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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Anna Mariani e as casinhas nordestinas

Anna Mariani and houses northeastern

 

Silvia Helena dos Santos Cardoso*

 

*Brasil, artista/fotógrafa e antropóloga. Doutora em Artes e Mestre em Multimeios / Instituto de Artes / UNICAMP e Bacharel em Ciências Sociais/Antropologia / FFLCH / uSP. Professora universitária – Centro universitário Belas Artes de São Paulo e Universidade Nove de Julho.

AFILIAÇÃO: Universidade Nove de Julho. Centro universitário Belas Artes de São Paulo. Centro universitário Belas Artes de São Paulo, CEP: 04018-010, São Paulo, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O artigo contextualiza o ensaio fotográfico da fotógrafa/artista brasileira Anna Mariani acerca das fachadas das casas na região nordeste do Brasil. A cor é o principal elemento tratado como fenômeno de percepção visual e de identidade cultural. A obra contempla o cenário da Fotografia Brasileira e Arte Contemporânea.

Palavras-chave: Fotografia / Paisagem / Arte Contemporânea / Arte Brasileira / Nordeste Brasileiro.

 

ABSTRACT

The article contextualizes the photo shoot of photographer / Brazilian artist Anna Mariani on the facades of the houses in northeastern Brazil. Color is the main element treated as a phenomenon of visual perception and cultural identity. The work includes the scenario of Brazilian Photography and Contemporary Art.

Keywords: Photography / Landscape / Contemporary Art / Brazilian Art / Brazilian Northeast.

 

Anna Mariani e a Fotografia Brasileira

O primeiro contato com o ensaio fotográfico de Anna Mariani (1935) aconteceu nos anos 80 do último século. As fotografias revelavam certa delicadeza no registro das casas e, especificamente, das típicas fachadas coloridas da região nordestina brasileira. A memória não é suficiente para recordar o espaço expositivo da obra, mas aquele conjunto de imagens ficou verdadeiramente gravado como um assunto a ser pesquisado posteriormente.

Naquela data, a cena artística e fotográfica no Brasil atravessava uma transformação: finalmente "as coisas" do país passavam por uma valorização e a cultura brasileira começava ou recomeçava a encontrar o seu lugar na história da arte latinoamericana. Ao mesmo tempo em que os artistas encontravam espaço para colocar obras de caráter universal no insípido mercado de arte, os fotógrafos começavam a redescobrir a cultura local. É verdade que o interesse pela cultura popular é marcado por um movimento de vai e vem: ora muito valorizada, ora muito desprezada. Contudo, a partir daquelas duas últimas décadas, a cultura popular brasileira passou a ser encarada com maior seriedade e estima.

Neste contexto, a fotógrafa soteropolitana Anna Mariani expôs o resultado de inúmeras viagens por sete estados brasileiros – Bahia, Alagoas, Sergipe, Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte –, não nesta ordem, mas a Bahia, estado de nascimento da artista, foi o primeiro a revelar a beleza das populares casinhas coloridas. O trabalho começara em meados dos anos 70 com fotografias pretos e brancos como anotações e, posteriormente, com os diapositivos coloridos, pois segundo a fotógrafa, a cor das fachadas revelava o universo poético do homem nordestino, sempre lembrado por sua força bruta, à luz de Euclides da Cunha (1866/1909), escritor de Os Sertões (1902). Mariani se dedicou a registrar a paisagem nordestina, mas não o cenário natural, ao contrário, uma paisagem construída: as fachadas frontais das casas. Se o conceito de paisagem é construído em diferentes teóricos, o arquiteto italiano Aldo Rossi (1931/1997) traz a definição de paisagem construída para todas as coisas que são culturalmente criadas (Fortes, 2009). A paisagem da natureza não é exclusiva, encontramos outras paisagens: a paisagem construída é aqui o foco, uma vez que as fachadas das casinhas brasileiras são culturalmente idealizadas, como mostra a Figura 1.

 

 

 

A cor como identidade cultural

O ensaio fotográfico de Anna Mariani foi tratado como uma grande novidade no mundo imagético brasileiro, uma vez que as coloridas fachadas já eram conhecidas pelos viajantes estrangeiros e nacionais, mas nunca haviam sido expostas num espaço de arte. A beleza das casinhas atestava a singularidade das fachadas coloridas e denominadas pelo habitante local por pintura. Aquelas pinturas tinham a cal pigmentada como tinta e a sua diluição responsável pelo maior ou menor contraste da cor, ora muito saturada, ora muito suave. Não só a fachada, mas também os ornamentos e os enfeites, conhecidos por platibandas, eram pintados. Estas decorações muitas vezes com desenhos florais e/ou elementos vazados, que lembram os cobogós, elemento arquitetônico que facilita a passagem do ar e também da luz natural e artificial entre o exterior e interior de um ambiente, recebem uma cor diferente. A cor principal da fachada é associada às outras cores, sejam nos ornamentos, nas portas e nas janelas, como na Figura 2.

 

 

A combinação entre as cores – duas ou mais matizes – revelam certa harmonia: azul/azul claro; rosa/marrom; rosa/amarelo; amarelo/branco; rosa/verde/ branco; entre outros, são reunidos e marca uma identidade, certo temperamento familiar ou do chefe da família, um trabalho genuíno apesar de algumas referências sociais e locais, e muitas vezes religiosas.

Contudo, o que é a cor para o nordeste brasileiro? Para o homem nordestino? O significado da cor, da pintura é consciente? São apenas questionamentos. Não existe uma resposta precisa, mas sabemos que a construção das fachadas destas casas com cores e detalhes específicos está no domínio do fenômeno cultural.

Na publicação de Pinturas e Platibandas (2010) de Anna Mariani, volume com cerca de 200 fotografias de habitações populares realizadas no período entre 1976 e 1995, confirmamos que a fatura da pintura tem a cor como elemento diferenciador. A arquitetura é vernacular e popular, e conta muitas vezes com a simples presença de uma porta e uma janela, quando não, se observam um elemento decorativo à luz da natureza – flores e folhas – ou a data da construção. Contudo, é a cor que marca a diferença: a tonalidade forte acentua certo destaque com relação às outras casas; uma tonalidade mais suave expressa delicadeza, o que também chama atenção através do tom pastel.

Nesta paisagem, um jogo competitivo marca a concorrência entre os habitantes locais: se internamente as casas são equivalentes quanto à arquitetura e, especificamente, a divisão interna (quartos, sala, cozinha; o banheiro costumava estar fora da casa), externamente, a fachada marca o espaço público e nesta área todas as singularidades culturais são reveladas. Certa vez, uma moradora disse que '... não consigo entrar um ano sem pintar a fachada da minha casa...'. É como uma roupa nova, um vestido novo, como escreveu o cantor brasileiro Caetano Veloso (1942) no catálogo da exposição (Mariani, 2010), '... a cidade fica endomingada...', com referência ao domingo quando as pessoas vestem roupas novas, se arrumam para sair. Nestas ocasiões, geralmente festas religiosas, as casas e suas fachadas expressam a felicidade dos seus moradores. A fachada acaba por determinar a relação que o morador deseja estabelecer com o visitante externo.

O estudioso suíço Johannes Itten (1888/1967) escreveu que 'cada um tem sua própria concepção de harmonia cromática' (Barros, 2006: 78). Sendo assim, o gosto e o temperamento são duas características relevantes para entender a cor e seus usos nas fachadas das casinhas. Além do elemento arquitetônico, já escrito, a cor e sua combinação revelam certa dinâmica, uma vez que a escolha pode mudar de um ano para outro, a cor da pintura não permanece eternamente, a exceção de alguns casos, mas até mesmo o tempo – o desgaste – dá conta do esmaecimento da cor, o que acaba por transformá-la em outra matiz, conseqüentemente, apontando para outra percepção visual e, portanto, cultural, como na Figura 3.

 

 

A cor é um fenômeno físico porque depende da luz para existir, como enfatizou o cientista inglês Issac Newton (1643/1727), contudo não é só isso, é percepção visual também – os olhos e o sistema cerebral são os aparelhos da visão e da interpretação da cor – e tal percepção está no universo da cultura, portanto cor pode ser tratada como uma manifestação cultural. Se a cultura é a ferramenta que orienta o homem, a percepção da cor, não está só no plano fisiológico da visão, mas também está para a associação psicológica da percepção visual, somadas às suas qualidades estéticas, como tratou o estudioso alemão Johann Woefgang von Goethe (1749/1832) em Doutrina das Cores (1810).

Goethe apresentou uma visão mais ampla e livre acerca da percepção visual e, também, da cor, uma vez que reconhecia o elemento subjetivo no processo de criação poética, e de reconhecimento e combinação da cor.

Em última análise, a cor é um fenômeno fascinante que desperta sensações, interesses e deslumbramentos, como salientou Barros (2006). Neste percurso, o elemento subjetivo deve ser considerado no processo de significação cromática, pois no trabalho criativo a intuição é um instrumental quando do trabalho com cor e cores.

 

Considerações Finais

A análise aqui desenvolvida não pretende uma perspectiva redutora. Não está somente para a Antropologia que estuda a cultura como fator preponderante para a compreensão da natureza humana. Como somente para questões relacionadas à beleza, à estética e/ou técnicas da fotografia. Contudo, nossa perspectiva é tentar trazer à luz a cor como característica importante e de destaque na região nordestina brasileira, como na Figura 4.

 

 

A cor nas fachadas é tratada como pintura pelos próprios habitantes. A pintura já esteve somente sobre a tela, mas agora no cenário contemporâneo a pintura é reconhecida em perspectiva expandida: na parede, no mural, no chão, na fachada. Todas são pinturas. O que querem dizer?

As casinhas nordestinas e, especificamente, suas fachadas com suas cores e ornamentos funcionam como cartão de visita, um convite, ao menos, para observar a casa. Neste raciocínio, a cor representa também um fator de sociabilidade – contempla uma dinâmica social – uma interação entre os locais e os estrangeiros.

O artista escocês David Batchelor (1955), em palestra recente em São Paulo (agosto de 2013), afirmou que 'a cor nos expõe ao mundo'. Nesta perspectiva, as casinhas coloridas revelam certa percepção dos moradores das cidades registradas por Anna Mariani sobre o mundo. Não existe um padrão único, apesar da semelhança entre as pinturas; as casas contam muitas vezes com uma porta e no máximo duas janelas, e com alguns ornamentos simétricos, geométricos, florais. Contudo, quase sempre as portas e as janelas estão fechadas. Por quê? Tal característica também foi observada em outras regiões de clima muito quente. Será a temperatura um fator determinante?

As pessoas não estão presentes nas fotografias de Mariani, entretanto elas estão lá, são representadas através das cores: fortes, suaves, contrastadas, vivas, desgastadas, saturadas, como se fossem obras minimalistas. Mas tal referência – Minimalismo – é outra conversa, outro artigo.

A fotógrafa/artista Anna Mariani inseriu definitivamente a paisagem construída das fachadas coloridas das casinhas nordestinas no contexto imagético da Fotografia Brasileira – como documento iconográfico e expressão cultural –, e acabou por enfatizar a poética visual popular que por muito tempo fora ignorada.

 

Referências

Barros, Lilian Ried Miller (2006) A cor no processo criativo: um estudo sobre a Bauhaus e a teoria de Goethe. São Paulo: Editora Senac São Paulo. ISBN: 978-85-7359-877-3.         [ Links ]

Batchelor, David (2001) Minimalismo; tradução de Célia Euvaldo. São Paulo:Cosac Naify Edições. ISBN: 85-86374-28-8.         [ Links ]

Cauquelin, Anne (2007) A invenção da paisagem. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins. (Coleção Todas as Artes). ISBN: 978-85-99102-53-4.         [ Links ]

Fortes, Hugo (2009) "Natureza e artificialidade nas paisagens aquáticas contemporâneas". In: Poéticas da Natureza. São Paulo: PGEHA/Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. ISBN: 978-85-7229-637-1.         [ Links ]

Mariani, Anna (2010) Pinturas e Platibandas. São Paulo: Instituto Moreira Salles. ISBN: 978-85-86707-48-3.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: silvia.cardoso@uninove.br (silvia Cardoso)

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