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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Acácia Maria Thiele: Territórios interditos no feminino

Acácia Maria Thiele: Feminine forbidden grounds

 

Luís Herberto de Avelar Borges Ferreira Nunes*

 

*Portugal, artista visual. Licenciatura em Artes Plásticas/ Pintura, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (F.B.A.U.L.).

AFILIAÇÃO: Universidade da Beira Interior, Faculdade de Artes e Letras, Departamento de Comunicação e Artes. Rua Marquês de Ávila e Bolama, 6201-001 Covilhã, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Acácia Thiele é provavelmente uma dos artistas contemporâneas portuguesas, cujo trabalho é definitivamente mais provocativo, dada a natureza crua e explícita da exploração da própria nudez. Estruturado em referências que exploram linguagens visuais do erótico, o seu trabalho é no entanto eficaz nas questões de género que enuncia nos territórios interditos em que se move.

Palavras chave: provocação / género / nudez / auto-representação / feminino.

 

ABSTRACT

Acácia Thiele is probably one of the contemporary artists in Portugal, whose work is definitively more provocative, given the raw and explicit nature of her self-exploitation of the naked body. Structured in the erotic mainstream languages, her work is nevertheless effective in the purposes of gender issues that addresses the forbidden grounds she performs.

Keywords: provocation / gender / nudity / selfrepresentation / feminine.

 

Acho que no meu trabalho há mais interrogações que manifestos...
– Acácia Maria Thiele

 

Introdução

Acácia Thiele (n. 1964) é talvez das artistas visuais com obra mais provocativa no território nacional, dada a natureza crua e explícita no modo como explora sistematicamente a própria nudez nas relações de género que propõe, recorrendo a referências que exploram tangencialmente as linguagens visuais do erótico e do explícito. A partir de meados dos anos 1990, produz uma obra cuja essência visual lhe permite discutir num registo crítico as problemáticas do seu tempo. Não sendo declaradamente feminista, faz parte de um reduzido universo que recorre à auto-representação, configurando composições que estão à partida condenadas à exclusão, pela carga visualmente subversiva. Propõe um contexto reflexivo e intimista que passa ao lado do grande público, dissipado por leituras do imaginário erótico contrárias à ironia que oferece.

Não se conhecessem registos documentados de oposição à sua obra. Tudo o que arrisco acrescentar é que foi gradualmente remetida para um esquecimento desproporcional ao seu dinâmico início de carreira, que envolveu um forte apoio da crítica institucional, sobretudo com Carlos Vidal, que desfruta do mérito de a arrastar para a linha da frente do panorama artístico ibérico (Desvíos. El arte portugués hoy, 1996; Democracia e Livre Iniciativa, 1996). Tem também algumas referências em textos de Cerveira Pinto (1996), ou Bernardo Pinto de Almeida (2002), num enquadramento que nomeia estas temáticas provocatórias a par do aparecimento de uma nova geração de mulheres artistas na década de 1990 – com destaque para o Colectivo Zoina (Catarina Carneiro de Sousa (n. 1975), Isabel Carvalho (n. 1977), Carla Cruz (n. 1977) e Ana Luísa Medeira (n. 1974), sem esquecer Maria José Aguiar (n. 1948), cuja obra se tornou uma referência no que diz respeito às questões de género na arte portuguesa.

Pretendo aqui mostrar não apenas as características subversivas na pertinência social da sua obra, como propor-lhe um território de acção que ultrapassa as fronteiras geográficas e formais nas temáticas que enuncia e nos limites que se propõe romper.

 

1. Enquadramento territorial

A obra de Thiele, desde meados dos anos 1990 até ao presente, é uma obra visualmente subversiva, provocatória e incomodativa. Vidal (Out./ Dez. 1996), a seu propósito, refere-se à desconstrução dos géneros na arte pós-feminista a partir dos finais dos anos 1970, mas para tal, seria necessário que os pressupostos do feminismo deixassem totalmente de fazer sentido. Não podemos esquecer que no universo feminista, existem oposições declaradamente antagónicas relativas à utilização do nu feminino, em parte devido à sua recorrência histórica como referente erótico destinado a consumidores masculinos. Artistas representativas das décadas de 1970 e 1980, como Lynda Benglis, Cindy Sherman, Judy Chicago ou Clara Menéres, marcaram definitivamente a sua posição neste domínio, contribuindo para a discussão polémica, abrindo um leque de possibilidades para as novas gerações, na continuação das primeiras feministas representativas nas artes visuais, com relativa invisibilidade (Minioudaki, 2010) – como Rosalyn Drexter (1926), Niki de Saint Phalle (1930-2002), Evelyne Axell (1935-1972), Martha Rosler (1943), entre outras, enquadradas nos movimentos proto feministas da Arte Pop, que na década de 1960 tem grande visibilidade nos Estados Unidos da América e se estende naturalmente ao continente Europeu, contrariando uma ideia que este movimento apenas se servia da iconografia feminina na mulher-objecto representada por artistas homens, como Ronald Kitaj ou Tom Wesselmann. Vidal (Out./ Dez. 1996) apresenta como exemplo o facto de Sherman ter retirado o próprio corpo do espaço de representação, para evitar as interpretações estereotipadas do seu trabalho, acrescentando ainda 'ingenuamente' que Thiele não o poderia fazer: "Acácia Maria Thiele tal não fará certamente, porque não teme que na banalidade perversa das suas imagens se veja tão-somente ela mesma ou a representação desinteressada, opaca…" Esta visão assumiu contornos proféticos e manteve-se na obra de Thiele, que até hoje afirma esta característica crua e transparente do seu trabalho a par da desconstrução intencional dos padrões no género. O que Vidal não previu foi a visão redutora dos públicos com o seu puritanismo moral camuflado, que permite todo um universo mediático e sexualizado (Attwood, 2010) e rejeita estas semelhanças formais no campo da 'high art.' O conceito coloquial de 'chic' apenso ao pornográfico, que McNair constrói a partir da análise da cultura das sociedades capitalistas (2002), que basicamente se refere ao cruzamento da pornografia, da esfera privada para a pública e no que Linda Williams sustenta como uma passagem do obsceno para o espaço visível (Hardcore: Power, Pleasure and the 'Frenzy of the Visible', 1989), parece não ter lugar na sociedade portuguesa, que até há pouco tempo, mantinha de um modo furtivo e recatado, os espaços de prevaricação associados às sub-culturas do sexo.

 

2. Nudez, provocação e auto-representação

A nudez é constante ao longo de toda a sua obra, apresentando-se como um caso ímpar, pela frontalidade com que apresenta o próprio corpo nas suas encenações críticas. Determina as suas imagens com uma intencionalidade que requer do espectador a sua validação, no que Giorgio Agamben expõe como uma potencialidade necessária, sob pena da sua restrição implicar um empobrecimento das liberdades criativas e de fruição (Nudities, 2011). A nudez dos corpos comuns tem algo de interdito, historicamente aliada à pobreza e à humilhação e essa propriedade remete a representação do nu masculino para um ideal físico e espiritual e onde a nudez feminina, parcial ou integral, pode significar fraqueza e perda de poder espiritual (Bonfante, Oct. 1989) (Figura 1). A nudez que testemunhamos em Ecce Homo ou Maria Surpreendida, uma série de 1995, mais que um estatuto formal, tem uma natureza reveladora de uma realidade que está habitualmente escondida e como refere ainda Agamben (2011), faz também parte de uma assinatura teológica presente na nossa cultura. A ambiguidade com que Vidal apresenta esperma ou leite é reveladora dos sinais que dirigem estas obras para o exterior de conteúdos por vezes considerados obscenos. Destaca-a na revista Colóquio Artes (Out./ Dez. 1996), projectando uma visão orgânica, em aproximações a um tronco comum entre a vida e a morte, e como a própria artista refere, 'la petite mort', na pulsão cíclica entre a vida e a morte. Aliás, a sugestão ao esperma é pelas mãos da autora, mais uma metáfora à condição humana, perpetuando-se em Vomitando Amor ou Defecando Amor, de 1995, que formalizam uma procriação ficcional pela boca ou pelo ânus, na verborreia ou na metáfora estéril da merda (Figura 2).

 

 

 

 

Ao optar por uma exploração da nudez comum, intromete-se nas questões morais particulares de um público com tendências puritanas e que a associa às revistas eróticas e pornográficas. Maja yo (1995), por exemplo, numa declarada citação a Goya e formalmente à Vénus de Urbino, de Ticiano, enquadra-se neste contexto e explora de um modo directo o papel do voyeur masculino habituado ao papel subordinado da imagem da mulher, numa construção intencionalmente performativa que requer do espectador a sua participação (Figura 3). Provocando ocasionalmente algum desconforto, através da interacção com o olhar do modelo representado, este é um ponto fulcral destas representações que flutuam numa fronteira ainda indefinida entre o erótico e o pornográfico.

 

 

Na sua obra interessa-me o carácter provocatório e performativo visível nas suas representações para a objectiva. São os desafios à sensibilidade dos públicos que me seduzem, nas suas construções ficcionais e que se assumem como reais nos reflexos dos espectadores mais incrédulos e pouco avisados para o confronto dos géneros e da sexualidade. Algumas composições têm o efeito de provocar uma leitura grosseira e a roçar os limites do inconveniente na sua aproximação ao obsceno, contudo, atenuadas pelo que Vidal designa como uma representação significativa e com 'carácter fake dos objectos' (Out./ Dez. 1996). É justamente esta aura de artificialidade que lhes confere uma poderosa intenção no seu papel a passar a mensagem.

Cerveira Pinto, no texto crítico de Pequeno Conto Apócrifo, exposição que Thiele apresenta no C.A.P.C. (1996), afirma a imagem da mulher/vítima, na denúncia à exploração do feminino erótico como objecto. E para acentuar ainda mais este carácter de provocação 'engagé', há ainda o replicar do realismo que as fotografias 'polaroid' permitem, ampliado pelo aumento da escala das imagens originais, aumentando a eficácia da relação com o espectador, como podemos testemunhar na série, Miando, ou o Lobo Mau, de 1998. Socorrendo-se de um modelo masculino, numa caracterização 'crossdresser' e de um recurso a uma expressão popular francófona para a zona púbica (chatte), promove um discurso raro na realidade portuguesa feminina a favor da representação da sexualidade, mesmo quando este carrega em si profundas objecções aos manifestos feministas e radicais das décadas de 1970 e de 1980 (McNair, 2010) e no que Camille Paglia afirma como uma nova forma de feminismo, aberto à arte e ao sexo (Sex, Art and American Culture, 1992) (Figura 4, Figura 5).

 

 

 

 

Obras como Maja yo (Figura 3) ou o tríptico Lavando o Pipi todas somos Marias, de 2000 (Figura 1), detêm claras conotações à condição feminina. São também a representação de todas as mulheres subordinadas aos territórios da misoginia e em sentido figurado, a não representação do homem, visível nestas composições pela sua ausência no campo da imagem, é estrategicamente situada no espectador. Em Leda (2006), porém, transcendendo a ironia da metáfora mitológica, anunciada já em Maya yo, esta ausência é substituída na transfiguração queer de Zeus, assumindo a irónica troca de papéis na subordinação imposta pela violência do estupro, na passividade inevitável desta 'Leda', em que o modelo masculino transfigura todos os homens comuns (Figura 6). Esta inversão dos papéis culturalmente construídos para homem e mulher em territórios envoltos com um filtro heterossexual e que no espaço oculto, procura outras formas de sexualidade, mostra-se como uma representação eficaz na crítica mordaz aos padrões de comportamento.

 

 

 

Notas conclusivas

As referências construídas pela crítica são-lhe extremamente vantajosas, enriquecendo o seu discurso provocatório, que cedo atinge uma maturidade conceptual. Thiele perdeu reconhecimento apenas pelo anonimato a que se forçou, condição essa que impede a sedimentação da sua obra nos públicos gerais, pouco dados aos conteúdos movediços, ainda que nos territórios do género, que a década de 1990 apresenta de um modo crescente até ao virar do século.

De qualquer modo, Acácia Maria Thiele fica como uma artista sobre a qual é quase impossível encontrar informações e as suas obras não ficaram ainda na memória colectiva com um impacto forte sobre as questões morais portuguesas, como refere Giulia Lamoni (Out. 2013), ou sequer nas problemáticas de género ou de crítica social. Contudo, o seu trabalho não será certamente menos eficaz nos propósitos que enuncia e nos territórios interditos em que se move.

 

Referências

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Artigo completo submetido a 26 de Janeiro e aprovado a 31 de janeiro 2014.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: luisherberto@gmail.com (Luís Herberto Nunes)

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