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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013

 

DOSSIER: ARTIGOS ORIGINAIS POR AUTORES CONVIDADOS

DOSSIER: INVITED ORIGINAL ARTICLES

À espera

Waiting

 

Margarida P. Prieto*

 

*Par académico da Estúdio. Artista visual e coordenadora da licenciatura em Artes Plásticas da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Membro do CIEBA.

AFILIAÇÃO: Portugal, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos de Belas-Artes. 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

A coincidência de espaços sagrados – o do culto e aquele, aberto pela criatividade artística – faz nascer o desenho de observação de um lugar: a Loca do Anjo em Fátima, sítio de aparições e cenário paisagístico.

Palavras-chave: invisível / natureza / paisagem / desenho / pintura.

 

ABSTRACT

The coincidence of spaces – the sacred and cultural and that of artistic creativity … gave birth to an observation drawing of a place: The Local of the Angel in Fátima, a place of apparitions and a landscape scenario.

Keywords: visible / invisible / nature / landscape / drawing / painting.

 

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
Admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por Ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, Isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que de um pássaro sem voos

Por isso, se escreve, por isso se diz, por isso se publica, Por isso se declara e declama um poema:

Para guardá-lo: Para ele, por sua vez, guarda o que guarde: Guarda o que quer que guarda um poema: Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

– António Cícero, Guardar.

Introdução

João Paulo Queiroz é um artista visual português cujo singelo percurso artístico mostra uma particular incidência sobre o tema da paisagem. Desde 1995 é Professor na FBAUL onde concilia a investigação académica com o trabalho criativo, dedicando-lhe um tempo de ócio lectivo. É sobre a criação dos desenhos-pintura feitos na Loca do Anjo que este artigo se foca. Cada ano origina um ou mais conjuntos mas o projecto constitui um ciclo que começou em 2005 e continua até ao presente (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4, Figura 5, Figura 6).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1. A Loca do Anjo

A metodologia do trabalho artístico de João Paulo Queiroz coincide com uma experiência artística in loco feita a partir do conceito de paisagem, na sua definição de olhar estético sobre o natural.

Um lugar – o da sua contemplação – é tomado como modelo: A Loca do Anjo. Lugar de origem do desenho deste artista é, igualmente, o da primeira aparição de um Anjo. O Anjo é a figura de anunciação através da qual o "a" de "anunciar" determina a ligação entre duas ordens distintas: a sagrada e a profana. Por seu lado, o artista é o enunciador e o "e" do seu enunciado determina-se na passagem do que é visto (observado) para o seu registo (representado). O Pintor, tal como o Anjo, prepara um acontecimento no futuro: ambos têm funções de mediação.

No isolamento de uma prática artística au plein air que resulta de uma obediência (auto imposta) regular e rigorosa, ano após ano neste cenário natural, a Natureza revela-se para o artista como uma escrituração encriptada. O esforço da observação (sempre votado à falha) é feito na direcção da descodificação dessa escrita (divina?). A repetição do cenário e a alteração do ponto de vista são reveladores de uma natureza que gosta de se esconder, impondo ao olhar esse saber ver no obscurecido onde o artista procura o que se escapa. A natureza constitui o cenário paisagístico destes desenhos-pintura. É presença (modelo) e pressentimento (devir).

Ao cansaço inevitável, que revém da regularidade desta prática artística de observação de um mesmo cenário paisagístico, acumula-se a persistência de voltar ao lugar num ritual criativo que releva de uma espera atenta, no tempo onde a observação se traduz plasticamente. Dos papéis brancos, passando pelos coloridos, até aos negros, a imagem emerge como se saísse da noite. Dá-se a ver, luminosa, ao olhar que procurou, atento ao visível, que tentou descobrir o que está para lá dele: ut ex invisibilibus visibilia fiat.

 

2. Dos desenhos-pinturas

Mais do que desenhar, trata-se de pintar, numa aliança do gesto que traça com a sobreposição do pastel d'óleo em camadas de cor e matéria. Um raciocínio de livre associação remete para a descoberta dos lápis de cor por Klee que lhe permitiu intersectar o traço do desenho com a cor da pintura.

A observação assume um carácter científico. Trata-se de uma análise que trespassa a superfície, de um visionamento em profundidade, atento, que procura dar a ver as suas descobertas. Cada desenho é testemunho deste exercício: guarda-o e documenta (porque é registo) o que o artista observa no lugar eleito.

Em 1916 – quase há um século – dá-se a primeira aparição do Anjo neste lugar. Um século é, justamente, o termo que indica a vida vivida, o da experiência da passagem: sæculum é o tempo da vivência humana no mundo. Também a criação destes desenhos depende inteiramente da duração de um tempo, aquele que deixa suspensa uma outra actividade, a do ensino; um tempo que, como verdadeiro amador, como aquele que ama, o artista dedica-se à arte. No isolamento imprescindível desta prática pictórica au plein air, cada desenho deriva da disciplina, do rigor da observação, do esforço da rotina, da resistência aos tempos cronológico, atmosférico e aos ciclos dia-noite, ano a ano. A perseverança da observação é estendida por vários dias e, em cada um, enquanto a luz é suficiente para permitir a anotação, independentemente da chuva, do sol ou da neblina. Como num ritual, o artista segue uma rotina determinada a priori e qualquer alteração climatérica vem temperar o registo artístico. Se o sol cega, com o extremo brilho da sua luz, também ilumina as pedras, as árvores, as ervas, os pássaros e é responsável pela projecção de sombras próprias e projectadas que indicam a hora do dia, libertando uma velatura transparente de amarelo, de azul, de anil, pela manhã, pelo meio-dia e ao final da tarde. Por seu lado, a chuva vem cobrir a natureza de um brilho que, como um verniz, acentua as suas cores, permitindo ao artista contemplar e distingui-las na sua exuberância e reproduzi-las segundo os códigos da representação.

 

3. A espera

A cada dia, um conjunto de desenhos espelha um exercício activo de espera. À espera de um contacto extra ou contido na própria observação que despoleta o processo criativo. À espera de um conhecimento ou antes, de uma sabedoria do mundo. A natureza (do grego physis) como natura naturata, é percepcionada como uma aparição, é manifestação de uma natura naturans, de uma força (divina?).

A natureza, ao passar para a ordem das representações, desnaturaliza-se pela arte e muda o seu estatuto, tornando-se paisagem. Paisagem é a natureza tomada como objecto de observação e de representação artística. O termo define o olhar que confere um carácter estético ao território natural. "Território", termo neutro porque permanece alheio à presença de um observador, afasta-se de "Paisagem" que, por sua vez, contém o imprescindível trânsito que faz a relação entre o lugar (natural) e o homem (cultural).

No silêncio e na solidão deste lugar, habitado pela natureza, visitado (um dia) pelo Anjo e revisitado pelo artista, os desenhos-pintura mostram um constante reposicionamento e deslocação do corpo e do olhar que observa. Como o cenário se mantém, o artista é levado a uma constante alteração do seu ponto de vista face aos modelos e referentes naturais. O seu olhar é predatório como no voo de um pássaro: procura e espera. (Im-)paciente, duvida do que a Natureza parece mostrar: o ritual da criação é transposto para um ritual de criatividade, na suspeita de que há mais para ver do que aquilo que o olho capta. Phusis kruptesthai philei ou "a Natureza gosta de se esconder".

Num jogo tranquilo e atento de perseguição do visível, o artista caminha e atravessa a área designada como Loca do Anjo para descobrir cada ponto de observação e reinventar os múltiplos registos deste lugar, para os guardar no papel. Umas vezes, o enfoque faz-se sobre o chão, sobre a terra e as pedras pesadas, sobre os troncos maciços das oliveiras; noutras, a atenção projecta-se sobre as copas das árvores, dirige-se à luz que as atravessa formando uma reticula luminosa e celestial; noutras, distingue planos aproximados onde os pormenores mostram cada elemento natural caracterizado e descrito detalhadamente; noutras ainda, exibe um plano afastado, numa visão panorâmica que permite captar a cena na sua totalidade, em amplitude e profundidade. A Loca do Anjo é, assim, guardada nestes desenhos-pintura porque, através deles, outros a verão. São os movimentos de deslocação do corpo e do olhar face ao (mesmo) cenário que permitem reencenar o espaço pictórico; que abrem a possibilidade de constituir uma prática da observação enquanto método de apropriação da natureza constituindo-a enquanto paisagem.

Trata-se, contudo, de uma paisagem particular: um pomar onde já só existem oliveiras, onde todas as ocupações culturais foram abandonadas e esquecidas e, pela aridez do solo, a horta desapareceu. Etimologicamente, "horta" é o primeiro significado de jardim que, por sua vez, veio a designar o fim como fronteira que separa propriedades, o limite. A Loca do Anjo tem similitudes com o jardim original, o do Paraíso descrito no Livro do Génesis (2:8-15) como um lugar ameno. Embora a aridez seja evidente, o lugar do Anjo é transfigurado em paisagem ideal, conceito com três desdobramentos e imaginários, a saber: a paisagem concebida como um jardim (por Deus), a natureza ainda selvagem mas dotada pelos deuses e o ambiente do amor pastoril (Delumeau, 1992: 17). Nesta transfiguração é acrescentado um quarto desdobramento gerado na articulação entre este lugar, árido e inabitado, e o horizonte de expectativa contido na experiência do artista cujos testemunhos vêm dar sequência a um imaginário herdado dentro da tradição cristã. O aparente despovoamento e abandono a Loca do Anjo contradiz a identificação do lugar, indicava de uma ocupação, da presença do divino. Nesta terra "desocupada", o divino retirou-se da presença: passou para um outro regime, suspenso entre a pura ausência e a distância infinita (Nancy, 2003: 101-119). Contudo, para um artista, não faz sentido esperar ou reclamar "fazer o invisível visível", o desconhecido conhecido, o impensável pensável. Pode retirar conclusões sobre o invisível; pode postular a sua existência com relativa certeza mas tudo o que consegue representar é uma analogia, que se quer equiparar ao invisível mas não o substitui (Richter, 1995: 11).

 

Conclusão

As camadas de pigmento sobrepostas transparecem umas nas outras, fazendo reverberar cada elemento representado com uma enorme riqueza cromática. Neste exercitar da observação, o artista anseia por ver "através". Executa uma travessia do olhar sobre o plano da visibilidade em direcção ao in-visível. O "in" de invisível é, precisamente, aquele lugar dentro do visível que não é de ordem óptica (escapa aos instrumentos científicos como os óculos, o microscópio, o telescópio). Trata-se de uma visão em profundidade que, através da observação do natural, espera um acesso. Assim, estes desenhos são o resultado de um atravessamento da ordem da observação e, igualmente, da travessia do corpo na sua experiência vivencial na Loca do Anjo: uma experiência onde o artista se enraíza no lugar. Não são os elementos da natureza que pousam para o Pintor mas o Pintor que, pousado naquele lugar como uma pedra, repousa o seu olhar atento, criativo, analítico, trespassante, sobre o cenário natural, transfigurando-o, pela representação, em paisagem e, nesta passagem, dá a ver aquilo o que é distinto: o lugar sagrado da criação. É deste modo, estes desenhos-pintura vêm actualizar e perpetuar o imaginário visual e literário do Jardim do Paraíso.

 

Referências

Delumeau, Jean (1992), Uma história do paraíso. O Jardim das delícias. Trad. Teresa Perez. Lisboa, Terramar.         [ Links ]

Heraclito, fragmento 123 (segundo a tradução de Pierre Hadot).         [ Links ]

Nancy, Jean-Luc (2003), "Dépaysement", in Au fond des images. Paris, Galilée, pp. 101-119.         [ Links ]

Richter, Gerhard, (1995) The Daily Practice of Painting – Writings and interviews 1962-1993. London, Thames & Hudson, (1ºed.         [ Links ])

 

Artigo completo recebido a 20 de setembro e aprovado a 30 de setembro de 2013

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: emam.margaridaprieto@gmail.com (Margarida P. Prieto)

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