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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

DOSSIER: ARTIGOS ORIGINAIS POR AUTORES CONVIDADOS

DOSSIER: INVITED ORIGINAL ARTICLES

A Coisa em Si do Viver: a Arte de Oriana Duarte

The Thing in Itself of Living: art of Oriana Duarte

 

Orlando Maneschy*

 

*Brasil, Par académico externo da Revista Estúdio. Artista visual, curador independente e professor pesquisador.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Arte, Programa de Pós-Graduação em Artes. Pça da República s/n. Belém, Pará CEP 66.017-060 Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Neste artigo iremos abordar a obra A Coisa em Si e seu desdobramento em O Gabinete de Souvenirs da Coisa em Si – Belém, para refletir sobre seus procedimentos e questões ativadas nesses trabalhos, a partir da formulação operações artísticos-performáticas, com as quais a artista opera.

Palavras chave: Performance / corpo / Arte Brasileira / Oriana Duarte.

 

ABSTRACT

In this article we discuss the work the thing itself and its deployment in The Souvenirs Cabinet of the Thing in Itself – Belém, to reflect on their procedures and activated issues in these works, from the formulation artistic-performing operations, with which the artist operates.

Keywords: Performance / body /Brazilian Art / Oriana Duarte.

 

Este artigo debruça-se sobre a produção da artista plástica Oriana Duarte, paraibana, radicada na cidade de Recife (capital do estado de Pernambuco, nordeste brasileiro), em especial sobre uma momento de sua obra em que esta converge para a região Norte do Brasil. Iremos abordar um projeto no qual a relação com o ambiente amazônico se materializa e que passou a integrar, desde 2011, a Coleção Amazoniana de Arte da Universidade Federal do Pará.

Lanço aqui, o olhar para a obra de uma artista, professora, pesquisadora, performer, cuja produção vem se constituindo de maneira em que o pensamento é mola propulsora para seus projetos, e que a estética manifesta-se em sua sofisticada forma de pensar, articulando com a filosofia, com o design e com o corpo, constituindo sua vida como forma de inscrever seu estar no mundo.

Partiremos da performance A Coisa em Si, até chegarmos a instalação Gabinete de Souvenirs da Coisa em Si – Belém para refletir sobre seus procedimentos de elaboração conceitual. O Gabinete é constituído por um conjunto de objetos, imagens, partituras compostos pela artista a partir de sua performance A Coisa em Si, na qual prepara uma sopa de pedras, empregando pedras que traz consigo, do local onde a performance se deu anteriormente, e de outras do lugar em que a performance se dará (Figura 1).

 

 

Em Belém (capital do Pará, no norte do país), realizou sua performance em meio ao vertiginoso Mercado do Ver-o-Peso, entreposto centenário e mais importante mercado da cidade, no que alimentos, feitiços e animais exóticos eram comercializados lado a lado. Lá, no final dos anos 1990, Oriana Duarte tomou sua Sopa de Pedras diante dos frequentadores do ambiente, que tentavam entender qual o sentido da ação da artista. Duarte mergulha na Filosofia para pensar o gesto, o percurso, aquilo que poderia produzir sentido na fricção do contato, em um campo prenhe de incertezas, perguntas, experiências por ocorrer, instaurando uma "coisa-lugar" que transmuta-se no encontro com as coisas no mundo.

Após a performance, a artista reúne documentos, para constituir seu gabinete. São as pedras, as colheres com as quais tomou a sopa, dentre outros documentos que irão compor esse campo de reverberação da ação. Um conjunto de experiências, deslocamentos, trajetos interiores e exteriores, permeados de pontuações, mapeamentos, partituras que irão ser articulados à partir das ações que compõem o processo da obra A Coisa em Si. São imagens que, a cada visita, nos desloca novamente para fora de nós mesmos e de uma possível segurança, propondo novos arranjos possíveis no viver da experiência artística.

Buscar acessar o processo da artista e compreender como suas operações artísticos-performáticas (Duarte, 2008:1) deflagram aquilo que ela aponta como um input de sua criação, em que outras obras são geradas, lançando mão de linguagens diversas é uma desejo, entretanto, compreendemos que a obra não irá ser esclarecida, mas nos lançará novos questionamentos ao longo da relação com a mesma. Aqui, em A Coisa em Si, a performance é deflagradora de processos intensos em que outros trabalhos são gerados e vem somar na constituição de uma fala.

Levar de um lugar ao outro e depositar uma coisa em um lugar. O lugar onde esta coisa ficará já não é mais o lugar – é a coisa. Metamorfose de espaço em matéria? O lugar deixa de ser puro? As coisas não são puras. O lugar para existir depende do gesto que o aponte, da linha que o delimite, de uma coisa que o preencha? A coisa, por sua vez, necessita do lugar que a receba, que a torne necessária, que a identifique entre tantas outras coisas? Há um espaço a ser preenchido? Há um vasto espaço. E as coisas são ocupações de espaços... E gestos locam-deslocam-relocam coisas no espaço. Neste lugar, esta coisa, neste gesto? Lugar persegue coisa e gesto; coisa persegue gesto e lugar; gesto persegue lugar e coisa... Uns e outros, por vezes, completam-se e anulam-se? Há um registro da transposição de informações: um entreposto – lugar sem perguntas e respostas; ocupado pelo incerto, por manuseios e superações. E a coisa está num lugar que não se preencheu? É possível que reste um lugar... outra coisa-lugar (Duarte, 2008: 2).

Oriana Duarte, na repetição do simples gesto de alimentar-se com uma sopa, feita com água e esse misturar de padras, do lugar em que se encontra com o outro, articula uma complexa discussão sobre territorialidades, deslocamento e acúmulos. Seja esse o do gesto, do pequeno gesto de alimenta-se; alimenta-se de uma soma de tempos, de experiências, de lugares pelos quais atravessou e foi atravessada. Memória e presente em um amálgama fluido... água... sopa de pedras... Tempo inscrito nas pedras, nos fluxos e deslocamentos da artista. Não é à toa que a instalação constituída para esta performance denomina-se O Barco (Figura 2). É com este dispositivo que Duarte realiza sua travessia, na ação da ingestão. É nesse pequeno gesto, aparentemente simples e continuado que a artista compõe um adensamento de questões, fundadas em deslocamentos, conexões, ressignificações, como indica a artista: "Concebido como um lócus ritualístico, 'Barco' lida com a mediação do público [...] Obra multimídia, que explora distintamente o potencial hipnótico do audiovisual por repetição contínua de um mesmo conteúdo" (Duarte, 2008: 2).

 

 

Há uma laboração continuada deflagrada no momento da operação artístico-performática. Ali há o disparo que aciona outas experiências, internalizadas e que materializam no mundo outras criações. A articulação conceitual da artista sobre o tempo, repetição e diferença parece-nos em fina aproximação com o pensamento de Gilles Deleuze.

A artista, em A Coisa em Si, na reprodução do ato aponta, também, diferença. Ao deslocar uma pedra de uma cidade a outra, constituir aproximação para realizar um "cozimento", potencialidades são acionadas, temporalidades já inscritas nas camadas do mineral, de ancestralidade, presente no tempo geológico das pedras. Os tamanhos são aproximados, a aparência não revela diferenças tão significativas entre as pedras, mas nesse hiato de tempo e local dá se a fricção. Há aqui, nessa metáfora do cozinhar, um ponto de inflexão acerca da combinação das experiências, dos lugares, pelos quais Duarte passa, sobre a existência do artista no mundo. Na panela água e pedras; o cozimento se dá na mente da artista, em suas ideias, miolos a pensar, pensar, pensar. O Fogão é uma televisão em que um video de uma gaiola com pedras em chamas atravessa a tela em movimento pendular. Qual a potência dessa imagem para deflagrar o cozimento da sopa por meia hora? Esta gaiola com pedras, heteróclitos, nos reportam a objetos homônimos constituídos pela artista em seus processos performáticos. Seus Heteróclitos, como nos remetem a instalação O Barco, tanto como elemento constituinte: gaiola com gravador (em outro casos contém pedras, lâminas de vidro etc.), quanto no video: gaiola com elementos em chamas, nos conduzem, novamente, a Deleuze, no entendimento desse princípio de por junto coisas que aparentemente não teriam a mesma "natureza". É o diferente em pleno contato, em associação íntima, mas também, ao colocar ali, no seu Fogão, objetos e imagem em movimento, elabora requintada torção conceitual, nos levando a refletir, ainda com Deleuze, nessa fricção de diferenças, sobre a relação tempo-imagem:

o que se rompeu foi a linha ou a fibra de universo que prolongava os acontecimentos uns nos outros, ou garantia a junção das porções de espaço […] A elipse deixa de ser um modo de narração, uma maneira pela qual se vai de uma ação a uma situação parcialmente desvendada: ela pertence a própria situação, e a realidade é lacunar bem como dispersiva (Deleuze, 1983: 231).

Nesses deslocamentos promovidos no Barco, a imaterialidade da imagem ativa a "materialidade" e da sopa ideia. Pedras e água, ativadas pela artista em seu delicado e potente gesto de ingestão do líquido. É na associação/dissociação de elementos que os heteróclitos ativam sua potencialidade. Na dispersão da feira livre, em que público amalgama-se na paisagem. Repetição e diferença.

Após a ingestão, a artista dobra, envolve, com papel carbono os objetos utilizados na ação. Há uma imantação contida nessa ação. É como se o papel carbono – aquele que duplica, que imprime um registro – fosse impregnado da energia do gesto performático de Duarte, absorvendo as marcas, o peso, os volumes dos objetos, retendo indícios pelo fragmento das marcas. Marcas essas fadadas a desaparecer com o apagar da tinta carbonada, na sutiliza do infra-mince duchampiano, nesse entre tempo, fragmento de experiência estética, presente na delicadeza das marcas no papel que evanescerão... tornando-se, praticamente, imperceptíveis na inscrição temporal.

Ao constituir o Gabinete de Souvenirs da Coisa em Si – Belém, (Figura 3, Figura 4) imagens das performance somam-se a objetos, com mapas internos do corpo da artista, feitos a partir de endoscopias, partituras do Hino do Pará, gravados em feltro com papel carbono e bordados com pequenos anzóis, objeto – caixa de madeira – que nos remonta a uma caixa de música mecânica, de onde sai a partitura do hino marcada no papel carbono, em outra caixa, pedras, colher e fotografia e minúsculos anzóis. Heteróclitos de uma experiência, calcados na arte. Diferente vestígio... inscrição de percursos, desdobramentos da prática performativa, de trajetos interiores e exteriores, vivos no corpo da artista, inscritos na fugacidade de uma performance realizada na feira livre de uma cidade ao norte dos grandes centros do Brasil, logo abaixo da linha do equador... na flutuação de um Barco, em que uma artista tomava sopa de pedras e constituía arte como ideia, como música no corpo da cidade, na tessitura do tempo, da vida. Sua última (?) sopa de pedras fez para amigos, e seguiu em um novo barco, cruzando cidades, colando paisagens, construindo pontes entre lugares e pessoas, deixando rastros densos aos quais denominamos arte.

 

 

 

 

 

Referências

Deleuze, Gilles (1985) Cinema a imagem-movimento. São Paulo: Ed. Brasiliense.         [ Links ]

Duarte, Oriana (sd) Usei meu corpo: das vísceras fiz sopa, dos membros fiz pontes. Disponível em:http://www.portalabrace.org/vcongresso/textos/territorios/Oriana%20Maria%20Duarte%20de%20Araujo%20-%20Usei%20meu%20corpo%20das%20visceras%20fiz%20sopa%20dos%20membros%20fiz%20pontes.pdf        [ Links ]

Duarte, Oriana (2001) "A Coisa em Si." Dossiê encaminhado a III Bienal do Merco Sul, Porto Alegre.         [ Links ]

 

Artigo completo enviado a 26 de janeiro e aprovado a 31 de janeiro 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: orlandomaneschy@gmail.com (Orlando Maneschy)

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