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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Como um grão de areia. Sobre uma obra de Regina de Paula

As a grain of sand. About one work by Regina de Paula

 

Zalinda Cartaxo*

*Brasil, artista visual. Graduação em Artes Plásticas, Pontifícia universidade Católica do Rio de Janeiro (PuC-RJ). Mestrado em História e Crítica de Arte, universidade Federal do Rio de Janeiro (uFRJ). Doutorado em Artes, universidade de São Paulo (uSP) e Doutorado em Artes Visuais, uFRJ. Professora Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. Av. Pasteur, 436 (fundos) – Urca – Cep 22290-240 Rio de Janeiro, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Tomar-se-á como aporte para reflexão sobre Deus, história e origem, a obra fotográfica Como um grão de areia, de 2014, da artista visual Regina de Paula. As nove imagens alternadas pela presença/ausência de uma Bíblia sob uma superfície de areia oferecem leitura que tangencia, por exemplo, as questões da afinidade eletiva de que nos fala Walter Benjamin, quando localiza a História como configuração, em que os tempos se sobrepõem em infinitos 'agoras'. A história anti-historicista referida pelo autor, a partir da enunciação da categoria de origem, vemos aqui formalizada numa estética do devir.

Palavras-chave: Artes visuais / fotografia / origem.

 

ABSTRACT

The photographic work "As a grain of sand" by Regina de Paula operates as a starting point for a reflection on God, History and origin. The presence/absence of a Bible alternated nine times on a surface of sand can be read. for example, as the issues of elective affinity that Walter Benjamin uses to define History as an overlapping of time in a succession of "nows". This anti-historicist History referred by the author via enunciation of the category is origin is formalized, in de Paula's work as a devir aesthetics.

Keywords: Visual Art / photography / origin.

 

Segundo Walter Benjamin (1987: 239),"quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava."Ao fazê-lo, "não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois 'fatos' nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação" (Benjamin, 1987: 239). A latente vontade de discernir entre o objeto do saber e o objeto da verdade, a partir de uma estética em devir, tomaremos aqui, como exemplo, na obra Como um grão de areia, de 2014, da artista visual Regina de Paula. Trata-se de uma fotografia com nove imagens alternadas pela presença/ausência de uma bíblia sobre uma superfície de areia. O objeto-bíblia possui um corte central quadrangular que, na seqüência fotográfica, ora está preenchido pela areia, ora revela-se pela sua ausência. O objeto-bíblia utilizado pela artista é parte da sua performance Sobre a areia, de 2014, quando é banhada nas águas do mar.

Mais do que associar o objeto cristão, nascido da crença em Deus, ao ato do batismo, esta obra reflete sobre uma temporalidade que transcende qualquer religiosidade. A bíblia, aqui, alinha-se ao conceito de mitologia, uma espécie de história das verdades humanas que repete a dinâmica mística e, principalmente, cultural, de tantas outras religiões e fatos, de qualquer tempo, lugar ou Deus. O objeto-livro eleito, a bíblia, constitui-se, aqui, como afirmativa do humano e de sua história. A sua eleição indica vontade de revelação da sua verdade imanente, a vontade de restauração, em todas as suas instâncias, do seu conteúdo temporal.

O objeto-bíblia da fotografia Como um grão de areia (Figura 1; Figura 2), é potencialmente temporal: guarda, em si, além do próprio tempo da história, o tempo recente da intervenção performática da artista. Tal compêndio, após sua imersão no mar, tornou-se, quase, massa disforme incapaz de representar com exatidão a história. Contêm vários 'agoras'. Com a subtração de parte da bíblia, visível pelo cubo vazio, e, quando lançada ao mar, ora retendo água, ora areia, cria uma espécie de anamnesia material, em que uma nova forma surge conciliando temporalidades e lugares diversos. Para Georges Didi-Huberman (2009: 57), ao referir-se à escultura, "a forma que se erige do material será concebida como o resultado de uma escavação [...] e este, por sua vez, será concebido como uma dialética do substrato, do vazio e da carne que cava...". De acordo com o autor (Didi-Huberman, 2009: 58), fazer uma escavação "é fazer a anamnesia do material que foi submerso pela mão: o que a mão extrai do material não é outra coisa que uma forma presente onde se aglutinam, se inscrevem, todos os tempos do lugar concreto, de onde extrai seu 'estado nascente'". Ainda para o autor (Didi-Huberman, 2009: 59), o escultor se apodera de todos os sentidos do tempo: "escavar não é somente cavar a terra para tirar dela coisas mortas há muito tempo. É também preparar, na terra aberta [...], um passo para formas que tenham em si mesmas a memória do seu devir, do seu nascimento ou crescimento futuros." Huberman (2009: 61) finaliza afirmando que a arqueologia do material não é concebida, senão, pelo confronto com uma arqueologia do sujeito, indagando: "consistiria, então, a arte do escultor em cavar galerias, em escavar na memória da sua própria carne e de seu próprio pensamento?" Cumpre-se a sentença de Benjamin (1987: 239), "quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava."

 

 

 

 

O 'estado nascente' referido por Didi-Huberman podemos comparar ao conceito de 'origem' tratado por Walter Benjamin. Para o autor, existe um desacordo entre o objeto do saber e o objeto da verdade. Através da origem é possível a reflexão sobre a totalidade e, dessa forma, representação da verdade dos objetos. De acordo com Jeanne Marie Gagnebin (1989: 285), existem três aspectos que definem o conceito de origem em Benjamin: como oposição ao conceito de gênese; como restauração inacabada e aberta; e, ligada ao conceito de destruição. No primeiro, localizamos a ruptura com o tempo linear, cronológico, favorecendo o diálogo das estruturas do presente com o passado; no segundo, a remissão ao passado, pela intermediação da lembrança, produz efeito de reprodução, isto é, a consciência da perda; no terceiro caso, a recuperação da origem ocorre pela dispersão e reunião, pela destruição e construção.

As imagens contidas na obra Como um grão de areia apresentam um objeto simbólico, a bíblia, que, de algum modo, crê revelar a origem do homem e do mundo. Contudo, sua mera presença não é suficiente para ativar aquilo que potencialmente lhe é imanente. Foi necessário confrontá-la com os resíduos do real (o mar e a areia) que fazem parte, inclusive, do seu discurso simbólico. O próprio título da obra foi retirado de um trecho da bíblia.

A origem, enquanto fenômeno, não é encontrada em sua totalidade. Ela revela-se pela sua incompletude, visto que é inevitável o seu confronto com a pré e a pós-história. Coisa e verdade tornam-se indissociáveis indicando a necessidade de comprovação dos fatos para constituir-se como origem e desenhar a história. Segundo Benjamin (1984: 45), "cabe ao investigador examinar a estrutura, que no final da análise desemboca na origem, revelando o solo que nasceu a idéia." Para o autor (Benjamin, 1984: 45), "a investigação filosófica consiste pois em representar a idéia (atualizá-la) através da descrição dos fenômenos, graças a uma análise estrutural, que uma vez concluída revela a origem. "Podemos localizar na reflexão estética de Regina de Paula uma prática formalizada e metafórica da busca da origem. A incisão promovida pela artista no interior do objeto-bíblia através do exercício da escavação, página após página, repetidamente, reflete a fala anterior de Benjamin: "'fatos' nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação". Aparentemente a escavação do objeto-bíblia chegou a um vazio, um oco quadrangular no interior do compêndio.

Segundo Victor Burgin, antes da perspectiva de ponto de fuga surgir no Renascimento não existia a 'ausência', em que o "horror vacui" era manifesto na filosofia aristotélica, nas cosmologias clássicas, onde o espaço era plenitude e na Idade Média, em que Deus manifestava-se como totalidade. Com o surgimento da perspectiva no quattrocento o sujeito depara-se, pela primeira vez, com a ausência no campo de visão. O vazio transforma-se em objeto de abjeção (grau zero da espacialização). [...] Para o autor, o conceito de abjeto poderia corresponder à separação entre 'sujeito' e 'objeto', contudo está na história do primeiro sendo anterior a esta dicotomia. Tem início com a expulsão do sujeito pela sua mãe pré-édipica, em que o corpo procriador da mulher biológica é o primeiro objeto de abjeção. O "corpo da mulher recorda aos homens a sua própria mortalidade" (Burgin, 2004, p. 91). Para Lacan, a esfera das cosmologias clássicas representa o espaço físico onde o sujeito, repetidamente, renasce e o vazio central nela contida, o lugar do objeto perdido, assim como, da morte do sujeito (Cartaxo, 2012: 87).

O vazio presente no interior do objeto-bíblia podemos comparar àquele próprio da disciplina arquitetura. O prefixo 'ar' de arquitetura que tem sua raiz no grego 'arché' também está presente na palavra 'arro' (ocos), daí o significado do termo arquitetura: construção de ocos. Por sua vez, a palavra Arca (que significa grande caixa) é proveniente do latim 'arcère' (cortar, delimitar) colaborando na compreensão que temos do espaço arquitetônico como aquele que define os espaços interno (finito) e externo (ilimitado). Tal conflito pensado a partir do objeto-bíblia remete à categoria estética do sublime, quando a finitude da matéria é vencida pela infinitude da Alma como nos indica o compêndio. A arquitetura Ocidental tem seu começo alinhado ao surgimento da prática projetual, através, especialmente, da descoberta da perspectiva de ponto de fuga, cuja base principal está na afirmação do sujeito. No âmbito da cidade, a perspectiva revelou a consciência do ser-no-mundo do homem, à medida que a caixa arquitetônica convergia para a linha do horizonte, o lugar simbólico da nossa existência. A experiência do sujeito no espaço perspéctico, ou, de outro modo, no interior da caixa-cubo arquitetônica, foi pensada nas suas infinitas possibilidades por Alberti que a concluiu numa síntese de sete itinerários: os movimentos para cima ou para baixo, para a esquerda ou para a direita, avançando ou retrocedendo e, finalmente, girando. De modo análogo, as axialidades do corpo humano definem uma orientação septenária no espaço tridimensional: o corpo em pé refere-se ao eixo vertical da gravidade; o rosto representa a frontalidade, que, com sua bilateralidade simétrica define a direita e a esquerda e seus respectivos hemisférios; a posteridade como região topológica do atrás; e, por último, o 'espaço interior' do homem, em que pela rotação e circularidade de seus membros determina a esfera da ação. Tal concepção espacial orientada para o homem reflete o espírito humanista-renascentista na valorização da consciência e da individualidade do mesmo. Conciliar o vazio quadrangular, quase 'malevitchiano', ao universo bíblico de uma história supostamente reveladora da nossa origem significa afirmar uma temporalidade ambígua fundada numa estrutura em devir. Segundo Fernando Pessoa (1994: 211),

... as coisas são como que cúbicas; a nossa sensação delas plano-quadrada. Cada sensação pode dizer-se cúbica porque envolve um triplo: a coisa-em-si (seja ela o que for), a nossa percepção individual, e nossa percepção extra-individual, [...] metafisicamente falando, este último gênero de percepção é o comum a tudo o que existe, a quanto é universo de quanto é universo.

O espaço cúbico no interior do objeto-bíblia, regular, ortogonal e geométrico contradiz a 'situação' em que o compêndio é apresentado: espécie de massa disforme, recorrente da sua imersão no mar, ora envolto e preenchido por areia, ora ausente (fisicamente) / presente (imanência). A imersão do objeto-bíblia na areia, assim como a inserção da areia 'dentro' dele, rompe com os limites entre obra e espaço, entre coisa e lugar. O informe (formless) teorizado pelos críticos Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois a partir da formulação de Bataille, de 1929, buscou superar a dicotomia forma/conteúdo. Dos quatro conceitos que tratam do informe (formless), apresentados pelos autores – a horizontalidade, a pulsação, o baixo materialismo e a entropia –, o que melhor representa o estado das coisas, é o último. A entropia rompe com o purismo modernista que exigia limites específicos para a obra de arte. A partir da lógica de Bataille, da experiência como excesso fundada numa estrutura de deslimites, os autores refletem sobre as novas práticas contemporâneas. A dissolução do objeto-bíblia no seu entorno-areia, e vice-versa, a ruptura dos limites, aqui, históricos, geográficos, ideológicos, estéticos etc., repercutem as dinâmicas temporais que, por sua vez, retomam o conceito de origem. Obra cumulativa de tempos e espacialidades, Como um grão de areia, constitui-se como objeto de potência. Como nas palavras de Benjamin (1985: 229-30), "a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de 'agoras'."

 

Referências

Benjamin, Walter (1984) Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Benjamin, Walter (1987) Rua de mão única. Rio de Janeiro: Brasiliense.         [ Links ]

Benjamin, Walter (1985) "Sobre o Conceito de História." In: Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Cartaxo, Zalinda (2012) Pintura e Realidade. Realismo arquitetônico na pintura contemporânea. Adriana Varejão e José Lourenço. Rio e Janeiro: Apicuri.

Gagnebin, J. M. (1989) "Notas sobre as noções de origem e original em Walter Benjamin." 34 Letras, n. 5/6, set.         [ Links ]

Pessoa, Fernando (1994) O Cubo das Sensações: textos filosóficos. Lisboa: Edição Ática, vol. 2,         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 4 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: z.cartaxo@uol.com.br

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