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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Paisagens latentes em situações tridimensionais

Latent landscapes in three-dimensional situations

 

Sandra Rey*

 

*Brasil, artista visual. Professora Associada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais, Programa de Pós-graduação em Artes visuais e Pesquisadora no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico de Tecnológico – CNPQ.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais. Rua Senhor dos Passos 248, 3º andar. 90020-180 Porto Alegre, RS, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O artigo analisa os conjuntos de trabalhos da série Paysages Trouvés de Ricardo Cristofaro numa abordagem que privilegia a relação específica existente entre o referente externo, as questões que orientam o processo, e a análise da obra na sua forma de apresentação. Aproxima as operações realizadas pelo artista na construção semântica da noção de paisagem pela ausência do contexto e omissão do entorno do objeto enquadrado nas fotografias.

Palavras-chave: Situações Tridimensionais / Objetos Encontrados / Paisagem Latente / Fotografia.

 

ABSTRACT

The article analyses the series series Paysages Trouvés by Ricardo Cristofaro in a collision that favour reports specific between the referent, the questions which orientate process and analysis of writings in his presentation. The article makes the approach of the operations accomplished by the artist in the semantic building of the notion of landscape by the absence of the context of the object framed in photographs.

Keywords: Three-dimensional situations / ready-made / landscape / photography.

 

Introdução

Nos encontramos diante da situação na arte contemporânea em que qualquer procedimento, material e objeto pode migrar para o campo artístico e não há, a priori, nenhuma limitação de como se deve proceder para criar uma obra de arte, nem como estas devam parecer. A ideia de arte contemporânea não é orientada por um saber fazer específico do campo ou estilo específico, nem por uma teoria que possa delimitar o que é considerado, ou não, arte. Os artistas inventam procedimentos cruzando ações, técnicas e conceitos nos seus processos artísticos.

Diante da inespecificidade e ausência de uma narrativa reguladora da produção (Danto, 2010), na abordagem do objeto artístico a reflexão deve se colocar a questão fundamental da relação específica existente entre o referente externo, as questões que orientam o processo, e a análise da obra na sua forma de apresentação.

Essas considerações encaminham minha aproximação da série Paysages Trouvés, de Ricardo Cristofaro. Comecemos, portanto, perguntando sobre o estatuto do referente apresentado nas fotografias que compõem cada um dos grupos de trabalhos que compõem a série. Três obras dessa série foram apresentados na exposição Fazer e Desfazer a Paisagem que circulou em três instituições culturais no Brasil em 2012 e no Museu de Arte Contemporânea, RS, em Porto Alegre, março 2013. Inicialmente pode-se dizer que cada conjunto propõe o agenciamento de fotografias de objetos encontrados – pedras, fragmentos de ruínas – articuladas à apresentação de algum elemento supostamente coletado no território onde esses elementos foram fotografados.

 

O objeto isolado do contexto

As fotografias apresentam os objetos encontrados (Objets Trouvés, o título da série sugere essa referência fazendo menção explícita à operação que está implícita nos objets trouvés e nos ready-mades) num enquadramento de tal maneira centralizado, que o observador fica impedido de estabelecer relações entre o objeto e o entorno, o que tornaria possível apreender as dimensões reais do objeto (Figura 1).

 

 

Portanto, assim como o artista mostra, também oculta. Recorta eliminando o entorno do objeto na paisagem e, por esse corte, não fornece ao observador parâmetros para imaginar as dimensões do objeto. A omissão do local em que se encontra só faz aumentar a instabilidade do objeto em relação a seu referente quando se observa o terceiro elemento que compõe, juntamente com as fotografias, cada grupo da série: pequenas caixas bidimensionais contendo elementos naturais que instigam relacionar o objeto com entorno das fotografias.

A relação proposta pela apresentação desses objetos com as fotografias não é unívoca, ao contrário, apresenta-se de maneira ambivalente causando reveses quanto a possíveis relações que se pode estabelecer entre os objetos apresentados na fotografia, suas dimensões, e a paisagem onde se encontram.

Se por um lado a apresentação das fotografias justapostas ao elemento que, – presume-se, encontra-se no entorno do referente mostrado na cena – induz situar esse referente em relação à paisagem, por outro lado a falta de referências do contexto do objeto na fotografia só faz aumentar a instabilidade indicial do que Cristofaro denomina como situação tridimensional encontrada (Cristofaro, 2012).

O objeto assim isolado do contexto em que se encontra estabelece com o observador uma relação icônica. Essa maneira desdimensionada de apresentação do referente contribui para pensar a dimensão escultural de pequenos objetos que podem ser contidos na palma da mão, ainda mais devido às pequenas dimensões da caixa onde se encontram os elementos, em relação às dimensões aumentadas das fotografias.

A reunião de elementos esparsos numa mesma apresentação, em instalações bidimensionais, é uma operação recorrente nas práticas e procedimentos da arte contemporânea, diríamos. Mas o que se distingue nesse artista é a articulação de um processo fotográfico cruzado com a apresentação do objeto, numa trajetória que tem origem na escultura.

Seria possível estabelecer analogias com às "Tipologias" de Bernd e Hilla Becher? É possível mas não podemos enquadrar o processo elaborado por Cristofaro numa única técnica ou categoria: se o definirmos como escultor diremos que, no trabalho em questão, é um escultor que encontra objetos, não um escultor que esculpe. Se o quisermos definir como fotógrafo teremos de admitir que produz efeitos de esculturas com fotografias.

 

Implicações no processo das situações tridimensionais encontradas

Os trabalhos da série Paysages Trouvées, segundo o próprio artista,

se estruturam na possibilidade de uma prática escultórica realizada através de processos cruzados: identificação, seleção, deslocamento, recorte, organização e agrupamento de situações tridimensionais encontradas de maneira inesperada em fragmentos abandonados de pedras e estruturas de concreto (Cristofaro, 2012).

É preciso, portanto, considerar sua proposta a partir de uma definição expandida de escultura e de paisagem para apreender a articulação das peças que compõem as Paysages Trouvées. E para melhor situá-las faz-se necessário mencionar que o trabalho que Ricardo Cristofaro vem desenvolvendo (seus primeiros trabalhos no campo da pintura e objetos escultóricos datam de 85-88) instaura-se e fecunda-se a partir da prática da escultura para ampliar-se através de investigações de procedimentos fora dos protocolos de práticas que orientam a elaboração de objetos tridimensionais. Pode-se dizer que a tridimensionalidade é estrutural em seu trabalho, porém sua produção abrange obras em pintura, fotografia, animações e web art.

A noção de objeto é cara ao artista. A concretude física dos objetos inscreve-se na sua história pessoal pelo contato, desde criança, na oficina de conserto de máquinas de escritório de seu avô onde, ainda muito jovem, passou a trabalhar. Esses ambientes de máquinas, ferramentas e sucatas sempre o fascinou, escreve num depoimento de ordem mais pessoal na introdução de sua tese de doutorado (Cristofaro, 2007).

No processo de trabalho os conceitos de deslocamento, encontro e apropriação são caros ao artista. Ele se refere a "encontros inusitados" com objetos. Situações que o olhar percebe algo do cotidiano e o resignifica. Esses encontros se dão em situações de deslocamento podendo envolver viagens mais longas, caminhadas na cidade de Juiz de Fora, onde habita, ou deambulações em ambiente virtual como quando de sua pesquisa de doutorado. Nas Paysages Trouvées o processo se inicia com deslocamentos por territórios conhecidos ou nem tanto, e envolve a observação, coleta de vestígios, e registro fotográfico. Deslocar-se para observar e registrar o entorno próximo, tão próximo quanto dobrar a esquina da rua de casa, e por vezes longínquo, tão longínquo quanto atravessar o oceano; apropriar-se do objeto através do registro documental e de vestígios de seu entorno, é parte integrante do processo e tática para o encontro com matérias abandonadas apresentadas nas situações tridimensionais.

Nessas situações, a noção de esculturas que as imagens sugerem, dá-se pelo enquadramento das fotografias isolando o objeto e mostrando o mínimo de seu contexto. A paisagem em latência, fora de campo, na fotografia, faz parte da estratégia semântica das situações tridimensionais (Figura 2).

 

 

Deslocamentos em espaços geográficos é um procedimento recorrente na arte contemporânea para produzir experiências no campo da arte. Desde as experiências da Land Art e da Internacional Situacionista o ateliê dos artistas expande-se extra muros e são inúmeros os que realizam caminhadas e deslocamentos como parte integrante de seus processos artísticos. Podemos retroceder essa prática à primeira "visita", na periferia de Paris, à Igreja Saint Julien le Pauvre, realizada em 21 de abril de 1921 pelo grupo de artistas dadaístas reunidos em torno de André Breton, se quisermos situá-la em um contexto histórico. Na esteira desse evento em que ficou registrado a uma elaboração coletiva de um processo artístico sem produto final, seguiram-se os movimentos Land Art, Minimalismo, Fluxus e Internacional Situacionista que alargaram profundamente a noção de arte aproximando-a da vida e incorporando aos processos artísticos práticas de outras disciplinas.

Pode-se considerar o trabalho de Cristofaro a partir dessa genealogia de maneiras que no seu processo – se deslocar – constitui ato físico e simbólico de ressignificação da paisagem e da pratica da escultura no campo da arte.

Nos seus procedimentos o registro fotográfico e a coleta operam uma seleção no entorno, recortam, subtraem e agrupam os elementos encontrados para reorganizá-los numa apresentação que articula condição indicial e icônica para resignificar simbolicamente tanto o campo da escultura quando a percepção da paisagem.

Se sua estratégia envolve, como menciona o artista (Cristofaro, 2012), o uso de dois antigos dispositivos de prospecção de novos territórios: a fotografia e a coleta de materiais, recursos não específicos dos escultores mas comuns aos geólogos, antropólogos, biólogos. Seu interesse incide, no entanto, não na identificação, ordenação e classificação mas justamente no deslocamento e desidentificação dos objetos encontrados, para promover um salto simbólico na fina camada extraída do real.

 

O desencontro com a paisagem

Como são apresentadas essas paisagens encontradas? Em imagens fotográficas impressas sobre canvas preparado com prime pelo próprio artista, emolduradas e apresentadas sem vidro (como se fossem pinturas) e, como dissemos acima, um pequeno fragmento do local onde situa-se o referente da fotografia, também emoldurado em pequenas caixas de vidro.

Os trabalhos que compõem a série são mostrados em conjuntos compostos por duas fotografias emolduradas mais um elemento, díspar, coletado no local da tomada das fotos. Revisemos: três elementos, portanto, compõem essas situações tridimensionais: duas fotografias e algum elemento coletado do local onde as foram captadas. A forma de apresentação agencia assim imagens icônicas e algum vestígio que registra e sinaliza processos de transformação da matéria (Figura 3).

 

 

O olhar que o artista lança ao entorno é um olhar que gera paisagens pela falha, insuficiência e omissão, a partir do ínfimo encontrado na natureza: pedras que tropeçamos pelo caminho. O que distingue essas paisagens não é a monumentalidade da natureza ou do entorno, mas a dimensão monumental operada pelo enquadramento fotográfico. Pode-se dizer então que é o olhar que opera a metamorfose de objetos mínimos, o mais das vezes insignificantes, em esculturas monumentais.

 

Referências

Cristofaro, R. (2007) Objetos Imaturos: por uma arte objetual no contexto da artemídia. Tese de Doutorado realizada e defendida no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, Área de Concentração Poéticas Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2007.         [ Links ]

Cristofaro, R. (2012). In REY: Fazer e Desfazer a Paisagem. Catálogo de Exposição 63p. Porto Alegre: Ed. do Autor. ISBN: 978-85-914129-0-7        [ Links ]

Danto, A. (2010). Após o fim da arte. A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Edusp. ISBN: 85-314-0932-2        [ Links ]

Dubois, P. (2000). O Ato fotográfico. Campinas, SP: Papirus. ISBN 85-308-0246-2        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 8 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2012

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: sandra.rey@pesquisador.cnpq.br (Sandra Rey)

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