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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

DOSSIER: ARTIGOS ORIGINAIS POR AUTORES CONVIDADOS

DOSSIER: INVITED ORIGINAL ARTICLES

Chumbo em Anos de Chumbo: o lirismo combate a ditadura

Art against dictatorship

 

José Cirillo*

 

*Par académico externo da Revista Estúdio. Professor universitário e artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal de Espírito Santo, Centro de Artes, Programa de Pós Graduação. Av. Fernando Ferrari, 514 – Goiabeiras – Vitória – ES. CEP 29075-910 Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente artigo discute o papel da arte como estratégia de crítica política durante a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). A partir do estudo do processo criativo do painel mural de Raphael Samu (1974) para a Universidade Federal do Espírito Santo, pretendemos evidenciar uma intencionalidade do artista em fazer uma reflexão sobre o estado político do país naqueles anos. O estudo revela que por meio de uma linguagem visual lírica, o artista usa uma estratégia de resistência política que passa desapercebida pelas autoridades universitárias e mesmo pela censura do estado de controle.

Palavras chave: arte pública / Raphael Samú / arte capixaba / ditadura militar.

 

ABSTRACT

This article discusses de role of art as political critique during the military regime at Brazil (1964-85). We will departure from the creative process of Raphael Samu for Universidade Federal de Espírito Santo (1974) and then we will search for the purposes and reflections of the artist on the political situation during those years. This study shows that, through a lyrical visual language, the artist uses a strateg y of political resistance that remained unseen by the political authorities and by the state censorship.

Keywords: public art / Raphael Samú / capixaba art / military regime.

 

1. Introdução

A Ditadura Militar brasileira teve sua fase mais retalhadora nos anos de 1970, década de aprimoramento dos mecanismos de controle e tortura. São anos de forte propaganda oficial do governo; anos de pão e circo, mas, sobretudo, anos de chumbo para os movimentos sociais ou qualquer tipo de oposição declarada. Fazer resistência aberta ao governo militar era colocar-se voluntariamente nos sítios da tortura. Neste contexto de repressão foi construída a obra mural que representaria a recém-criada Universidade Federal no Espírito Santo. Raphael Samú, professor e artista com ampla experiência na produção de obras em grande escala foi convidado pelo Reitor do novo campus para executar a obra. A escolha parece ter ignorado a memória e a cultura deste artista, filho de pais húngaros foragidos para o Brasil em decorrência do regime político da União Soviética. Samú projeta e executa uma obra pública de 140 m2 que aparentemente discorre sobre a utopia e a ciência, sobre a Universidade e o futuro.

A análise de documentos do processo dessa obra, bem como de sua contaminação pela cultura do momento histórico, associados a uma análise semiótica das imagens, revelam que talvez esta seja a maior obra de resistência e crítica políticas aos anos de ditadura em solo capixaba. Um grito silencioso que evoca a resistência da juventude e coloca a Universidade e o conhecimento como a nova utopia de transformação social em direção ao futuro.

A Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) foi criada em 1961, no apagar das luzes do governo Kubitschek, mas sua efetivação e edificação se deram ao som dos anos que sucederam o Golpe Militar de 1964. Assim, o novo espaço acadêmico que materializava o sonho capixaba de ter em seu solo uma Universidade federal, agrega-se à vontade política de também avançar os limites municipais da capital.

O Prédio inicialmente utilizado para a Administração Central e pela Biblioteca da UFES ficava imediatamente na entrada do campus. O projeto arquitetônico deste prédio desenhava um grande paredão de mais de 140 metros quadrados, uma empena cega virada para a cidade. O reitor, Máximo Borgo (1971-1975), convidou o recém-contratado professor do Centro de Artes, Raphael Samú para realizar uma obra neste espaço.

O painel realizado por Raphael Samú se configurou em um mural de aproximadamente 140 m2, localizado na entrada da UFES. Segundo relatos, na época a localização do painel estava relacionada à questão dela dar-se à cidade. Um novo futuro e limites para uma cidade insular. Os estudantes, professores ou técnicos da UFES, mas, principalmente os transeuntes pela grande avenida de integração da cidade, ao passarem ou entrarem na nova Universidade seriam acometidos pelo que Pierce chama de admirável. Uma grande obra que interligaria visualmente a cidade e a Universidade. Um sobressalto aos sentidos que nos parece ocultar uma fratura no crescente esvaziamento crítico da percepção promovida pelo então governo militar que orquestrou a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), que usurpou os direitos civis e exerceu sua capacidade de massacrar a liberdade e os direitos humanos.

Além das questões da censura política e cultural acirradas nos anos de 1970, outros desafios estruturais para a criação e construção da obra se colocaram ao artista, mas o mais sério parece ter sido mesmo lidar com a tesoura da censura militar. Assim, como criar uma obra, em plena repressão militar que ao mesmo tempo não fosse censurada, mas que não se subjugasse a ela? Samú colocou-se nesta empreitada.

 

2. A experiência em arte pública de Raphael Samú

Parece-nos que Raphael Samú encontra em sua história pessoal a estratégia e a imagem geradora da obra investigada. Nascido em São Paulo em 1929, ingressou em 1949 na Escola de Belas Artes de São Paulo, formando-se em escultura em 1955.Seu interesse em trabalhar com tesselas levou-lhe a prestar serviços em uma empresa especializada nesse campo. Durante esse período, Samú adquiriu seus conhecimentos sobre a produção de obras murais com pastilhas de vidro, executando trabalhos para artista como Di Cavalcante, Lívio Abramo, Clovis Graciano e Cândido Portinari.

Samú é conduzido, ainda em São Paulo, por um processo de contaminação pela estética urbana e social, de formação de imagens da cidade, e não poderia esquecer isto na estruturação de sua obra. Como os artistas para os quais trabalhou, ele experimenta diversas linguagens, mas é a interface de seu projeto poético com a cidade que nos interessa aqui. Falamos de uma produção artística de Samú que se enquadra numa perspectiva ampliada do que é entendido como espaço público. Alves (2006) conceitua espaço público como sendo "aquele para cujo acesso o expectador necessita da livre circulação". Para este autor, para apreciar a arte em espaço público, não é necessária permissão, nem pagamento, nem tampouco atravessar muros, grades, etc.

É neste ponto que desenvolvemos a tese de que a obra de Raphael Samú, de forte tendência para as questões do espaço público, apresenta uma tendência à uma crítica social expressiva – possível influência de Portinari e Graciano. Analisando os documentos e arquivos do processo criador deste artista, parece-nos possível afirmar que Samú revela uma intencionalidade: compartilhar a experiência estética da obra, levar ao grande público a experiência estética, não apenas por meio das formas, ou das cores, mas principalmente pela sua dimensão e situação espacial em espaços coletivos. Sua produção mural revela figuras de pés descalços, corpos com braços e pernas fortes, uma possível analogia com o imaginário simbólico do trabalhador braçal que será recorrente em sua obra mural – e que também nos remete à possíveis influências da estética de Graciano e Portinari, e por que não, dos muralistas mexicanos.

 

3. Considerações sobre o tema e o projeto: radiografia de uma obra

O desafio colocado ao artista era domar uma empena cega de um prédio térreo – que se alongava friamente em sua alva brancura ao olhar do passante. Samú tem o desafio de humaniza-la e dar-lhe uma identidade, e para tal. Toda sua experiência adquirida nos tempos da São Paulo foi colocada em ação. A imagem do painel deveria refletir sua época, a missão da Universidade, a coletividade. E esse foi o caminho escolhido no processo de criação desta obra que sucedeu etapa por etapa ao longo de meses. Num trabalho de joalheiro, na precisão de cada tessela... num trabalho de engenheiro, calculava cada centímetro da obra... planejava... executava... construía andaimes e escadas, edificava.

A questão social permanecia. Como construir uma imagem de futuro para uma Universidade se colocava como um desafio em tempos de censura. Assim, na interface com a cultura de seu tempo, bem como com a mediação de sua memória como sujeito fenomenológico, revelam-se tendências do projeto poético do artista. Assim, toma na sociedade e nas questões atuais o ponto de partida das diretrizes a serem consideradas para a produção. Imagens de desenvolvimento, de sonho que se torna realidade, da tecnologia transformando a sociedade. Estas são nortes iniciais. O início dos anos de 1970 ainda estava tomado pelo assombro dos primeiros passos na Lua. A corrida espacial era fato, embora fora ficção. A imagem: um sonho que se realizava. Utopia e realidade como dualidades complementares. Binômios iniciais nortearam o projeto. Samú se coloca então em direção à materialização dessa imagem da utopia x realidade. A forma geral deveria ser capaz de expressar essa realização.

Tendo crescido na São Paulo dos anos de 1920 e 1930, Samú acompanhou toda a movimentação cultural da cidade ao longo dos anos de 1960. Viu a utopia de uma capital nacional edificada no nada em cinco anos. Viu o homem que acabara de chegar a Lua. Nos anos de 1960, sonhos se materializavam. Flash Gordon – paixão infantil do artista – era republicado; Gordon era ficção em uma manhã de domingo de 1934. Armstrong era um fato em 1969. A lua e as espaçonaves havia se tornado realidade. "Um pequeno passo para o homem, mas um gigantesco passo para a humanidade", diria o astronauta.

Parecia que a promessa positivista se concretizara e a tecnologia redimiria a humanidade, superaria as diferenças, minimizaria o sofrimento – pura ilusão ufanista do fim da década de 1960, quando a realidade social do mundo estava prestes a desabar. A Guerra Fria dividira o mundo. As pessoas pareciam emudecidas por totalitarismos políticos e econômicos. Raphael Samú, filho cultural e exilado do Leste Europeu, com pais despatriados pela ditadura soviética, encontrou na saga espacial a imagem inicial. A metáfora da ficção se tornara realidade. Uma metáfora da própria história da UFES, o novo campus era um fato, e o painel expressaria isto. Promessas de desenvolvimento científico e cultural estavam à sombra do manto totalitarista do regime militar e da opressão política no Brasil. Essa névoa cinzenta pairava nos becos escuros da glória da propaganda desenvolvimentista do país. Neste conflito deste contexto, as imagens e o projeto do painel começam a configurar-se.

Dos tempos de sonho, e da esperança de uma solução para os problemas, um recorte da saga de Flash Gordon. Gordon é um índice da utopia. Neil Armstrong, a imagem da Apolo 11 e do astronauta são materializações da realidade. "[...] um gigantesco passo para a humanidade"... Talvez daí a metáfora que uniu as imagens e a Universidade e revelam a intencionalidade poética: a UFES, um grande passo para a sociedade e cultura do estado. A realidade metafórica se materializava numa pequena caminhada na Lua. A Universidade federal no Espírito Santo se materializava numa corrida pela madrugada nos corredores do Congresso Nacional (NB: A pressa do então deputado Dirceu Cardoso, atravessando a noite em correria a Esplanada dos Ministérios com um processo nas mãos era o retrato da urgência do Espírito Santo. A Universidade Estadual, um projeto ambicioso, mas de manutenção difícil, se transformava numa instituição federal. Foi o último ato administrativo do presidente Juscelino Kubitschek, em 30 de janeiro de 1961. Para o Espírito Santo, um dos mais importantes). Esse diálogo com a realidade de seu tempo e seu espaço parecem ter norteado as escolhas deste artista. Se a ficção virou realidade, a utopia se materializou.

Se nos deitamos os sentidos no painel, inicialmente parece-nos uma obra apenas ufanistas. Doce ilusão da censura da época. Nossa hipótese aqui é que juntamente com a metáfora construída entre utopia x realidade, Samú não se desconecta da outra metáfora que assola o Brasil: militar x civil, opressão x liberdade, democracia x ditadura. Essas oposições semânticas, veladas no plano da aparência, se revelam no plano de conteúdo da obra (Figura 1, Figura 2).

 

 

 

 

 

4. Edificação de um discurso velado

Ao analisar-se o projeto e a obra, observar-se que ela está dividida em dois grandes campos a partir de um eixo central. O centro da imagem é ocupado por um jovem em um microscópio.

Na Figura 3 à direita podem ser vistos dois recortes inspirados em imagens de desenho de quadrinhos (Flash Gordon), uma referência à Apolo XI e ao Módulo Lunar, finalizando com as imagens de alguém caminhando com macacão espacial e o retrado do astronauta. à esquerda da imagem central, percebe-se um grupo de pessoas, provavelmente jovens pelo biótipo, usando calças levemente curtas com os pés descalços e ao fundo deles a sombra de outras pessoas; os jovens parecem conversar, estando virados de costas para as imagens anteriores e com um deles voltado, o rosto voltado para o final do projeto, no qual pode-se ver a sigla da Universidade "UFES" acompanhada de desenho que representam uma computador de bobinas, um cartão e números relacionados a processamento de dados.

 

 

Pode-se dizer que o plano da aparência dessa obra apresenta revela a intencionalidade primeira: a oposição semântica utopia x realidade contrapondo a saga espacial e a saga da Universidade, mediadas pelo conhecimento investigativo indiciado na imagem do eixo central. A localização topológica das sequencias na obra parecem revelar outra intencionalidade: esboça-se uma crítica à situação político-social da época. Em toda a metade direita da obra as imagens referem-se a um conteúdo militarizado, representado por Flash Gordon, por Neil Armstrong e a Apolo 11. Na metade esquerda, um conteúdo cível construído com a imagem dos jovens e da Universidade (pertencente ao Ministério da Educação e não ao das Forças Armadas no Brasil). Assim, parece se construir por trás da oposição conjuntiva utopia x realidade, uma oposição semântica disjuntiva e antagônica entre MILITAR x CIVIL; topologicamente, a localização das imagens à direita e esquerda constrói outra oposição que reforça essa intencionalidade crítica disjuntiva expressa na oposição DIREITA x ESQUERDA. Observa-se, ainda que a mancha sólida que dá contorno ao retrato do astronauta irá transpor-se para o eixo central da obra, sendo seu azul interrompido por uma linha azul mais claro que define a imagem inicial na parte central da imagem.

Enquanto estes dois campos da obra revelam uma aproximação política de antagonias, o centro da imagem é ocupado pela imagem de uma pessoa e um microscópio: jovem, homem e de cabelos pretos e longos que parece estar fazendo pesquisas – uma possível metáfora do investigar e produzir conhecimento como algo que não está limitado ao setor militar. Se o retrato do astronauta demarca o fim da área da "direita" na obra, é da mancha que se forma a partir da roupa do jovem central que brota a silueta que sugere o grupo de estudantes, de costas para a direita da obra e voltados para a extrema esquerda, onde se coloca o nome da Universidade e as imagens ligadas a computadores. Uma crítica ao sistema político do período aparentemente se instalou.

Se os jovens promissores, inteligentes e com a frieza necessária para os serviços aeroespaciais se configuram em Gordon e Armstrong (um jogador de polo e um brilhante estudante do MIT/USA), na metade esquerda os jovens se transfiguram na metáfora do trabalhador: pés descalços e fortes, pernas torneadas e a calça ligeiramente curta, imagens que encontram sua analogia na estética social dos artistas com e para os quais Samú trabalhara em São Paulo. A oposição entre esses dois tipos de jovens revela a potencialidade crítica da obra. Intenção consciente? Talvez seja intuitivamente que a mente criadora evoque essas metáforas edificantes – provável fruto de memória familiar do artista, permeada pela resistência à política soviética no Leste Europeu.

 

5. Considerações finais

Era sabido, naquele momento dos anos de 1970, nos anos de chumbo da ditadura no Brasil, que as universidades, junto aos sindicatos, eram berço das esquerdas e da resistência à ditadura. A proposta do artista expressa que esta nova Universidade deveria ser construída por esses jovens; constrói uma metáfora do trabalho. A utopia é retomada e a nova Universidade parece ser aquela construída pelo esforço das novas gerações – de costas para os totalitarismos e focadas no futuro. Samú nos oferece um objeto sensível. Um objeto político. Compartilha essa experiência estética, entrega à UFES e à cidade essa experiência. A obra parece ser a metáfora da transformação. Um índice da resistência inteligente e silenciosa daqueles grandes artistas que cruzaram ativamente os anos duros da história brasileira.

 

Referências

Alves, José Francisco (Ed.) (2008). Experiências em Arte Pública: Memória e Atualidade. Porto Alegre: Artfolio e Editora da Cidade. 72 p.         [ Links ]

 

Artigo completo enviado a 20 de janeiro e aprovado a 31 de janeiro 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: josecirillo@pq.cnpq.br (José Cirillo)

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