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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Kiluanji Kia henda: Ficção, Ironia, Desconstrução

Kiluanji Kia Henda: Fiction, Irony, Deconstruction

 

Teresa Isabel Matos Pereira*

 

*Portugal, artista plástica. Licenciatura em Artes Plásticas (Pintura), Mestrado em Teorias da Arte, Doutoramento em Belas Artes (especialização de Pintura) pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL) Professora na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Lisboa (ESE-IPL).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa; Faculdade de Belas-Artes; Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA) Largo da Academia Nacional de Belas-Artes,1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Esta comunicação abordará dois projetos do artista angolano Kiluanji Kia Henda intitulados respetivamente Balumuka (Ambush) e O.R.G.A.S.M. – Organization of African States for Mellowness – ambos de 2011. Nestes o autor propõe um desafio aos discursos dominantes acerca da história ou da filantropia ocidental em África, expondo simultaneamente as linhas que ligam as realidades locais e globais.

Palavras chave: Fotografia / Angola / História / Ironia / pós-colonialidade.

 

ABSTRACT

This communication proposes an approach of two projects developed by the Angolan artist Kiluanji Kia Henda, entitled, respectively , Balumuka (Ambush) and O.R.G.A.S.M. – Organization of African States is Mellowness – both of 2011. In these the author suggests a challenge to dominant discourses about history or Western philanthropy in Africa, while exposing the lines that connect local and global realities.

Keywords: Photography / Angola / History / Irony / post-coloniality.

 

1. Percurso

Autodidata, Kiluanji Kia Henda (n. Luanda,1979), pertence a uma geração de artistas nascidos após a independência de Angola e conheceram o período de guerra civil que se prolongou até 2001.

Ao longo da última década tem desenvolvido uma atividade artística no âmbito da fotografia, do vídeo ou da performance – com algumas incursões na música e teatro – onde se destaca um trânsito internacional, materializado na participação em inúmeras exposições como as bienais de S. Paulo (2010) e Veneza (2007) a Trienal de Guangzhou (2008), mas igualmente em inúmeras residências artísticas, designadamente em Lisboa, (na Galeria ZDB) na cidade do Cabo (espaço Blank Projects), Guangzhou, Veneza, (Fondazione de di Venezia) ou Paris.

Esta circulação internacional que possibilita ao artista o contacto com outras realidades estéticas, culturais e vivenciais, assume contornos mais elaborados no âmbito dos processos de criação se considerarmos a experiência pessoal vivida em Angola, um país que fez o seu caminho enquanto Estado independente, no contexto de um conflito interno, alimentado pela Guerra Fria (constituindo-se, de resto, como um dos pontos quentes do conflito entre potências Ocidentais e de Leste), mas igualmente marcado quer pela diversidade cultural interna quer pelos fluxos vindos do exterior, quer pela própria refundação política e cultural que emerge com a independência nacional.

Kiluanji Kia Henda lembra precisamente essa permeabilidade cultural que, não obstante todas as contingências, acaba por impregnar a construção de uma identidade caldeada nessa diversidade. Nas suas palavras:

Cresci num período experimental de um país tão jovem quanto eu, onde sempre houve, aparte as opções politicas, uma grande e permeável liberdade cultural e até religiosa. Por isso acho que temos uma identidade bastante contaminada pelo que nos chega através dos portos e dos aeroportos, e agora via internet e satélite (Kia Henda, 2011: 17).

 

2. Local /Global

A reflexão em torno da complexidade inerente a realidades globalizadas é desenvolvida numa espécie de duplo écran, de escalas opostas, onde a dimensão local se entrecruza com a dimensão global. Neste caso, tomando como ponto de partida as realidades em Angola, estabelece um alargamento à escala globalizada, detetando pontos de ligação e convergências com outras realidades que transposta para um conjunto de projetos onde as imagens perfazem narrativas mais abrangentes e entrecruzam ficção, utopia e memória histórica, recorrendo a um discurso por vezes, repleto de ironia e humor. Mobilizando processos de deslocação, apropriação do espaço público e desconstrução, propõe assim uma série aproximações estéticas a questões fulcrais como identidade, geopolítica, memória histórica ou as perceções e representações de uma "pós-colonialidade" que envolve não apenas os territórios historicamente colonizados como as atuais sociedades ocidentais.

A autorreferencialidade (entendida em termos simultaneamente pessoais, históricos/nacionais) assume-se como substrato conceptual sobre o qual assentam um conjunto de abordagens em torno das representações identitárias, nas quais a permeabilidade das imagens denuncia os traços de uma ligação a outros contextos de produção/circulação transnacionais, assumindo, assim, uma dimensão simultaneamente individual, local e global.

Assume-se igualmente como uma forma de autorreflexão e consciência histórica com a qual estabelece, não raras vezes, um jogo de duplicidade e de inversão que mobiliza tensões históricas, sociais, políticas, estéticas etc. Daqui resulta a criação de imagens que, na sua estrutura discursiva, incorporam a ironia de forma a produzir um curto-circuito com um diálogo crítico exterior.

Neste sentido, assuntos como o petróleo, os diamantes ou o nuclear, são abordados ao longo de projetos como Blood Business Corporation (2007), Lunda in the Sky With Diamonds (2007), Expired Trading Products e Nuclear Garden of Mr. Young (2008), patenteando esse propósito do artista em sugerir ou evidenciar através da imagem fotográfica a teia de "interesses desmedidos" (Kia Henda, 2011:13) que, não olhando a meios – diminuídos à insignificância de danos colaterais – e convocando uma escala global, impregnam as vivências, reduzidas, por vezes a uma escala nacional/local/individual.

Por outro lado, há a clara consciência de que os processos de trabalho e motivações que suportam o desenvolvimento da obra artística, não deixam de partir de uma situação (espacial e temporal) do individuo-artista, que, em última análise se insinua, direta ou indiretamente na discursividade das imagens – convocando questões de ordem política, ética, estética.

Na verdade, a bitola pessoal através da qual dinâmicas mais alargadas são filtradas e traduzidas, constitui-se como um dos pontos-chave na obra de Kiluanji Kia Henda que elege Angola como "epicentro" da sua obra. Um dos exemplos que o autor refere é a guerra civil que deflagrou no país após a independência nacional, incrementada pela Guerra Fria durante quase três décadas e onde a escala local reflete as dinâmicas de um disputa globalizada.

Sempre tive um sentimento de ter vivido as consequências diretas da globalização das guerras. Desde miúdo aprendi que em Angola éramos parte ou vítimas de uma grande estratégia internacional, que o que acontecia não era só movido pela nossa vontade. (Kia Henda, 2011:15)

A intercecção entre vários domínios, quer de ordem histórica, geopolítica ou individual não deixa de ser evocada em obras como Big Bang (Huambo) e Balas e Satélites (Huambo), ambas de 2009 (Figura 1 e Figura 2).

 

 

 

 

Ambas são fotografias de paredes da cidade de Huambo, repletas de sinais de balas. No primeiro caso, uma cratera provocada por um projétil encontra-se no centro da imagem sendo rodeada pelos vestígios da dispersão dos estilhaços provocados pelo rebentamento. A imagem, que parte de uma referência à destruição provocada pela guerra oscila entre uma dimensão da literalidade e da metáfora para a qual contribui decididamente o título irónico atribuído pelo autor – que pode reenviar para um sentido inverso, o da criação.

Na segunda imagem, Balas e Satélites, as marcas visíveis do conflito são remetidas para uma temporalidade pretérita pelo confronto com duas antenas de satélite que denunciam a ocupação daquele local; apresentam-se, de certa forma, como sinais otimistas de presença humana e como elementos físicos que anunciam um futuro possível, apesar da destruição causada pela guerra.

A estes dois exemplos poderemos acrescentar um terceiro, Comboio para a Terra do Nunca (Bengo, 2010), onde um comboio enferrujado permanece imóvel. Aqui a alusão, irónica, à história de J.M. Barrie, acrescenta uma vez mais uma dimensão dupla à imagem. Ao aludir, de certa forma, à juventude do país e à utopia de uma refundação social e política, inverte o que é realmente mostrado na fotografia.

Esta surge, como uma metáfora dos impasses da própria história nacional, num processo de transição que, de colónia portuguesa, tenta constituir-se enquanto Estado socialista e, posteriormente ao fim da guerra civil, como país integrado num contexto regional e global. Integra, em certa medida uma preocupação do autor em perceber as dinâmicas que perfazem a textura da história do país e do continente africano, designadamente a "capacidade de escrever e conhecer a sua própria história, e a capacidade de projetar o seu próprio futuro" (Kia Henda, 2011: 17).

 

3. Narrativas

A interferência do domínio global no território local, entendida a um nível geográfico, estende-se igualmente a uma dimensão temporal onde as ondas de choque da Guerra Fria ou do colonialismo se fazem sentir muito além dos limites cronológicos fixados pela história. Kiluanji Kia Henda questiona, igualmente, a dialética entre a realidade e as suas representações, onde os símbolos de poder, ou melhor, a sua substituição, não é acompanhada de uma modificação ao nível das mentalidades, resultando daqui uma clivagem entre os discursos – e a sua dimensão simbólica sobretudo – e as práticas (sociais, políticas, comportamentais, etc.)

Na perspetiva do artista,

O processo de descolonização mental vai muito para além do ato politico de içar bandeiras, de realizar desfiles na praça pública e de promover discursos. Por isso acho que é muito cedo falar-se de pós-colonialismo, […] As independências em África são marcos históricos recentes, e as estratégias de dominação e neocolonização não são, infelizmente, um assunto do passado (Kia Henda, 2011: 17)

A refundação da narrativa histórica constitui-se como uma plataforma onde se desenvolve o projeto Homem Novo (2011-2012) no âmbito do qual realiza a série fotográfica Balumuka (Ambush) (Figura 3, Figura 4, Figura 5). Esta materializa uma incursão do artista no Forte de S. Miguel em Luanda onde estão depositadas estátuas do período colonial que se encontravam em locais público e peças de armamento utilizado durante a guerra civil.

 

 

 

 

 

 

Estátuas de figuras como Paulo Dias de Novaes, D. Afonso Henriques, Luís Vaz de Camões ou a Rainha Nzinga Mbandi estão ali depositados a aguardar uma solução, em "trânsito" (Souza, 34). Apenas a estátua em bronze da Rainha Nzinga possui um destino certo, retomar ao local na praça Kinaxixi de onde foi retirada devido a obras.

Os restantes (ex)monumentos foram retirados do seu pedestal e, tal como Kia Henda refere ironicamente numa conferência na Tate Modern, "são como cidadãos aos quais os vistos expiraram e não sabem o que fazer com eles… tendo de retornar ao local de origem" (Kia Henda, 2010).

Na verdade, a independência nacional foi acompanhada da necessidade de construir uma narrativa histórica que extirpasse o discurso colonial, instaurasse uma nova ordem, e assistisse ao nacimento do Homem Novo, celebrado no hino nacional de Angola. Esta fundação de uma nova ordem social, política e discursiva é acompanhada por uma abolição dos símbolos do anterior regime, remetendo-os para uma invisibilidade pública.

Antes de mais, as imagens registadas por Kiluanji Kia Henda não deixam de aludir à situação paradigmática da arte pública, monumental, no que toca às suas funções de simbolização do poder político. Na verdade estas estátuas, em pedra ou bronze, de figuras heroicizadas pelo regime do Estado Novo, participam de uma narrativa histórica que legitimou, simbolicamente, o sistema colonial, e que, por isso, importava evocar continuamente, através da sua colocação no espaço público dos territórios colonizados. O seu desmantelamento em primeiro lugar, e o afastamento da esfera pública com uma consequente invisibilidade, procura rasurar precisamente, a narrativa da qual participaram.

Em segundo lugar, algumas destas peças escultóricas e inscrições encontram-se desmontadas, tal como vieram da metrópole para a colónia, ou seja, quase voltaram ao seu ponto inicial, através de um processo de elisão pública da sua presença, e fragmentação nas suas componentes iniciais.

Por outro lado, as esculturas coexistem, lado a lado, com peças de armamento militar de fabrico soviético, que remetem para o período de guerra civil. Esta justaposição permite estabelecer um diálogo simbólico entre as várias temporalidades estratificadas que integram a história de Angola, subentendendo as diferentes narrativas, delineadas a partir de alguns dos seus símbolos de poder – o poder discursivo e o poder militar.

 

4. Duplos negativos

O projeto O.R.G.A.S.M. – Organization of African States for Mellowness (Organização dos Povos Africanos para a Tranquilidade) baseia-se na obra Dead Aid da zambiana Dambysa Moyo que desmonta um dos mitos das últimas décadas: de que a ajuda humanitária prestada pelos países ricos do ocidente contribuiu para a melhoria das condições de vida em África. Na verdade, a autora denuncia a ação perversa das organizações humanitárias ocidentais em África resultando numa perpetuação dos problemas nos seus contextos de atuação, por contraste com os países que recusaram essa ajuda e melhoraram os seus níveis de desenvolvimento.

O.R.G.A.S.M. trata-se, assim, na criação de uma ONG (Organização Não Governamental) africana que se dedicará à filantropia no ocidente, sendo que a obra consiste numa instalação onde, numa parede com duas faces se encontra, de um lado, a bandeira da organização (que lembra a da União Europeia mas na qual o circulo formado por 12 estrelas amarelas tem, ao centro o mapa de África) e no outro, um vídeo que publicita os seus desígnios (Figura 6 e Figura 7).

 

 

 

 

No vídeo de 8 minutos – baseado no cinema de pornomiséria colombiano da década de 70 – assistimos ao desfilar de episódios de violência na capital francesa – a primeira beneficiada da ONG – de um sem-abrigo que se refugia junto a uma agência de viagens e de uma figura que se passeia pelas ruas supostamente o "rosto" da organização), acompanhadas de uma voz-off que repete a urgência em salvar Paris.

Nesta obra é desmontado, de forma irónica, o discurso paternalista do ocidente emblemático das organizações não-governamentais que operam em África, através da sua inversão, provocando, nas suas palavras, um "efeito-espelho" – que, ironia à parte, não deixa de assumir contornos de realidade.

O sentido "ficcional" do projeto entra numa rota de colisão com as práticas desenvolvidas nos contextos africanos e expõe a continuidade num processo que, iniciado com a implantação dos sistemas coloniais será, no pós-guerra, travestido com as roupagens da caridade e que não deixa de ser responsável pela inferiorização dos africanos e a manutenção das fragilidades a vários níveis.

 

Nota Final

Através destes projetos Kiluanji Kia Henda propõe-nos um olhar sobre a História, filtrado por uma perceção individual, diríamos, vivencial, dos acontecimentos, espaços e tempos. Mais do que a reconstituição da narrativa histórica através dos seus fragmentos e/ou símbolos, o autor confronta-nos com um conjunto de registos fotográficos e fílmicos onde a ficção e a ironia denunciam realidades que estão muito além da imaginação e interrogam os discursos dominantes, expondo simultaneamente as linhas que ligam as realidades locais e globais.

Em Balumuka (Ambush) e O.R.G.A.S.M. Kia Henda estabelece um plano de simetria que atua em múltiplas vertentes. No primeiro caso as imagens dos despojos do tempo colonial no Forte de S. Miguel, são simétricas das imagens dos despojos do período da Guerra Fria e sobretudo, dos plintos vazios que pontuam alguns dos espaços públicos da cidade de Luanda – que se tornariam palco da série Redefining the Power de 2012. No segundo caso, constitui-se como espelho que reflete um duplo negativo da imagem que o ocidente forjou acerca de si próprio, desfazendo, em ambos os casos um conjunto de mitos que pontuam os discursos da "pós-colonialidade".

Por fim, o percurso desenvolvido por Kiluanji Kia Henda não deixa, não deixa de sugerir um conjunto de abordagens críticas em torno das ligações residuais entre passado e presente, discutir e reequacionar as ligações entre artes visuais, representações sociais/culturais, estética, identidade, poder, local / nacional e global, história / memória / biografia/ pós-memória.

 

Referências

Afonso, Lígia (2011) "Entrevista a Kiluanji Kia Henda" in BES PHOTO 2011. Lisboa: Banco espírito Santo        [ Links ]

Alvim, Fernando; Njami, Simon; Sousa, Suzana (2013) No Fly Zone. Unlimited Mileage. Lisboa: Museu Coleção Berardo        [ Links ]

Kia Henda, Kiluanji (2010) After Post-Colonialism: Transnationalism or Essentialism? [Consult. 2014-1-19] Disponível em :http://www.tate.org.uk/context-comment/video/after-postcolonialism-transnationalism-or-essentialismvideo-recordings        [ Links ]

Miguel, Telma. "E se fossem os países africanos a ajudar o Ocidente?". Sol, 6 de Fevereiro de 2013. [Consult. 2014-1-19] Disponível em http://pt.museuberardo.pt/sites/default/files/documents/jornal_sol_e_se_fosse_africa_a_ajudar_o_ocidente_6_fev.2013.pdf        [ Links ]

O'Toole, Sean (2012) "Focus: Kiluanji Kia Henda" Frieze Magazine Issue 150, October 2012 [Consult. 2014-1-19] Disponível em http://www.frieze.com/issue/article/focus-kiluanji-kia-henda/        [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 26 de janeiro e aprovado a 31 de janeiro de 2014.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: teresamatospereira@yahoo.com (Teresa Matos Pereira)

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