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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A viagem e a paisagem dentro-fora no filme de estrada Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz

The Journey and the Inside-Out Landscape on the Road Movie "I Travel Because I Have to, I Come Back Because I Love You", by Marcelo Gomes and Karim Aïnouz

 

Marcio Maarkendorf*

 

*Brasil, escritor. Doutorado em Teoria da Literatura e Licenciatura em Letras.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Faculdade de Cinema, Departamento de Artes e Letras. Centro de Comunicação e Expressão, bloco B, sala 431, Campus universitário Reitor João David Ferreira Lima, CEP 88040-900, Florianópolis, Estado de Santa Catarina, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo foca-se no tratamento da viagem no cenário contemporâneo, especialmente quanto à relação fundamental entre os filmes de estrada e as paisagens. Ao adotar uma perspectiva de artes comparadas, a análise proposta toma a travessia geográfica como instrumento para o reconhecimento dos estranhos territórios espirituais do viajante, a sua geografia interior, e aponta para uma identidade da paisagem dentro-fora.

Palavras-chave: relato de viagem / road movie/ paisagem / artes visuais / mestiçagens poéticas.

 

ABSTRACT

This article focuses on the treatment of travel in the contemporary scenario, especially regarding the essential relationship between road movies and landscapes. By adopting a perspective of comparative arts, the proposed analysis takes geographic crossing as a tool for the recognition of the traveler's spiritual foreign territories, its interior geography, and points out to an insideout landscape identity.

Keywords: travel report / road movie / landscape / visual arts / crossbreading poetics.

 

A viagem e o desenho do espaço-imagem

Os relatos de viagem são narrativas construídas em torno de um eixo espacial de deslocamento, característica que não implica o descréscimo da realidade temporal, mas que indica a prevalência descritiva do espaço em detrimento do tempo. O viajante, significa dizer, não experimenta a época do seu deslocamento como algo imprevisto ou estranho e, sim, o lugar de trânsito, pois este é um elemento marcado por diferenças de várias ordens (geográficas, políticas, humanas, culturais etc.). Assim, ao contrário de outros tipos de viageiros, para os quais o tempo assume a condição axiforme, o narrador dos relatos de viagem toma o percurso espacial como fonte de experiências, especialmente quanto ao aprendizado das tradições comuns a outras fronteiras geográficas (Benjamin, 1994).

A experiência da viagem descreve, além disso, um sentido metafórico para a existência humana, uma vez que o deslocamento espacial é um tipo de "viagem da alma" (Graziani, 2000: 223), trajetória marcada pela fortuidade do destino físico e religioso. Imbricado à ideia de fado do viajante, o espaço de trânsito assume, portanto, função de personagem nas narrativas, razão pela qual certo paisagismo torna-se um componente fundamental de legibilidade desses relatos. Por isso, mais importante que o reconhecimento de outras geografias, o mérito da travessia talvez esteja na capacidade de alargar o espaço imaginário coletivo. Um território, afora a fronteira político-geográfica, é construído por diferentes discursos semióticos, conversores da experiência do deslocamento em representação, fenômeno que, em última análise, implica na ficcionalização da territorialidade e do próprio ato de viajar.

Os relatos de viagem, dentro de tal contexto, constituem um ato narrativo de invenção de paisagens, no qual o território ganha substância pelo desenho de um espaço-imagem particular, uma landscape potencialmente simbólica. Tal conceito será importante para teorizar acerca da poesia imagética expressa nas descrições de cunho dépaysement do viajante, sobretudo nas manifestações de errância pós-moderna dos road movies. Ao adotar uma perspectiva de artes comparadas, a análise proposta toma a travessia geográfica como instrumento para o reconhecimento dos estranhos territórios espirituais do viajante, a sua geografia interior, e aponta para uma identidade da paisagem dentro-fora.

 

1. A paisagem nos road movies

A paisagem, por um lado, segundo a tradição das artes plásticas, é uma construção subjetiva do olhar, razão pela qual pode ser representada de diferentes formas, conforme o grau de deslumbramento do visitante, as experiências de alteridade mantidas com o meio natural, bem como as tensões entre as diferentes realidades espaciais e o prévio imaginário estereotipado. Por outro lado, vale ressaltar, não é apenas o sujeito que pensa a paisagem, mas também a paisagem pensa o sujeito. A diferença da topografia, por confrontação, leva o viajante a traduzir-se como outro, processo no qual o desenho da geografia cria uma identidade entre o interior-alma e o exterior-paisagem. Dada esta potência de desvelamento, pode-se dizer que há um tipo de poesia espiritual nas paisagens dos relatos de viagens e, muito especialmente, nas dos filmes de estrada.

Para além do impressionismo do narrador de itinerários exóticos, os personagens dos road movies incorporam ao cerne do relato de viagem uma deliberada extinção de um eu – o da partida – para a invenção de outro – o da chegada. O viajante, segundo esta narrativa cinematográfica, apenas daria por terminada a jornada quando tivesse produzido uma identidade subjetiva menos fraturada, razão pela qual as paisagens encerram um sentido metafórico de peregrinação da alma por um horizonte móvel. Trânsito este que implica um abandono dos arredores subjetivos da consciência e o avizinhamento do viajante aos espaços mais distantes da geografia de sua própria imagem, movimento que elabora um sutil olhar etnográfico sobre si mesmo.

Na obra audiovisual Viajo porque preciso, volto porque te amo, dos cineastas brasileiros Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, o geólogo José Renato atravessa o sertão nordestino de carro para avaliar a possibilidade de construção de um canal conector da região do Xexéu ao Rio das Almas. O caráter necessário da viagem, como bem expressa o título, de ordem profissional, é sublinhado pela razão mais urgente que impele esta "viagem da alma": o protagonista, ao mesmo tempo em que lança um olhar técnico sobre o ambiente de trânsito, move-se pela "história rochosa" dos próprios terrenos da intimidade. Abandonado pela companheira Joana, alcunhada de "galega", não percebeu outro modo de elaborar a perda que não fosse o alheamento do seu espaço familiar, forçado por um tipo de experiência dépaysement pelo sertão nordestino, e certo recalcamento permitido por uma condição de forasteiro na paisagem árida pela qual se movimenta.

Ao longo do percurso, como será possível depreender, o que preenche boa parte do campo de visão do motorista-narrador tem a forma de uma moldura, pois ele percebe a realidade através da janela do veículo. Para o cineasta iraniano Abbas Kiarostami, o carro

Não se trata apenas de um meio de locomoção que nos leva de um lugar a outro, é também uma casinha, um habitáculo muito íntimo com uma grande janela cuja vista não para de mudar. Você nunca encontrará uma casa assim na vida real, pois a vista que se tem das janelas de uma casa não muda [...] a janela do carro é grande e, além disso, como numa tela de cinemascope, reflete o movimento. [...]. (Bernadet, 2004: 40)

No paralelo entre artes visuais e road movies há vários enquadramentos possíveis: janelas (Figura 1), fotografias, "murais". Entretanto, para além desse olhar enquadrado da realidade, há outra delimitação, interior, a soulscape que torna a árida landscape uma narrativa ancilar da estagnação do sujeito amoroso, condições que desenham um espaço-imagem irritantemente estável: "Mal comecei a viajar e tudo já me irrita. A paisagem não muda, é sempre a mesma coisa. Parece que não saio do lugar", afirma José Renato a certa altura. Ou, segundo outra reverberação, ocorrida em vista da aparente repetição das medidas das fraturas geológicas, o viajante expresse uma experiência exasperante de monotonia e isolamento opressivo porque só percebe solidão diante de si. As fraturas geológicas se repetem; a paisagem repete o sujeito fraturado.

 

 

Ademais, o carro é um espaço intimista para José Renato porque na imobilidade do automóvel, por estar muito tempo sentado em uma paisagem móvel, é possível olhar para a inércia interior. É quase um paradoxo do "movimento estático" (Kiarostami apud Bernadet, 2001: 95): o protagonista em still life. "Dentro de um carro", afirma Kiarostami, por não conter nada de supérfluo "é o melhor lugar para olhar e para refletir" (apud Bernadet: 2001: 41). Nesta poética do paisagismo em movimento que é o road movie, há uma profunda interação entre o mundo pessoal e o mundo exterior.

No filme analisado, o espectador não vê o viajante, podemos apenas construí-lo mentalmente por meio da voz em off sobreposta ao cenário de travessia. A presença vocal funciona como metonímia do corpo e força motriz do enlace entre comentário, memória e paisagem. Na verdade, o espaço-imagem construído pelo olhar comentado leva José Renato a confessar parte do seu imaginário cartão-postal: "Tô cruzando uma estrada inteira, num por do sol romântico. Lembro do nosso último por do sol juntos, lá na Praia do Futuro." Com exceção deste momento, o resto do espaço é vivenciado como expressão simbólica do abandono, do isolamento forçado, da tentativa inútil de esquecer.

O objetivo-ouro da viagem do narrador é a fuga do fracasso conjugal, escapatória constantemente frustrada por conta do pensamento da paisagem – o cenário, por sua presença maior que a do narrador fora de campo, mobiliza o motorista a vocalizar o que vê e responder ao que a natureza diz. O título do filme, retirado de um grafitti de banheiro, torna-se a premissa da narrativa, chegando a ser contrariada por José Renato em dado instante: "Viajo porque preciso, não volto porque ainda te amo." Assim, transmutando o espírito ao longo da viagem, o viajante abandona a visão monótona e afirma a transitoriedade: "Nada é eterno, nem um acampamento de beira de estrada. Nem as falhas geológicas. Nem o amor é eterno. Até o amor se acaba." Experimentada como travessia necessária à alma do personagem-narrador, a viagem pela paisagem árida permite a admissão de uma realidade metafórica – a mutação das paisagens, o encerramento de todas as jornadas, o fim de todas as histórias. Da mesma forma que a história da abundância da terra teve um fim ao tornar-se sertão.

Para José Renato são as lembranças que tornam a viagem menos maçante; ou, pelo contrário, são exatamente as recordações que tornam o trânsito tristonho, de modo que a viagem constitui uma fuga e uma necessidade de aprofundar-se na solidão. Por isso, o viajante tem um pesadelo: sonha que por conta de uma dor de cabeça persistente, o médico abre-lhe a cabeça com um bisturi e tira pedaços do corpo de galega de dentro dele. Esta somatização introduz um estado: a viagem, em vez de levar para o espaço adiante, leva o viajante para trás no caminho mnemônico, levando-o a recordar o dia em que a mulher o abandonou. É insuportável a sensação de não ter mais um território para o qual voltar – este é um tipo de exílio indeterminado e atemporal. Se a viagem era para esquecer, a quietude da solidão só torna a lembrança ainda mais vívida no vazio da estrada. E se o lar é um tipo especial de lugar afetivo, José Renato não tem mais para onde voltar, ao menos por enquanto, é um coração sem teto, trafegando errante por uma estrada dura, uma landscape árida, na qual projeta parte de sua soulscape endurecida, uma paisagem de alma triste e imigrante.

 

Conclusão

Como é possível perceber no filme de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, a paisagem funciona mais que um expediente narrativo de expressão romântica da subjetividade, pois a natureza representada funciona como instrumento para tornar visível o invisível, isto é, presentifica o desenho de um espaço-imagem que elabora reciprocidade estável entre interior e exterior. O cenário atravessado pelo personagem em sua errância propicia uma iluminação íntima no translado do eu de uma fronteira a outra, alargando o espaço interior por meio do espaço coletivo da paisagem. Assim, a fronteira simbólica da geografia proporciona uma arqueologia dos objetos afetivos do sujeito, o que faz da viagem uma espécie de escavação da alma e do cenário, um desenho do espírito individual sonegado ao amor.

 

Referências

Benjamin, Walter (1994) "O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov." In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. ISBN: 8511120300        [ Links ]

Bernadet, Jean-Claude. (2004) Caminhos de Kiarostami. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN: 8535905715        [ Links ]

Graziani, Françoise (2000) "Descobertas." In: BRUNEL, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio. ISBN: 8503006111        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: marcio.markendorf@ufsc.br (Marcio Maarkendorf)

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