignificante em comparação com o seu poder (Kant, 1790: §23, 140; §28,158).

Simultaneamente estranhas e familiares, estas paisagens incertas de Francisco Afonso Chaves são, também por isso, perturbantes, uncanny ou, mais exactamente, unheimlich (Freud, 1919: 124):

um efeito uncanny [unheimlich] surge frequentemente quando se dilui a fronteira entre a fantasia e a realidade, quando estamos perante a realidade de algo que até agora considerávamos imaginário (Freud, 1919: 150).

 

Conclusão

Se a natureza estereoscópica destas imagens e a consequente imposição de um visor para a sua observação, conduzem à imersão do sujeito na paisagem visual, ao alargamento da experiência visual e emocional e, por isso, à diluição extrema da fronteira entre representação e realidade, muito para além da observação convencional, não mediada mas também pouco eficaz espacialmente, por outro, este alargamento visual é acompanhado de uma redução da experiência sensorial que o lugar real suscita no sujeito. Se tal afirmação é verdadeira para toda a representação do visível – por oposição ao próprio visível – neste caso, devido à natureza do artefacto e à enfática verosimilhança visual que ele opera torna-se indissociável da sua constitutiva experiência paradoxal. Tal como o medo e a maravilha. Ou a experiência necessariamente individual a que obriga por oposição à experiência colectiva que sempre dominou a cultura visual ocidental pós-renascentista. O que é o mesmo que dizer solitária: o sujeito que espreita através do visor estereoscópico está sozinho frente à paisagem e à incerteza criada por Francisco Afonso Chaves. Solidão que o seu abandono ou rapto do mundo real acentua.

 

Agradecimentos

Agradeço à FBAUL e ao Museu Carlos Machado as condições oferecidas. Este artigo teve o apoio à investigação da FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia).

 

Referências

Burke, Edmund (1757). A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful. (2ª ed.) Londres: R. and J.

Dodsley, 1759 [A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful and Other Pre-Revolutionary Writings. (Org. por David Womersley) Londres: Penguin Books, 1998, pp. xliv-473].

Freud, Sigmund (1919). "Das Unheimlich". Imago. 5 (5-6); pp. 297-324 [The Uncanny. Trad. de David McLintock. Londres: Penguin Books, 2003; pp. 121- 162. ISBN: 978-0-141-18237-7]         [ Links ].

Kant, Immanuel (1790). Critik der Urteilskraft von Immanuel Kant. Berlim e Libau: Lagarde und Friedrich; lviii-477 pp. [Crítica da Faculdade do Juízo. (Trad. port. de António Marques) Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, [1992]; 473 pp.         [ Links ]].

Reis, Vítor dos (2006). O Rapto do Observador: Invenção, Representação e Percepção do Espaço Celestial na Pintura de Tectos em Portugal no Século XVIII. 2 vols. Lisboa: [s.n.]. Tese de doutoramento em Belas-Artes (Teoria da Imagem), apresentada à Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.         [ Links ]

Reis, Vítor dos, coord. (2010a). A República e a Modernidade: Revelar, Renovar, Regressar. Ponta Delgada: Presidência do Governo dos Açores / Direcção Regional da Cultura / Museu Carlos Machado; p. 162.         [ Links ]

Reis, Vítor dos (2010b). "O Fotógrafo Estereoscópico: a Descoberta da Obra Fotográfica de Francisco Afonso de Chaves (1857-1926)". :Estúdio. Ano I, n.º 2 (Dezembro); pp. 50-56.         [ Links ]

Reis, Vítor dos (2011). "O Rasto de um Corpo no Espaço, ou o Observador como Sujeito Vidente em Francisco Afonso Chaves (1857-1926)". :Estúdio. Ano II, n.º 4 (Dezembro), p. 12-18.         [ Links ]

Reis, Vítor dos (2012). "Francisco Afonso Chaves, o Fotógrafo Errante". Açoriano Oriental. Ano CLXXVIII, n.º 18000, 19 de Agosto 2012; p. 18.         [ Links ]

Reis, Vítor dos (2013a). "A Ascensão das Máquinas Voadoras: Francisco Afonso Chaves e Jacques Henri Lartigue no Campeonato Gordon-Bennett em Paris (1906)". Actas do Colóquio Movimento e Mobilização Técnica (coord. José Bragança de Miranda). Lisboa: CECL/ FCSH-UNL (no prelo).         [ Links ]

Reis, Vítor dos (2013b). "As Primeiras "Fotografias Científicas" de um Cachalote (1890): Francisco Afonso Chaves e a Inexactidão da Imagem". Arte Teoria. Vol. 16 (no prelo).         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: vdosreis@fba.ul.pt (Vítor dos Reis)

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