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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

DOSSIER: ARTIGOS ORIGINAIS POR AUTORES CONVIDADOS

DOSSIER: INVITED ORIGINAL ARTICLES

Adriana Maciel: arquiteturas da pintura

Adriana Maciel: Painting's architectures

 

Marilice Corona*

 

*Par académico externo da Revista Estúdio. Professora universitária e artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Instituto das Artes. Rua Senhor dos Passos, 248. CEP 90020-180 – Centro – Porto Alegre, RS Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo tem como objetivo analisar a representação da arquitetura na pintura da artista brasileira Adriana Maciel assim como os desdobramentos do uso desse motivo no desenvolvimento de sua obra.

Palavras chave: pintura / arquitetura / espaço / representação.

 

ABSTRACT

This article aims to analyze the representation of architecture in painting by Brazilian artist Adriana Maciel as well as the consequences of the use of this motif in the development of his work.

Keywords: painting / architecture / space / representation

 

Introdução

Este artigo tem como objetivo circunscrever alguns aspectos que se evidenciam na obra da artista brasileira Adriana Maciel. Adriana nasceu em Belo Horizonte (1964), mas já há alguns anos reside e trabalha na cidade do Rio de Janeiro. A artista formou-se, em Artes Plásticas pela Universidade Federal de Minas Gerais, em 1991, tendo freqüentado, de 1994 a 1995, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Seu trabalho é predominantemente em pintura sendo que, de alguns anos para cá, a artista vem estendendo sua pesquisa ao campo da fotografia e do vídeo. Adriana começa sua atuação profissional no início dos anos 90, participando de vários salões brasileiros de importância bem como, de mostras coletivas e individuais. Em 2008 recebeu o prêmio Projéteis Funarte de Arte Contemporânea 2007-2008.

Meu encontro com a obra de Adriana se deu no ano de 2001. Naquela época eu estava em meio a minha pesquisa de mestrado, cujo tema centrava-se na convencionalidade dos sistemas de representação do espaço em pintura. Esse encontro fora uma grata surpresa, pois, o trabalho de Adriana tratava de questões que me eram caras: a representação do espaço arquitetônico em pintura, o vazio e o espaço da memória.

 

1. A pintura de arquitetura e a arquitetura da pintura

Para quem investiga a convencionalidade dos sistemas de representação como discursos da pintura, a representação da arquitetura apresenta-se como motivo ideal. Pode-se dizer que a imagem arquitetônica evoca três espécies de espaços, três eixos que, a meu ver, entrelaçados, constituem a obra: o espaço da memória, o espaço da história e o espaço estético.

1) O Espaço da Memória. Este espaço diz respeito ao universo íntimo do artista, àquelas imagens que o cercam e que são referências pessoais, afetivas. Imagens que desencadeiam novas imagens. Imagens que deverão ser transferidas para o campo da pintura e transmutadas. Refere-se aos documentos de trabalho do artista. Costumo dizer que são a energia vital da obra; aquilo que lhe confere singularidade.

2) O Espaço Histórico: Aqui se estabelece o diálogo com a história da pintura e suas convenções. Revisitar a história permite a formulação de novas perguntas e o resgate de imagens ou motivos representacionais.

3) O Espaço Estético: Este espaço seria a zona de confronto e de revisão dos discursos pictóricos. É o espaço de contextualização, entendimento e discussão sobre os discursos da pintura contemporânea. Sempre lembrando que esta discussão perpassa e é levantada pela imagem pictórica.

A partir destes três eixos tentarei uma aproximação das pinturas de Adriana Maciel.

 

2. O espaço da memória e a memória do espaço

A princípio, observando a estrutura das pinturas de Adriana , levantei a hipótese de que suas imagens de interiores seriam derivadas de registros fotográficos, principalmente devido à construção da luz e ao aspecto de corte fotográfico que apresentam (Figura 1) No entanto, em entrevista com a artista, acabo por descobrir outros aspectos em seu processo. As imagens pictóricas de Adriana partem de pequenos croquis, escritos e registros de memória. Muitas vezes são as memórias dos espaços um dia habitados na infância que se tornam os documentos geradores de suas obras. Ao ser indagada sobre a origem da imagem da pintura S/ título, 2003 (Figura 1), a artista comenta:

O quintal da casa da minha mãe (em BH), onde residi por aproximadamente 25 anos da minha vida. Possui um alçapão; um buraco no concreto do quintal. A tela exposta em 2004, é quase fiel a este espaço que sempre me intrigou. Era um lugar inacessível, sempre trancado com cadeado, mas sabia desde pequena, que era um grande buraco vazio por ser um reservatório de água que nunca funcionou como tal. Era ótimo para a fantasia: inacessível, perigoso e um absoluto vazio para ser preenchido com toda a imaginação possível. Esta tela poderia ser oriunda de um registro fotográfico. Não inventei, existe. Mesmo assim, é uma tela realizada de memória.

 

 

Importante salientar, também, que seu pai era arquiteto e as imagens e projetos desse campo constituíram tanto o arcabouço imagético da artista como sua experiência sensorial em relação ao espaço. Do ponto de vista da experiência vivida, sabemos da impregnação do espaço arquitetônico sobre o sujeito, dos espaços que habitamos ao longo da vida e de como a lembrança dos acontecimentos habitam estes espaços. Gaston Bachelard já teria ressaltado que a memória não registra as "durações abolidas". Conforme o autor,

só podemos pensá-las, pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de qualquer espessura. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas (Bachelard, 2000, pp 28-29).

Os antigos, estudiosos da arte da memória ou mnemotécnica, já o sabiam quando sugeriam, como Quintiliano, que

para bem recordar um discurso deve-se em primeiro lugar recordar uma construção a mais ampla e variada possível, com pátio, sala de estar, os quartos, os salões, sem omitir as estátuas e outros ornamentos que decoram esses espaço (Yates, 2007, p.19).

Ou seja, o primeiro passo era imprimir na memória uma série de loci, lugares, para em seguida serem alojadas pelo orador, em disposição ordenada, as imagens do discurso.

Adriana ao transmutar em pintura aqueles espaços/memórias que intimamente lhe devastam, oferece-nos uma série de loci, de espaços vazios que serão preenchidos com nossas próprias projeções. São nossas memórias e experiências corporais que construirão a narrativa. Não por acaso, a artista lança mão do colorido intenso em favor de uma sutil palheta de brancos. A tela em branco carrega consigo um caráter paradoxal. Ao mesmo tempo em que ela nos remete à ideia de vazio, de lapso, de ausência da imagem, ela é todas as imagens em potência, é possibilidade de aparição. A luz que nos permite visualizar as imagens e as coisas do mundo é a mesma que em sua intensidade é capaz de nos ofuscar, cegar. Do ponto de vista temporal, a mesma luz que dá visibilidade às imagens, através de sua intensidade por longos períodos de tempo, as faz desbotar. Literal e metaforicamente, o tempo descolore as imagens. As fotos antigas e mal acondicionadas são testemunhas. Fotografia e pintura estão implicadas, mesmo que de modos distintos, neste processo de aparição e desaparição. A palheta de Adriana é extremamente rica em sutilezas de tons. "Os brancos são sempre impregnados com outras cores", afirma a artista.

 

3. Um percurso histórico: o espaço na pintura

Na obra de Adriana não é apenas a memória íntima que é ativada, mas a própria memória da pintura. Escolher a arquitetura como motivo também é uma forma de evocar a sua ocorrência e importância na história da pintura ocidental.

As investigações efetuadas pelos pintores renascentistas italianos para resolver o novo senso de espaço que surgia, bem como a oportunidade de aplicar o método da perspectiva linear descrito por Alberti, levaram esses pintores a compor suas pinturas através da representação de estruturas arquitetônicas. A criação de compartimentos, de sobreposições de ambientes e elementos como colunas, arcos, assim como a inclusão das vedutas que indicavam um prolongamento para o espaço exterior da paisagem, permitiam utilizar o novo sistema e amplificar a sensação espacial.

Na pintura holandesa do século XVII, viu-se surgir, ao lado da natureza-morta e da pintura de gênero, uma outra categoria pictórica denominada Pintura Arquitetônica. Pode-se dizer que este ramo da pintura holandesa situa-se entre a pintura de paisagem e a pintura de cotidiano. "Perspectivas" era o nome genérico atribuído a todo tipo de pintura arquitetônica. Tratam-se de vistas de interiores, sobretudo de igrejas e palácios, e de exteriores, pátios, terraços e jardins, cenas de ruas e vias urbanas. Conforme Slive (1998: 262), "os pintores do século VXII foram os primeiros a minimizar a importância das pessoas nos cenários arquitetônicos, de forma a acentuar a beleza e a forma das construções, agora temas independentes." As pinturas de Pieter Saenredam , por exemplo, chamam a atenção pelas minúsculas figuras em preto que pontuam e dimensionam o majestoso espaço no qual se encontram, conduzindo nosso olhar para a distância.

A pintura de gênero holandesa, por sua vez, apresenta-nos outra espécie de espaço e será esta uma referência importante à pintura de Adriana Maciel. Se a pintura renascentista italiana irá resgatar os elementos arquitetônicos dos cenários do teatro antigo para criar espaço e profundidade para a representação do corpo e a pintura arquitetônica holandesa faz da arquitetura seu tema principal, representando em escala diminuta a monumentalidade dos espaços públicos, pode-se dizer que a pintura de gênero nos oferece a construção do espaço íntimo. Sendo assim, ao contrário da exacerbação da distância, oferece-nos um espaço quase sem recuo, espaço pouco profundo e próximo ao espectador. Por certo, diferentemente do gênero anterior, o espaço construído, o ambiente interior está a serviço da ação de seus personagens. Postamos-nos como voyeurs de uma cena íntima construída em forma de caixa na qual a parede de fundo, muito próxima a nós, – penso aqui em Veermer, uma referência cara à artista – duplica a própria superfície da tela. Daniel Arasse aponta um aspecto que diferencia as representações de paredes dos interiores de Vermeer da maior parte de seus contemporâneos. Na maioria de suas pinturas, não encontramos aberturas ao fundo que prolonguem o espaço. O artista nos apresenta espaços fechados iluminados por janelas laterais em perspectiva que muitas vezes vemos de perfil (Arasse, 2001 :145). As paredes de Vermeer localizam-se próximas ao espectador. O fundo da caixa de cena avança. Em A Leiteira (Figura 2, Figura 3), Arasse ressalta um detalhe curioso que comprovaria a atenção do pintor voltada à importância da superfície pictórica.

 

 

 

 

Vermeer havia pintado, inicialmente, um objeto dependurado à parede, sem dúvida, um mapa. Deixando, finalmente, sobre a parede nua, somente os traços cuidadosamente representados do que estava ali fixado (um prego e um buraco de outro prego arrancado), Vermeer evacua toda informação particular e deixa ver somente, para equilibrar a multiplicação luminosa da natureza morta posicionada sobre a mesa ao primeiro plano, a representação de uma superfície que se apresenta como uma superfície de pintura (Arasse, 2001: 145)

Retire-se os personagens e objetos que habitam o espaço e logo poderemos estabelecer relações com a pintura de Adriana. Em suas pinturas do final dos anos de 1990 a artista cria espaços arquitetônicos de interiores vazios pontuados por pequenos objetos solitários (Figura 4). Objetos utilitários que nos remetem a ações cotidianas que nos são bem conhecidas. Solitários evocam a ausência da presença humana. São objetos, também, que intensificam a ideia de receptáculo, de reservatório: uma garrafa, uma caixa, um copo, uma xícara ou outros. Objetos que servem para guardar ou receber coisas . A estrutura espacial, por sua vez, é construída em alguns casos por uma perspectiva oblíqua (Figura 4), mas, na maior parte das vezes apresenta-se em perspectiva frontal. Nesse caso o espaço torna-se menos profundo e a planaridade da pintura torna-se mais evidente (Figura 5). Observando a Figura 5, podemos traçar fortes relações com a análise de Arasse sobre parede de fundo de A Leiteira de Veermer. Na representação de Adriana tudo fora subtraído, restando apenas os pregos e o tecido branco. Objetos fixados sobre a superfície vertical que intensificam e duplicam a natureza do suporte. Tecido e pregos sobre a parede não estariam metaforizando as especificidades da própria tela que os contém? O plano frontal parece assumir cada vez mais relevância na obra de Adriana apontando para novas questões.

 

 

 

 

 

3. A parede e o espaço na e da pintura

A representação da arquitetura e seus elementos estruturais funcionam como um excelente procedimento para discutir a querela modernista sobre a antinomia ilusão-planaridade, sobre o espaço na e da pintura. Adriana não descarta a representação para discutir a linguagem. A artista discute o espaço pictórico sem recorrer a reducionismos e sem abrir mão de sua dimensão metafórica. A partir de 2003, referências a objetos, ao chão e ao teto são retiradas da imagem. Resta apenas o plano da parede representada e dividida internamente por representações de nichos, reentrâncias, cortes ortogonais e volumes representados. Adriana começa a dividir a tela em polípticos e os cortes, agora reais, reverberam na imagem pintada. A parede onde se encontra o quadro torna-se parte integrante da pintura. De anteparo passivo passa a elemento ativo da composição. Adriana incorpora em seu trabalho o próprio espaço expositivo. Como sabemos, o quadro como objeto (pintura e quadro-limite) apresenta-se indissociável da instituição, do espaço de exposição, da parede do cubo branco. A pintura sempre esteve condicionada aos espaços de sua apresentação. As transformações, ao longo da história, das funções da pintura estão pari passu com as transformações ocorridas em seus modos de apresentação. Segundo Krauss,

dada sua função de suporte material da exposição, a parede da galeria tornou-se o significante de inclusão e pode, portanto, ser considerada per se uma representação do que poderíamos chamar de 'exposicidade' (Krauss, 2002: 41-42).

A história da arte moderna está correlacionada À história da constituição dos espaços de visibilidade da própria arte. Sabe-se que a pintura moderna foi pouco a pouco tomando consciência e posse do espaço de exposição como conteúdo, sendo que a estética da superfície e da autodefinição empreendeu um movimento de distensão entre o limite da tela e a parede. Consciente do espaço que a própria pintura habita, Adriana começa cada vez mais a dialogar com as paredes, os cantos e o chão do espaço expositivo (Figura 6, Figura 7). A profundidade representada simula, através do trompe l'oeil, a escavação da própria parede onde o quadro se encontra suspenso assim como fragmentos de telas projetam-se para fora, em direção a sala de exposição. Em Deslocamento (Figura 8) a pintura rompe com a estrutura quadrangular do suporte. Uma pequena tela desliza para fora do limite do retângulo. O vazio não é mais representado, o nicho torna-se real. Existe aqui uma ambiguidade perceptiva, pois, ora o branco da parede torna-se buraco, apagamento, lapso da imagem, ora projeta-se para a frente como mais uma tela virgem a ser preenchida. Através dessa nova operação, a artista instaura uma nova série de loci no qual deverão ser alojadas, não apenas a memória íntima, mas a história da pintura e sua antiga querela em torno da representação.

 

 

 

 

 

 

 

Referências

Arasse, Daniel. (2001) L'ambition de Vermeer. Paris : Adam Biro. ISBN 2-87660-321-7        [ Links ]

Bachelard, Gastón (2000) A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes. ISBN 85-336-0234-0        [ Links ]

Krauss,Rosalind (2002) "Os espaços discursivos da fotografia" in: O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili. ISBN 84-252-1858-6        [ Links ]

Yates, Frances (2007) A arte da memória. Campinas: Ed. Unicamp. ISBN 978-85-268-0768-6        [ Links ]

 

Artigo completo enviado a 26 de janeiro e aprovado a 31 de janeiro 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: mvcorona@terra.com.br (Marilice Corona)

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