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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Paisagens Íntimas na obra de Brígida Baltar: "Projeto Umidades"

Intimate Landscapes in the Works of Brígida Baltar: "Project Humidities"

 

Joedy Luciana Barros Marins Bamonte*

 

*Brasil, artista plástica. Graduada em Educação Artística – Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo); Mestre em Comunicação e Poéticas Visuais – Universidade Estadual Paulista (UNESP, Bauru-SP); Doutora em Ciências da Comunicação, Universidade de São Paulo, Escola de Comunicação e Artes (USP / ECA). Pesquisadora e Professora Universitária UNESP (FAAC/DARG).

AFILIAÇÃO: Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita filho" (UNESP). Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Departamento de Artes e Representação Gráfica. Av. Eng Luiz Edmundo Carrijo Coube, nº 14-01. Bairro: Vargem Limpa, CEP 17033-360 – Bauru, São Paulo, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Esse artigo apresenta uma abordagem sobre a produção da artista brasileira Brígida Baltar (1959…), enfatizando-se as obras que compõem o "Projeto Umidades". O recorte proposto prioriza as relações de afetividade e intimidade que se delineiam na poética da artista em ações que transitam entre o interior e exterior e dão sentido à paisagem enquanto permanência sensorial e imaginária.

Palavras-chave: Brígida Baltar / arte contemporânea / processo de criação.

 

ABSTRACT

This paper presents an approach about the production of Brazilian artist Brígida Baltar (1959 -), emphasizing the works that compose the "Project Humidities." The cut proposed prioritizes relations of affection and intimacy that are delineate in the poetics of the artist in actions that move between the inside and outside and give meaning to the landscape while sensory and imaginary permanence.

Keywords: Brígida Baltar / contemporary art / creation process.

 

Introdução

As relações de afetividade na intimidade doméstica constituem presenças marcantes na obra de Brígida Baltar. Impregnadas de poesia, suas criações surgem na efemeridade da vida como registros femininos do delicado e do silencioso, expansões pessoais que ganham significados ao personificarem imagens compartilhadas em um universo de sonhos. Nascida no Rio de Janeiro (1959…), a artista brasileira multimídia tem nos vídeos e fotos os registros de seu processo criativo, ao passar pela performance, desenhos ou pinturas no chão ou em paredes. Utilizando os materiais em um continuum que os reaproveita, cria a partir do pó de tijolos, de líquidos coletados, entre outros. Da transitoriedade desses materiais e do interesse pelo que não é valorável, deu origem ao "Projeto Umidades".

Composto por fotografias e vídeos desenvolvidos entre 1994 e 2001, o "Projeto Umidades" resulta da sequência de três séries: Coleta da Neblina, Coleta da Maresia, Coleta do Orvalho. Imagens registram as ações na coleta e encapsulamento das umidades atmosféricas e para isso a artista utilizou balões, "pipetas" e pequenos frascos de vidro feitos por ela mesma para armazenar os líquidos (Figura 1, Figura 2, Figura 3).

 

 

 

 

 

 

Em uma abordagem minuciosa, sensações e sentimentos são priorizados como meios para a contemplação que constrói a paisagem a partir da preservação do intangível e do transitório, como vestígios a serem resgatados futuramente.

Interessa-me a construção da paisagem na poética de Brígida a partir do registro do efêmero, desafiando a diluição da materialidade e das linguagens artísticas como trânsitos da memória a partir da experiência sensorial. Minha ênfase está no processo de criação e manifestação do fazer artístico enquanto contemplação do ambiente, durante os quais a natureza ressurje na experiência da desmaterialização do espaço real para o poético, desconstruções imateriais à medida que ocorrem a evaporação, a limpeza, a reciclagem, a diluição. Água, ar e terra se transformando em lembranças.

Nas leituras das obras identifico-me com textos de Anne Cauquelin e Gaston Bachelard. Em "A Invenção da Paisagem" (2004) e "A Poética do Espaço" (1957) encontro trechos que parecem tratar de momentos descritos pela artista, dando-me suporte às reflexões sobre a abordagem da natureza no século XXI e sobre o convite ao espectador por meio dos valores da intimidade. Dessa forma, busco, na criação poética expressa nas ações, a permanência da memória e do imaginário.

 

1. Caminhando pelos campos

Olhar para Brígida Baltar caminhando pela névoa em meio ao campo e à praia evoca em mim a presença em sonhos, o adentrar em um ambiente de aconchego e proteção existentes somente em recônditos, o espaço externo presentificando as características, qualidades do que é interno, íntimo, como se por um instante visualizasse sensações e anseios da alma, personificações das emoções.

O "conjunto de umidades" envolve o que é intrínseco à vida, como se, ao hidratar-nos e ao sentirmos a identificação com a natureza sendo hidratada, lembrássemos de que as nossas almas são as mesmas de nossa infância, com as mesmas sede e necessidades. Nessa identificação, a alma contemplativa nos lembra a liberdade e em um gesto poético somos convidados e inseridos naquela paisagem bucólica.

Na poética da artista, nossa presença é prenhe de expectativas, pois ansiamos pelos gestos, beirando à co-autoria. Nesse instante, somos espectadores imersos nas paisagens híbridas das fotografias e dos vídeos, conforme nos diz a filósofa e artista plástica francesa Anne Cauquelin. Para ela, "A mescla dos territórios e a ausência de fronteiras entre os domínios são uma marca bem própria do contemporâneo; a paisagem não foge a essa regra." (Cauquelin, 2007, p.8). Nas obras, vejo essa flexibilização de fronteiras em vários aspectos: no exterior e interior, no material e emocional; no sensorial e etéreo. Entretanto, a intimidade parece ser o alinhavo na mescla dos territórios, na imensidão da afetividade.

O caráter mimético em relação à natureza se dissipa, do ponto de vista realista e ganha um nível emocional e perceptivo, um convite aos sonhos à altura dos elementos que são coletados nas ações da artista: névoa, maresia e orvalho. Nesse contexto, há um deslocamento do olhar criador enquanto representação sujeita à perspectiva, que garante a abertura para o que não é visível, mas interno, pessoal.

A paisagem de Brígida não está sujeita a um regime ótico, não à mimese realista, mas à mimese afetiva aberta a aspirações da alma, de completude entre o que se retrai e o que se expande. Os registros fílmico e fotográfico sinalizam instantes da memória, resíduos sensoriais a serviço de construções afetivas e perceptivas, o que nos aproxima do olhar do filósofo francês Gaston Bachelard. Na contemplação das ações poéticas, a "Poética do Espaço" é projetada:

Na alma relaxada que medita e sonha, uma imensidão parece esperar as imagens da imensidão. O espírito vê e revê objetos. A alma encontra no objeto o ninho de uma imensidão. Teremos várias provas disso se seguirmos os devaneios que têm início, na alma de Baudelaire, sob o signo da palavra vasto. Vasto é uma das palavras mais baudelairianas, a palavra que, para o poeta, marca mais naturalmente a infinidade do espaço íntimo. (Bachelard, 2008: 196)

Leio os vastos espaços nas obras como espaços de intimidade, infinitos em suas projeções internas, das quais o encapsulamento se torna uma metáfora. Bachelard, ao falar da dialética entre exterior e interior, algo extremamente presente na poética que transita entre os espaços da casa enquanto registros de afetividade e os da natureza, menciona metáforas fossilizadas ao questionar o fechado e o aberto. Entretanto, nos encapsulamentos, a névoa, a maresia, o orvalho se encontram "fechados", mas ainda os vemos (Figura 4,Figura 5, Figura 6). Essa é a garantia para que continuemos experienciando-os.

 

 

 

 

 

 

Para Brígida, o fechado não significa encerrado, aprisionado, mas protegido, envolvido e, nos frascos transparentes, observado e cuidado. Da mesma forma, os vídeos são apresentados, as fotografias, como encapsulamentos do tempo e da experiência. A artista está protegida em suas ações, "fechada" e preservada em seu universo afetivo e é exatamente esse o distanciamento que nos permite compartilhar o momento de "fossilização" dessa experiência, quando e onde não há lugar para interrupções, somente a imersão do espectador, adentrando no universo onírico, poético.

Esse "trânsito" parece ser uma devolutiva perfeita para uma artista que iniciou sua carreira no fim do período de repressão militar no Brasil (1988). Contemporânea ao grupo que compôs a "Geração 80", Baltar presenciou o momento de anistia no país, o que parece potencializar o fato de levar à público e a espaços compartilhados, conteúdos pessoais e introspectivos. Nesse contexto, a liberdade é desfrutada em sua essência e vivenciada, o que a artista relaciona ao descanso, citando Novalis para destacar essa percepção na própria obra: "O pouso da alma é o lugar em que o mundo exterior e interior se encontram" (Doctors, 2010: 5). Para ela, isso constitui uma internalização de desejos, a preservação de uma intimidade interior. Há um lugar seguro, onde a contemplação testemunha o repouso e a serenidade.

Essa internalização é levada para as obras que vieram depois, dando suporte às construções artísticas posteriores. As criações são decorrências desse lugar seguro que nasce dos ambientes da casa, das experiências de afetividade, daí a grande carga feminina na obra da artista. Há um cuidado característico natural à maternidade, que emerge das paredes, do chão, das entranhas da casa construída e biológica dando vida a "Casa de Abelha"(2002), "Utopias e Devaneios" (2005), "Floresta Vermelha" (2006), "Voar" (2012), obras expostas na 25ª Bienal de São Paulo (2002), na 17ª Bienal de Cerveira, em Cerveira, Portugal (2013), na The Nature of things – Biennial of the Americas, em Denver, EUA (2010), dentre outras mostras.

 

Conclusões

A obra de Brígida Baltar apresenta reflexões do século atual, questionamentos sobre a materialidade e permanência da obra de arte, onde ainda se encontre o que é singular. Essas questões são apresentadas em ordenações, que longe de preservarem a visão mimética da natureza, buscam na experiência humana as relações construídas a partir do momento vivido, do valor e das lembranças instauradas nessas vivências. A preocupação da artista não é o registro do que perdura fisicamente na paisagem, mas do que perdura imaterialmente. Nos elementos efêmeros como a névoa, a maresia, o orvalho, dissipados rapidamente, o momento também é desfeito. Essa paisagem é composta desde o instante em que os líquidos são capturados buscando-se a permanência dessa experiência na introspecção e no guardar, no preservar, ações impregnadas de intimidade. Momentos em que a alma, mais que o corpo, passeia pela natureza sem se esquecer de seus recônditos.

As paisagens se tornam íntimas por constituirem a presentificação da liberdade, protegida pela memória, pelo aconchego, em uma poética que resulta do deslocamento do pessoal, íntimo, entre espaços externos e internos. A criação nasce da vivência nesses espaços e do retorno aos cantos, ao interior, registrada e dispersa como a bruma, passando a contemplar os espaços da memória.

 

Referências

Bachelard, Gaston (2008). A poética do espaço. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes. ISBN: 8533624190        [ Links ]

Baltar, Brígida (c. 2010a). Coleta da maresia. [Consult. 2013-06-17] Fotografia. Disponível em http://blogmamam.wordpress.com/2010/08/30/programaprofessor-parceiro/900-brigida-baltar/        [ Links ]

Baltar, Brígida (c. 2010b). Coleta da neblina. [Consult. 2013-06-17] Fotografia. Disponível em http://celezinski.blogspot.com/        [ Links ]

Baltar, Brígida (c. 2010c). Coleta de orvalho. [Consult. 2013-06-17] Frame do vídeo. Disponível em http://www.digplanet.com/        [ Links ]

Baltar, Brígida (c. 2012a). Galeria Nara Roesler: Brígida Baltar. [Consult. 2013-08-21] Texto e fotografia. Disponível em http://www.nararoesler.com.br/sobre/brigida-baltar        [ Links ]

Baltar, Brígida (c. 2012b). Obvius. [Consult. 2013-08-21] Fotografia. Disponível em http://lounge.obviousmag.org/restos/2012/04/brigida-baltar-em-buscado-efemero.html        [ Links ]

Canton, Kátia (2009). Espaço e lugar. São Paulo: Martins Fontes. ISBN: 9788578272272        [ Links ]

Cauquelin, Anne (2008). A invenção da paisagem. Lisboa: Edições 70, ISBN: 9789724414041.         [ Links ]

Doctors, Marcio (2010). Passagem secreta: livro da obra de Brígida Baltar (Prêmio Conexão Artes Visuais Funarte). Rio de Janeiro: Circuito. ISBN 10: 8564022001.         [ Links ]

Instituto Cultural Itaú (2007). Brígida Baltar. [Consult. 2013-08-08] Banco de dados. Disponível em http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=1286&cd_item=2&cd_idioma=28555a        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 28 de agosto e aprovado a 24 de setembro de 2013

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: joedy@faac.unesp.br (Joedy Bamonte)

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