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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014

 

EDITORIAL

EDITORIAL

Arte: do ritual ao virtual, sempre à procura

Art: from ritual to virtual, always looking further

 

João Paulo Queiroz*

 

*Portugal, editor da Revista :Estúdio.

AFILIAÇÃO: Portugal, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos de Belas-Artes. Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

A relação entre a arte e a transcendência é imemorial. Uma sociedade interroga-se sobre a vida e a morte, desenvolve rituais e estabelece mediações através da oferta de objetos, de sacrifícios, de representações, de práticas funerárias, de comportamentos que não surgem da necessidade biológica, surgem da necessidade pensada, ou melhor, surgem do espírito.

A questão estabelece-se entre o pensamento e as coisas. As coisas, o seu destino, o seu processo, o seu devir, têm regularidades, e irregularidades. Sobre as regularidades, como a quantidade, a permanência, a repetição, podemos estabelecer representações, ou relações de conhecimento. Sobre as irregularidades, percebidas como arbitrárias, que provocam incerteza, vida e morte, destinos indeterminados, podemos pensar uma determinação exterior, que nos transcende na duração e no conhecimento.

Podemos pensar Deus? Podemos influenciar os Seus desígnios? Podemos representá-Lo? Podemos dedicar-Lhe corpo, espírito, pensamento, oração? Podemos amá-Lo? Podemos negá-Lo? Podemos representar o mundo da Sua criação? Podemos vê-Lo?

Ao lançar "Deus" como tema deste número da revista Estúdio teve-se a perceção inteira da sua profundidade. A condição humana faz-se da representação da sua finitude, na mesma medida da grandeza do que a transcende.

As coisas são muitas vezes apropriadas em duas dimensões, utilitárias, profanas, onde o signo se limita ao seu uso (função signo) (Barthes, 1989), ou então surgem como representações de mediação com o ausente, entrando-se no campo da representação e do sagrado (Eliade, 1992).

Assim foi, neste número, o tema do desafio lançado pela Estúdio. Adicionou-se este tema ao escopo que a revista Estúdio sempre tem apresentado, e que a distingue, ao solicitar aos artistas e criadores que apresentem as suas perspetivas sobre as obras de seus companheiros de profissão, colocando um ênfase no estudo de artistas que são menos conhecidos, e dando prioridade aos originários dos países abrangidos pelos idiomas da revista, português e espanhol.

Nos últimos números da Estúdio tem-se podido analisar muitos contributos de grande qualidade, que colocaram em estreito contacto a ligação entre os diversos países, fazendo da Estúdio um espaço de conhecimento e de revelação.

Este número 10 da Estúdio é constituído por 18 artigos, selecionados a partir de 46 submissões, a que se adicionou um dossier editorial, perfazendo assim um total de 21 artigos e uma entrevista.

O artigo "O Sagrado e o Profano na obra de Paulo Kapela," de Teresa Matos Pereira (Portugal) reflete sobre a mediação que esse artista angolano, Paulo Kapela, convoca. Nas suas instalações a mediação com ausentes mais ou menos sagrados traduz uma apropriação dos conteúdos da cultura popular que nos faz refletir, de modo atualizado, e por exemplo, nas Mitologias, de Roland Barthes (2012).

Visitación Ortega (Espanha), no texto "Una mirada desdoblada: la Semana Santa en la obra de Pilar Albarracín" acompanha o trabalho vídeo desta última artista que se debruça sobre a Semana Santa andaluza e sobre as coreografias dos penitentes ocultos que transportam os andores, propondo uma sua revisitação sobre um prisma que medita o ritual e o estereótipo.

O artigo "Entre el cielo y la tierra: resignificaciones simbólico / religiosas en las instalaciones de Cildo Meireles," de María Silvina Valesini (Argentina), acompanha as instalações do artista brasileiro que, na instalação "missão/missões (como construir catedrais)" apresenta uma invocação da relação entre as coisas e o espírito, separação paralela entre o ouro e aquilo a que é dedicado, numa relação de magnitudes.

Paula Almozara (Brasil), no artigo "Paisagem e espaço: elucubrações sobre o sagrado e o sublime" apresenta uma perspetiva sobre a obra de Marcelo Moscheta, particularmente sobre a sua instalação Contra.Céu (2010) apresentada Capela do Morumbi em São Paulo: a apresentação de uma paisagem sem fim devolve ao espectador a sua transitoriedade, numa atualização do infinito que uma capela contém.

O artigo "Geometria, perspectiva linear e escala teológica, pintura e contemporaneidade. Que futuro?" de António Oriol Trindade (Portugal) estabelece uma dialéctica entre a idea pura que se representa pela geometria, e o seu reverso, os engenhoso artifícios ilusionistas.

Pablo López (España), no artigo "El diálogo del artista contemporáneo y la iglesia católica" apresenta uma reflexão sobre a atualidade das intervenções artísticas na espiritualidade por diversos criadores contemporâneos, contextualizando algumas interpelações da Igreja aos artistas, às suas possibilidades de proporem novas mediações.

A pianista Ana Cláudia de Assis (Brasil), traz a discussão deste tema para a música contemporânea, no artigo "Abyssus Ascendens ad Aeternum Splendorem." Apresenta uma reflexão sobre a gestualidade na obra de João Pedro Oliveira (para piano, orquestra e eletrônica) enquanto espiritualidade grafada na própria notação da peça.

O artigo "Hein Semke: Fé, Certeza, Erro ou Necessidade?" de Joanna Latka (Polónia / Portugal) apresenta a obra gravada desse autor alemão radicado em Portugal, particularmente as respetivas representações de Cristo talhados na madeira da xilogravura, que transmitem na sua cor e na textura da sua matriz a profunda materialidade da paixão: a goiva do xilogravador repete o calvário.

Guillermo Martínez (Espanha) no artigo "Adaptación estética y conceptual de la imaginería del siglo XXI en la obra escultórica de Juan Manuel Miñarro" apresenta as pesquisas e resultados do escultor español em busca de um referencial de objectividade, quando investiga o Santo Sudário de Turim, integrando a equipa de investigação do Centro Español de Sindonologurimía (CES).

O artigo "Sinval Garcia e os fluxos incessantes em Samsara," de Cinthya Marques do Nascimento e Orlando Maneschy (Brasil) apresenta a obra de Sinval Garcia, desaparecido prematuramente (1966-2011), particularmente a série Samsara (1997) onde este autor se auto representa como um corpo exposto, morto, em transição, em paixão, ou em exibição, observando-se uma inquietação sobre a identidade e a existência, adivinhando-se uma outra procura.

Zalinda Cartaxo (Brasil), no texto "Como um grão de areia: Sobre uma obra de Regina de Paula" apresenta uma obra que refere as escrituras sagradas, agora apresentadas como um livro de areia, ou seja, livro infinito, atualizando o conto de Borges (O livro de areia, 2012).

O artigo "En búsqueda de la redención: El infierno según los Chapman," de Fernando Sáez (Espanha), debruça-se sobre o trabalho de dois artistas da geração YBA (Young British Artists), os Chapman, que tomam o sofrimento humano como assunto de representação escultórica: no inferno, somos nós.

Mihaela Radulescu de Barrio (Peru), no texto "Dios en la Naturaleza: el recorrido iniciático de Harry Chávez" apresenta a obra híbrida deste autor peruano, que recupera os mitos ancestrais da Amazónia, a serpente, as plantas, o ser humano, as suas interligações.

No campo da joalharia, Ana Paula de Campos (Brasil), apresenta no seu texto a obra do joalheiro holandês "Ruudt Peters: a materialidade do corpo e a espiritualidade da matéria." A joalharia é desde há muito uma prática que procura a mediação entre o material e o espiritual, revisitando-se vasos e estruturas que remetem para ligações ao imaterial através da sua escrupulosa materialidade.

O texto "Religiosidad 'contracultural' en la obra de Ocaña" de José Naranjo (Espanha), reflete sobre a dimensão religiosa de um autor travesti, atormentado pelo contraste entre a sua identidade e a sua fé.

O arquiteto modernista brasileiro Flávio de Carvalho assumiu nos anos 30 do Séc. XX uma das suas obsessões mais pessoais, de modo provocatório, sobre o tema da religião, fazendo intervenções / performances. O tema é revisto por Ricardo Maurício Gonzaga (Brasil), que assim apresenta, no seu artigo, algumas das ações de Flávio, no texto "Na contramão da religião: Flávio de Carvalho e o bailado da morte de Deus."

Cláudia França (Brasil), no texto "Escuta e voz: sobre o ato de confissão no trabalho 'Escuto Histórias de Amor' de Ana Teixeira" apresenta as performances em que esta artista se propõe ouvir, numa espécie de confessionário de rua, as histórias de amor dos circunstantes.

O artigo "Dios como experiencia de luz en la obra de Mapi Rivera" de María Betrán Torner (Brasil) revisita o projeto anuntius, de Mapi Rivera, onde a fotografia reinterpreta o tema da anunciação.

Sandra Makowiecky (Brasil) no artigo "José Silveira D'Ávila: entre céus e infernos" revisita a obra deste autor, fundador da Associação Brasileira de Arte Sacra e associado aos projetos das "Escolinhas de Arte" do Brasil, apresentando relações entre a religiosidade açoriana e as marcas deixadas no Estado de Santa Catarina, Brasil.

O Dossier Editorial reúne alguns artigos feitos por convite, iniciando-se pelo texto "Do Céu aos Céus: Rui Macedo" de Margarida P. Prieto, onde a potencialidade metalinguística de Rui Macedo e os seus diálogos com os acervos e os edifícios permitem estabelecer ligações entre o espírito e a as suas representações.

O artigo "La imagen sincrética: los emblemas visuales de la pintura de Ferran García Sevilla, " de Joaquín Escuder apresenta este pintor (Espanha) que se interroga, na série Deuses, sobre o resgate da imagem, da pureza da sua representação, revisitando-se o signo e a sua pertinência mediadora original.

Rui Serra (Portugal) apresenta uma entrevista ao escultor Rui Chafes, no texto "Esferas Suspensas, entrevista a Rui Chafes," onde se compreende a dimensão espiritual consistente e articulada na contradição da materialidade expressiva das esculturas em ferro.

Este número 10 da revista Estúdio reúne com abrangência diversos meios expressivos, como a pintura, a escultura, a gravura, a joalharia, a performance, a música, o vídeo, entre outras. A sua geografia é expressiva: os autores trazem novidade, qualidade, novas perspetivas. Sobre o tema proposto, Deus, constata-se que a preocupação dominante nas perspetivas aqui reunidas, é precisamente a da mediação. Os artistas medeiam desde sempre, e assim se constata a sua naturalidade na relação com o sagrado, ou na acesa crítica do profano.

 

Referências

Eliade, Mircea (1992) Tratado de História das Religiões. Lisboa: Edições Asa. ISBN 9724111040        [ Links ]

Barthes, Roland (2012) Mitologias. Lisboa: Ed. 70. ISBN 9789724412924        [ Links ]

Barthes, Roland (1989) Elementos de semiologia. Lisboa: Ed. 70.         [ Links ]

Borges, Jorge Luís (2012) O livro de Areia. Lisboa: Quetzal. ISBN 9789725649930        [ Links ]

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: joao.queiroz@fba.ul.pt

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