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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Ressonâncias: a pintura interventiva de Rui Macedo

Resonances. Rui Macedo intervention painting

 

Zalinda Elisa Carneiro Cartaxo*

 

*Brasil, artista visual. Graduação em Artes Plásticas – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, PUC-RJ. Mestrado em História e Crítica de Arte – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutorado em Artes – Universidade de São Paulo (USP). Doutorado em Artes Visuais, UFRJ. Professora na UFRJ.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC-UNIRIO). Avenida Pasteur nº 436, fundos, Urca, Rio de Janeiro / RJ, CEP22.290-240. Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

As pinturas do artista visual português Rui Macedo distendem-se do objeto pictórico, atravessam arquiteturas, tocam o real. Suas pinturas interventivas remetem aos conceitos de metalinguagem e mise en abyme.

Palavras chave: pintura / intervenção / espaço

 

ABSTRACT

The paintings of the Portuguese visual artist Rui Macedo distend from the pictorial object, crossing architectures, touching the real. Macedo's interventive paintings refer to the concepts of meta-language and mise en abyme.

Keywords: painting / intervention / space.

 

1. Ressonâncias

Tomar como foco de discussão as questões que desenham a poética de um artista significa adentrar na estrutura crítico-conceitual que alicerça a sua produção estética. Assim considerado, concluímos que cada obra constitui-se como afirmativa de toda a sua produção ressoando incessantemente umas com as outras. Segundo Alain Badiou,

uma configuração não é uma arte, nem um gênero, nem um período 'objetivo' da história da arte, nem mesmo um dispositivo 'técnico'. É uma seqüência composta de um conjunto virtualmente infinito de obras, sobre a qual tem sentido dizer que ela produz, na estrita imanência à arte em questão, uma verdade dessa arte, uma verdade-arte […] Na realidade, uma configuração se pensa a si mesma nas obras que a compõem. Pois, não o esqueçamos, uma obra é uma investigação inventiva sobre a configuração, que pensa então o pensamento que a configuração terá sido (sob a suposição de seu acabamento infinito). Mais precisamente: a configuração se pensa na prova de uma investigação que, ao mesmo tempo, a constitui localmente, desenha seu porvir e reflete retroativamente sua curva temporal. Deste ponto de vista, é preciso sustentar que a arte, configuração 'em verdade' das obras, é, em cada ponto, pensamento do pensamento que ela é (1994: 28-9).

A compreensão de tal estrutura importa, aqui, especificamente, pela revelação do modus operandi pelo qual o artista português Rui Macedo concebe suas obras. Pintor de formação, sua produção artística sugere um paradoxo: a utilização dos princípios tradicionais da pintura, como o trompe-l'oeil, acordados, no entanto, a determinadas estruturas praticadas de modo recorrente na contemporaneidade, como por exemplo, os conceitos de apropriação, de site-specific ou de intervenção. Num primeiro olhar, localizamos algumas constantes no seu trabalho: a ênfase na figuração, o mimetismo, o diálogo profícuo com o locus ou a constante reflexão sobre o suporte. O suposto paradoxo observado em sua produção artística desfaz-se mediante a consideração de algumas questões teorizadas a partir de meados do século XX. Antes de tudo, devemos observar que o foco do trabalho de Rui Macedo está na pintura e que, portanto, faz parte de uma geração de artistas que a pratica a partir da reflexão de conceitos, agora, cristalizados. Conceitos surgidos da reflexão do ser pintura teorizados por artistas e críticos, como por exemplo, o plano flatbed, de Leo Steinberg; os objetos específicos, de Donald Judd; a teoria do não-objeto, de Ferreira Gullar; de entre tantos outros.

Se, de um modo geral, a arte contemporânea carateriza-se pelo seu diálogo com o real, nada mais coerente do que a pintura na atualidade também adotá-lo. A distensão da pintura do seu suporte tradicional em direção à realidade aproximou-a de outras frentes estéticas como a instalação ou a intervenção. O movimento de alcance do espaço real pela pintura faz-se lógico pela sua própria estrutura histórica. A pintura como espessura, formada por camadas agregadas temporalmente concilia o suporte e a superfície pictural, confundindo-os. Este movimento oscilatório de uma dupla travessia, da superfície em direção à profundidade e o seu retorno, determina aquilo que Didi-Huberman denomina de um-dentro-do-outro (1985). A pintura compreendida como uma dinâmica, como uma estrutura da dobra, do interstício. Finalmente, a pintura como incarnat se livra do estigma da pele: não é mais uma superfície. Sua estrutura mesma se responsabilizaria pelo interstício da sua existência de suporte (o debaixo: sub), pela sua existência material (o que é lançado sobre o suporte: jectus) e pela sua existência significante (a indiscernibilidade: subjétil). Segundo Didi-Huberman, a pintura pensa.

A noção de 'quadro vivente' contrapõe-se aos equívocos históricos de uma prática pictórica que através de artifícios (virtuosismo, ilusionismo) ocultava a natureza do suporte-tela. A pintura que pensa lida com a questão do incarnat. O autor questiona a natureza do in: é o dentro ou o encima? Historicamente os pintores se referem à carne como o seu outro, a pele. Contudo, não seria a carne o interior do corpo em oposição à sua superfície? O incarnat seria, portanto, não uma justaposição ou superposição das camadas de matéria sobre um suporte, mas sim a sua interpenetração que não permitiria a distinção das suas partes, ou seja, está atrelado a uma categoria definida por Didi-Huberman como o entre-dois: entre a superfície e a profundidade. É característico do entre-dois uma louca dificuldade: a loucura reside no risco do artista atingir a superfície através do olho corrompido pela vaidade da sabedoria; a dificuldade estaria na resposta da sua sabedoria no exercício da pintura. O incarnat seria, portanto, uma trama temporalizada da superfície e da profundidade, visto que configura uma dialética imprevisível de aparições (épiphasis) e de desaparecimentos (aphanisis) (Cartaxo, 2006: 23).

Assim, a coincidência entre obra e lugar, matéria e suporte, é determinada pelo sentido de totalidade e indeterminação dos seus meios (subjétil). A espessura das pinturas de Rui Macedo constitui-se pelo confronto entre as camadas do real e do pictórico. Pinturas interventivas que absorvem o real como parte integrante da obra, transformando-o. Entre-dois. Colabora em tal dialética o rebatimento do real operado pelo ilusionismo das suas pinturas. Mais do que afirmação de um locus, trata-se da afirmativa da pintura como possibilidade de re-conhecimento da realidade. Mais do que ilusionismo, o artista nos apresenta nova possibilidade de realidade.

Os "temas" das suas pinturas, de um modo geral, surgem a posteriori mediante a definição do espaço expositivo. Podem ser representações de portas, tapetes, caixas de luz, molduras vazias ou mesmo reprodução-apropriação de determinada pintura que faz parte do acervo do Museu onde o artista irá expor, por exemplo. Estabelece-se, assim, uma trama dialógica e dialética que promove tensão no lugar. Quando suas pinturas se fazem "invisíveis", cumprem com propriedade o melhor site-specific; quando visíveis, desarticulam o equilíbrio original do espaço. De todas as formas o lugar é sempre tensionado.

Quando Rui Macedo utiliza a linguagem da pintura (o trompe-l'oeil, por exemplo) como uma espécie de dispositivo crítico-conceitual aproxima-se da esfera da metalinguagem e da estrutura de mise en abyme. A questão da pintura dentro da pintura já foi desenvolvida em vários momentos ao longo da sua história, entretando, quando Rui utiliza tal "estratégia", novamente, recupera um modelo histórico (tal qual o trompe-l'oeil, uma linguagem da pintura) a partir de uma crítica analítica do modelo-pintura. Pensar a pintura como conceito a partir do conceito de pintura tem-se revelado uma questão constante para os artistas, especialmente, a partir do ano de 1960.

Superado o modelo de desenvolvimento evolucionista pela categoria Pintura, até então responsável pela continuidade de novas formulações estéticas (Danto, 2000), os artistas atuantes no período pós-histórico (a Pop Art seria um marco), e aqui, nos interessa, especialmente, os pintores, adotam poéticas cuja reflexão sobre a pintura per si faz-se recorrente. Artistas como Giulio Paolini, Imi Knoebel, Gerhard Richter, Daniel Buren, Blinky Palermo, Keith Sonnier, Richard Tuttle, o Grupo Support-Surface, dentre tantos outros, empenharam-se no fomento das discussões sobre a pintura ampliando as suas possibilidades críticas, conceituais e espaciais. De forma inteligente, Rui Macedo colabora em tal discussão revelando que ainda é viável distender as possibilidades da pintura, revitalizando-a.

As estruturas de metalinguagem e mise en abyme observadas na produção artística de Rui diferenciam-se, contudo, daquelas realizadas historicamente, em que havia a representação de uma pintura dentro de outra. Rui Macedo recupera tais conceitos a partir de outro modus operandi: mantêm o criticismo de tal abordagem, entretanto, distende suas pinturas para o espaço real (aproximando-as das intervenções e instalações). Suas telas pintadas a partir do modelo tradicional fazem parte de uma pintura maior que as abriga, o próprio espaço interventivo ou instalativo. Dá-se início, assim, ao processo de tensão espacial totalmente fundado numa estrutura de ressonâncias: entre as obras, entre as obras e o seu locus, entre o sujeito e as obras ou entre o sujeito e a obra-lugar. Ora interventivas, ora instalativas, as pinturas-lugar de Rui aproximam-se, até certo ponto, dos tableaux (Georges Segal, por exemplo). Diferem, no entanto, no enfrentamento específico da questão pintura. Ao contrário das abordagens existencialistas de Segal, as pinturas-lugar de Rui instrumentalizam-se crítico e conceitualmente com as questões específicas da pintura. Mesmo tangenciando outras frentes, como a intervenção ou instalação, o foco da usa poética está voltado, sempre, para a pintura.

Localizamos algumas variantes no modo pelo qual o Rui Macedo constrói sua estrutura expositiva (senão, a obra em si) quando acordada ao tema do Cabinet d'amateur. De um modo geral, o artista se vale da saturação na ocupação espacial tal qual seu modelo original. Contudo, sua poética prevalece instituindo nova ordem fundada no pensamento crítico que traduz seu modus operandi. O tempo é elemento relevante em suas pinturas interventivas. Somente através dele alguma ordem se impõe. Suas obras exigem temporalidades distintas para cada visitante. É necessário capturar as pistas lançadas pelo artista para pouco a pouco construirmos algum tipo de narrativa que indique uma conclusão. A conciliação entre a estética e o jogo, na produção de Rui Macedo, endossa a sentença de Didi-Huberman: a pintura pensa.

Na sua exposição Playtime, de 2013, Rui satura o nicho ao fundo da Capilla de la Trinidad com diversas pinturas de sua autoria, sobrepostas umas às outras. O artista reúne um número significativo de obras de sua autoria, de outras exposições, e converte o espaço numa espécie Cabinet d'amateur. Tal qual uma grande tela ao fundo, o espaço da Capilla transformou-se numa colagem tridimensionalizada, mise en abyme. Como estrutura de metalinguagem, Rui utiliza pintura para falar de pintura. O lugar ora religioso que abriga a exposição, com seu histórico de mecenato, alimenta a exposição pela sua imanência. O Genius Loci atravessa a intervenção sendo, também, por ela atravessado. Lugar em ressonância.

O encontro∕confronto de obras operado por Rui Macedo acordados, crítico e conceitualmente, ao modelo do Cabinet d'amateur, cumpre-se, também, de outra forma. Na sua exposição Artimanhas do Escondimento, de 2013, por exemplo, o artista reúne um conjunto de pinturas, privilegiando, contudo, os espaços entre, com a iluminação focada nos vazios. Nesta exposição, Rui se vale do trompe-l'oeil e do virtuosismo para desestabilizar o lugar certeiro da pintura, segundo seus ditames tradicionais. Molduras pintadas ilusoinisticamente e depositadas sobre a parede azul, pinturas partidas ao meio que se adentram pelas arestas dos tetos, das paredes ou do chão, pinturas "dobradas" que acompanham o desenho das paredes, texto fixado na parede que atravessa as pinturas, tudo, enfim, em desacordo com o esperado para uma exposição de pintura. Aqui, o conceito de subjétil, definidor do ser pintura, se aplica de forma contundente, indicando a possibilidade da pintura existir além dos seus limites impostos pela tradição.

 

Conclusão

Concluimos, portanto, que as estruturas de metalinguagem e mise en abyme observadas na produção de Rui não operam formalmente, senão conceitualmente. Suas figurações constroem uma trama, uma espécie de jogo, em que a obra ganha sentido somente pela reciprocidade de todas as instâncias envolvidas, da estética à da realidade. Exemplo disso, é o tema do Cabinet d'amateur recorrente, em sua produção. O lugar histórico do colecionismo converte-se, nas obras de Rui, em metáfora do ser ressonância da pintura, como uma espécie de caixa de repercussão. O modelo de Cabinet d'amateur utilizado pelo artista agrega obras que, conjuntamente, reverberam-se criticamente.

As pinturas de Rui Macedo acenam ao deslimite. Como ressonâncias, distendem-se para além do objeto pictórico, atravessam arquiteturas, tocam o real.

 

Referências

Badiou, Alain (1994) Para uma Nova Teoria do Sujeito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará         [ Links ].

Cartaxo, Zalinda (2006) Pintura em Distensão. Rio de Janeiro: Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, Centro Cultural Telemar,         [ Links ]

Danto, Arthur (2000) L'Art Contemporain et la Clôture de l'Histoire. Paris: Éditions du Seuil,         [ Links ]

Didi-Huberman, G. (1985) La Peinture Incarnée. Paris: Les Éditions de Minuit.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 26 de janeiro e aprovado a 31 de janeiro de 2014.

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: z.cartaxo@uol.com.br (Zalinda Cartaxo)

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