SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5 número10Paisagem e espaço: elucubrações sobre o sagrado e o sublimeEl diálogo del artista contemporáneo y la iglesia católica índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Geometria, perspectiva linear e escala teológica, pintura e contemporaneidade. Que futuro?

Geometry, linear perspective and theological scale, painting and contemporaneity. What future?

 

António Oriol Trindade*

*Portugal, pintor e professor. Licenciatura em Pintura, Faculdade de Belas-Artes da universidade de Lisboa (FBAUL) Mestrado em Arte, Património e Restauro (variante de História da Arte), pela Faculdade de Letras da universidade de Lisboa (FLUL) Doutoramento Belas-Artes especialidade de Geometria Descritiva (FBAUL).

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes. Largo da Academia Nacional de Belas-Artes. 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente artigo refere o impacto da tradicional perspectiva linear geométrica, como um forte instrumento conceptual em determinados trilhos do mundo das artes visuais, estabelecendo conexões e pontes teóricas e práticas, entre a sua utilização como escala teológica, operativa durante os séculos XV, XVI, XVII e XV, com determinadas manifestações na arte contemporânea, numa escala mais profana, na modalidade de pintura de cavalete mas também numa escala mais monumental. Nos vários tempos históricos, que compreendem a contemporaneidade, verificamos, apesar das diferentes técnicas, a utilização de alguns princípios comuns, sobretudo nas pontes teóricas lançadas no século XV, com algumas propostas do século XX.

Palavras-chave: Geometria / Perspectiva / Anamorfose / Trompe l'oeil.

 

ABSTRACT

This article concerns the impact of the traditional geometric linear perspective, as a strong conceptual tool in certain tracks in the world of visual arts, establishing connections and theoretical and practical bridges, between its use as a theological operational scale during the XV, XVI, XVII and XV centuries, with certain manifestation ways in the contemporary art, in a more profane level, in the form of easel painting but also on a more monumental scale. In the various historical periods, comprising contemporaneity, we can verify, despite the different techniques, the use of some common principles, especially in theoretical bridges launched in the XV century, with some proposals of the twentieth century.

Keywords: Geometry / Perspective / Anamorphosis / Trompe l'oeil.

 

Introdução

A aplicação da perspectiva linear ainda se verifica em determinados caminhos trilhados na contemporaneidade, surgindo como um médium ou um veículo do conhecimento eficaz na concepção de determinadas mensagens significantes e produtoras de significados. O legado histórico, mostra que a perspectiva linear operando de forma conceptual na pintura, do Renascimento até aos dias de hoje, soluciona ainda hoje determinadas ideias artísticas, onde é verificável no estado actual da arte o aproveitamento dos respectivos conteúdos teóricos operativos desta ciência. Sobrevivendo em novas propostas estéticas, persiste a memória e a forte herança da costruzione legittima atribuída a Brunelleschi/ Alberti. Nesta herança cultural, estabelecem-se pontes entre a perspectiva linear enunciada numa escala teológica operativa anterior com alguns percursos da contemporaneidade, que compreendem, por exemplo, a temática da pintura metafísica e transcendental figurativa de Jorge Pinheiro, mas sobretudo a questão do trompe l'oeil e da anamorfose, dois ramos da perspectiva, como são os casos da obra do francês Georges Rousse e do suíço Felice Varini, onde em relação a este último faremos referência em particular.

 

1. Geometria, perspectiva linear e a pintura de cavalete

O caso de Jorge Pinheiro

A verificabilidade da perspectiva linear plana tradicional, antes também já servira de instrumento da propaganda da fé na própria pintura de cavalete, modelando e agrupando figuras e temas religiosos nas composições. No entanto, os ecos dessa escala perspéctica, anteriormente teológica, detectam-se ainda hoje curiosamente na pintura de cavalete. São exemplos paradigmáticos alguns desenhos e pinturas de Jorge Pinheiro (Pinharanda, 1996: 113-153). Este autor, num determinado período recorre a uma matriz neoclássica, apoiando-se numa forte estruturação composicional do espaço da representação, reforçada pela força e robustez das linhas geométricas, operando com a geometria plana, com a geometria descritiva e com o método da perspectiva linear. Estas pinturas de forte carga mística e transcendental trazem a memória da pintura religiosa de séculos anteriores, sobretudo do Renascimento, do Barroco, do Classicismo e do Neoclassicismo. Tal é o caso da composição "Porquê", de 1991, onde o autor solidifica e equilibra a composição através da geometria implícita do rectângulo de suporte, considerando as medianas, as diagonais e o triângulo equilátero como elementos de coesão geométrica que condicionam e seguram a robustez das figuras representadas (Figura 1 e Figura 2). Por outro lado, a perspectiva linear modela na perfeição as formas geométricas do pavimento onde se situa o volume arquitectónico onde assentam as duas figuras, cujo ponto de fuga principal coincide com o centro do rectângulo. A geometria e particularmente a perspectiva geométrica sustentam assim fortemente a obra figurativa – e também a abstracta – metafísica e citacionista de Jorge Pinheiro, de uma carga simbólica e semântica que envolve uma escala transcendental evidente e de grande impacto visual.

 

 

 

 

 

2. Geometria, perspectiva linear, escala teológica e contemporaneidade

Noutros caminhos, na abordagem da perspectiva, quer na geométrica, quer na orgânica, mediante os seus ingredientes geométrico8s e gráficos, como as linhas, a cor, a textura e a sobreposição, já referidos por Manuel Couceiro (Couceiro, 2003: 22), a perspectiva pode e tem uma função importantíssima, pois para além de intervir isoladamente na pintura de cavalete, ela torna-se um poderoso instrumento de concepção e de ligação de áreas artísticas aparentemente separadas. Neste sentido, assistimos a uma ponte, na questão da grande escala monumental, entre o legado histórico da perspectiva linear teológica, que estruturava esses grandes tectos e abóbadas dos espaços tridentinos, com a geometria e a perspectiva que também intervêm na contemporaneidade em espaços e ambientes diversos de grande monumentalidade, aplicando quer no interior, quer no exterior, o mesmo conceito de anamorfose.

No Renascimento, mas sobretudo no período Barroco depois da Contra-Reforma, com as representações ilusórias em tectos e abóbadas, a perspectiva adquiriu uma escala teológica surpreendente. Foi o tempo das grandes representações em tectos e abóbadas das grandes igrejas, a que Portugal não é excepção. A ciência geométrica da perspectiva linear difunde-se agora numa escala verdadeiramente teológica, sobretudo no século XV, que é alargada em inúmeros tratados de pintura e arquitectura, curiosamente quase todos eles realizados e compilados por monges, a maior parte deles jesuítas. Mas esta perspectiva e geometria difundida nos tratados e colocada na prática por artistas que muitos deles conheciam, servia agora de instrumento de propaganda da fé cristã e dos valores tridentinos. O ponto de fuga único ou principal, anteriormente visível nas pinturas de cavalete, da renascença italiana e transalpina, serve ou coincide agora com o ponto de fuga da eternidade. Era e foi essa a aspiração e o objectivo do pintor e tratadista jesuíta Andrea Pozzo, que na sua obra Perspectiva Pictorum (Pozzo,1693) e nas suas realizações artísticas, como é o caso paradigmático da pintura ilusionista da abóbada da igreja de Santo Inácio em Roma, nos lega uma obra de forte impacto visual, seduzindo ou tentando seduzir novos fiéis ao convite da fé católica com o auxílio da ciência da perspectiva (Figura 3 e Figura 4). A convergência das linhas compositivas da perspectiva linear simbolizava o caminho eterno e materializava-se no ponto de fuga único pozziano que simbolizava esse encontro com a figura eterna de Deus. A ciência geométrica servia assim a propaganda dos ideais da fé e da igreja. A escala perspéctica tradicional encontra a escala teológica.

 

 

 

 

 

3. A perspectiva linear na pintura integrada e algumas questões técnicas

No campo da representação e de criação de novos trompe l'oeils e anamorfoses geométricas, os modernos projectores de luz também são de uma grande utilidade para a criação dos efeitos destas imagens, pois substituem alguns métodos antigos como é o caso, entre outros, das antigas lanternas mágicas, para além de permitirem economizar tempo relativamente aos cálculos geométricos dos desenhos preparatórios e com a vantagem de a luz que erradia da fonte do projector não ser tremula. Esses projectores funcionam como cones ou pirâmides visuais automáticos, que, uma vez accionados com uma imagem-referente que se pretende projectar, mediante a acção da respectiva fonte luminosa, permitem projectar com grandes distâncias de projecção, imagens em qualquer tipo de superfícies. Deste modo, com a utilização destes instrumentos, as imagens ou referentes são projectados frontalmente ou obliquamente em superfícies planas, curvas, tridimensionais, mistas, ou compostas, obtendo as anamorfoses. Para efeitos de restituição da imagem, o lugar da fonte de luz do projector que cria a imagem ilusória projectada deverá situar-se no lugar do ponto sublime, ou ponto de vista ideal, a que os operadores plásticos do Barroco designaram de "olho príncipe". Com este mesmo princípio, poderemos de forma simples também criar anamorfoses nas variadíssimas superfícies possíveis. Tal é o caso dos artistas George Rousse e Felice Varini. Assim, as quadrículas de linhas ortogonais utilizadas pelos antigos, a utilização de fios de prumo e a respectiva transformação em linhas e grelhas trapezoidais e curvilíneas (Danti, 1583: 89; Pozzo, 1693.a: 214-215; Bibiena,1732: 58), como as que certamente foram utilizadas por vários autores (Figura 5 e Figura 6) e certamente por Andrea Pozzo, por exemplo, na criação das anamorfoses planas realizadas cerca de 1680 e que hoje verificamos nas superfícies das paredes do corredor da Casa Professa de Gezù (Figura 7 e Figura 8) (Luca, 2000: 51-58; Fazolo, 2004: 149-154; Migliari, 2000: 71-81), podem agora ser readaptadas, na criação de novos projectos. Substituindo esses antigos métodos pelos modernos projectores de luz de grande alcance, onde o lugar do posicionamento da fonte de luz corresponderá sempre ao lugar do ponto de observação correcto, tal como Pozzo pensava, estamos em condições de criar anamorfoses de uma grande escala para espaços públicos de grandes áreas e dimensões. Basta, para tal, projectar o referente, que uma vez introduzido no projector, permite que a respectiva imagem de dimensões reduzidas se projecte agora em qualquer tipo de superfície, plana, curva, poliédrica ou mista, numa escala de grandes dimensões, dependendo também da abertura ou da amplitude do cone de luz-sombra que irradia do projector. A intersecção das rectas luminosas que transportam a imagem do referente do slide com as superfícies que se encontram no seu caminho determinam a perspectiva linear procurada. Para registar o desenho final nas superfícies, basta riscar, com um meio gráfico qualquer, as linhas das formas projectadas nas superfícies pelo projector de luz.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

4. Perspectiva linear, monumentalidade e contemporaneidade

Na contemporaneidade, as obras de escala monumental de Georges Rousse, mas sobretudo de Felice Varini, são paradigmáticas na continuação da aplicação da perspectiva linear, mais especificamente de dois ramos daquela ciência, ou seja, nas variantes das anamorfoses e dos trompe l'oeils. Varini cria anamorfoses e trompe l'oeils geométricos numa escala monumental e com os princípios já atrás referidos, ilustrados nas obras e na tratadística antiga, embora agora com outros recursos mais actuais. Segundo Roberta Mazolla (Varini, 2007; Mazolla, s.d.), Varini valoriza a construção das anamorfoses de forma semelhante aos antigos mas utilizando novas tecnologias, valorizando de igual modo o ponto de vista, a respectiva colocação deste último e o enquadramento da peça que o autor pretende projectar, onde o artista aborda, na complexidade da sua obra, as relações entre a realidade estética, influenciado pela arte minimalista, e a realidade geométrica, perceptiva. Como refere a autora:

Varini utilise l'image lumineuse d'un dessin projetée dans l'espace, calquée "de manière picturale", comme une copie, l'impression d'une diapositive, entraînant le renversement de la projection illusoire et attribuant à l'espace le rôle d'écran, de lieu d'une visibilité (Varini, 2007; Mazolla, s.d.).

A obra de Varini, entre muitas outras, constitui um caminho possível da aplicabilidade da ciência da perspectiva linear, neste caso, na criação de modernas anamorfoses em espaços públicos e arquitectónicos pré-existentes, sendo ao mesmo tempo bem representativa da herança cultural, da respectiva evolução e, mais especificamente, da apropriação, da importância e da aplicação da ciência geométrica no estado actual da arte (Figura 9 e Figura 10).

 

 

 

 

 

Conclusões

No cenário actual, concluímos que a perspectiva passou de um anterior instrumento técnico e simbólico, oscilando entre uma escala teológica e profana, a um poderoso instrumento técnico e estético, adquirindo na contemporaneidade, tal como no Barroco tridentino, embora com outros objectivos, uma escala pública e lúdica ainda mais monumental, igualmente com resultados surpreendentes. Tal é o caso da obra do artista Felice Varini, que embora servindo-se de novas tecnologias, não deixa, no entanto, de reciclar e de reaplicar os mesmos princípios básicos divulgados por, entre outros autores, Egnatio Danti, Andrea Pozzo e Ferdinando Galli Bibiena nos seus tratados e obras seiscentistas e oitocentistas, valorizando e recorrendo ainda ao conceito de "olho-príncipe". Noutros caminhos da contemporaneidade, Jorge Pinheiro recorre ao simbolismo da perspectiva, mas numa escala de menor monumentalidade, onde a ciência da geometria e da perspectiva linear constituem igualmente fortes instrumentos conceptuais estruturantes que enunciam uma transcendentalidade e um misticismo que são latentes no seu trabalho correspondente à última fase figurativa.

 

Referências

Couceiro, Manuel (2003), "Perspectiva Topológica – O Conceito", in Boletim da Aproged, Nº21, Porto: 21-32.         [ Links ]

Couceiro, Manuel (1992), Perspectiva e Arquitectura. Uma Expressão de Inteligência no Trabalho de Concepção, Dissertação de Doutoramento, Lisboa, Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa.         [ Links ]

Danti, Egnatio (1583), Les Deux Règles de la Perspective Pratique de Vignole 1583, com tradução e edição crítica de Pascal Dubourg GLATIGNY, inclui a edição facsimilada romana de 1583, Paris, CNRS Editions, 2003. ISBN 2-271-06105-9.         [ Links ]

Fasolo, Marco (2004), "La Galleria di Sant'Ignazio alla Casa Professa del Gesù. Problema Teorico circa la Prospettiva della parede di Fondo", in L'Architettura dell'Inganno. Quadraturismo e Grande Decorazione nella Pittura di età Barocca", catálogo relativo às actas do Congresso Internacional de Estudos, realizado em Rimini, Palazzina Roma, Parque Federico Fellini, Novembro de 2002, a cura di Fauzia FARNETI, Deanna LENZI, Firenze, Alinea Editrice: 149-154. ISBN 88-8125-695-9.         [ Links ]

Felice Varini (2007), Felice Varini. Disponível: http://www.varini.org        [ Links ]

Galli Bibiena, Ferdinando,(1732), Direzioni della Prospettiva Teorica. Corrispondente a quelle dell' Architettura. Istruzione A' Giovanni Studenti di Pittura e Architettura, 2 Vols., Bologna, Lelio dalla Volpe.         [ Links ]

Georges Rosse (1981-2008), Georges Rosse. disponível : http://www.georgesrousse.com        [ Links ]

Luca, Maurizio de (2000), "Tecniche di trasposizione del disegno nei dipinti murali", in La Costruzione dell'Architettura Illusoria., a cura di Riccardo Migliari, Contributi di Mario Docci, Riccardo Migliori, Maurizio De Luca, Paolo Violini, Marco Fasolo, Andrea Casale, Laura De Carlo, Laura A. Carlevaris, Daniele Di Marzio, Graziano Mario Valenti e Alida Mazzoni. Roma, Gangemi Editore, Vol.II: 51-58. ISBN 88-7448-987-0.         [ Links ]

Mazzola, Roberta (s.d.), "Castelgrande", in http://www.varini.org/04tex/texa10.html         [ Links ]

Migliari, Riccardo (2000), "Geometria e mistero nelle prospettive di fratel Pozzo alla casa professa del Gesù", in La Costruzione dell'Architettura Illusoria, a cura di Riccardo Migliari, Contributi di Mario Docci, Riccardo Migliori, Maurizio De Luca, Paolo Violini, Marco Fasolo, Andrea Casale, Laura De Carlo, Laura A. Carlevaris, Daniele Di Marzio, Graziano Mario Valenti e Alida Mazzoni. Roma, Gangemi Editore, Vol.II: 71-81. ISBN 88-7448-987-0.         [ Links ]

Pinharanda, João Lima (1996), Jorge Pinheiro. Lisboa, Asa. ISBN – 972-41-2814-8.         [ Links ]

Pozzo, Andrea (1693.a), Perspective in Architecture and Painting. reed. facsimilida do 1ºVolume da edição latina e inglesa de 1707, do tratado Perspectiva Pictorum et Architectorum, Roma, London/ New York, Dover, 1989. ISBN 0-486-25855-6.         [ Links ]

Pozzo, Andrea (1693.b), Prospettiva de' Pittori e Architetti, 2 Vols., Roma, Stamperia di G.G.Komarek.         [ Links ]

 

Artigo submetido a 8 de agosto e aprovado a 23 de setembro de 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: orioltrindade@fba.ul.pt

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons