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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.17 Lisboa mar. 2017

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Híbridos na construção do imaginário de Micaela Trocello: narrativa, performance, fotografia e gravura

Hybrids in the construction of the imaginary of Micaela Trocello: narrative, performance, photography and engraving

 

Helena Araújo Rodrigues Kanaan*

*Brasil, artista visual. Bacharel Gravura, Centro de Artes Universidade Federal de Pelotas / BR (CA/ UFPEL).Mestre, Programa de Pós Graduação Artes Visuais (PPGAV), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, (UFRGS). Doutora PPGAV / UFRGS.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais. R. Sr. dos Passos, 248 – Centro, Porto Alegre – RS, 90020-180, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Na continuidade da narrativa que lê e escuta contar, a artista performa mesclando a própria corporeidade, para, logo após, fixá-la no exercício da pausa foto/gráfica. Estimulada por prolongamentos temporais da imagem no uso da fotografia e modos matriciais de gravar e imprimir, a obra de Micaela Trocello propõe uma compreensão do feminino na história e na atualidade. Imagens capturadas, transferências e proliferações. O corpo, as marcas, a insurgência.

Palavras-chave: Narrativa / Gravura / Fotografia / Performance.

 

ABSTRACT:

In the continuity of the narrative that reads and listens to tell, the artist performs merging the own corporeity, soon after, to fix it in the exercise of the photo / graphic pause. Stimulated by temporal extensions of the image in the use of photography and matrix modes of recording and printing, Micaela Trocello's work proposes an understanding of the feminine in history and in the present day. Captured images, transfers and proliferations. The body, the marks, the insurgency.

Keywords: Narrative / Engraving / Photography / Performance.

 

Introdução

A obra da cordobesa Micaela Trocello, artista visual com interesse em um trabalho de persistências e incompletudes, pesquisadora, docente na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina, aborda investigações sócio-históricas, referidas a problemáticas de gênero feminino em distintos contextos culturais. Para este artigo, propõe-se comentar a série na qual autoperforma personagens mulheres, para logo retratar-se e prolongar tal imagética em diferentes linguagens, mesclando elementos gráficos que demonstram o luto e a alegria, numa hesitação entre ficção e verdades. Intenciona-se neste recorte, o exercício de expansão de modos e de iconografias, com olhar dirigido à gráfica atual, atentando às técnicas e modos dos setores implicados.

 

1. Imagem matricial e campos relacionais

A constituição da série em questão, com modos de memorizar e imprimir a imagem, instiga para atualizar o tradicional, reconfigurando condições da semelhança. Mesmo que ainda comprometida com regras, a disposição contemporânea do experimentalismo agrega-se à prática da Arte impressa e aponta inúmeras possibilidades de transmissibilidade da imagem. Cada exemplar é único, Micaela tem várias pequenas matrizes as quais vão propondo o movimento de repetição com variação, conformando sempre outra, numa imagem de si mesma, reconduzindo à problemática da gravura e da mulher na sociedade.

Capto nesta série de Micaela um lugar de trânsito, um limiar, evidenciando a Arte Impressa como ponto de convergência, o qual incorpora 'imagens narradas' numa hibridação prática que absorve e dilui as fronteiras dos diferentes campos de produção imagética, como na escolha do título (Figura 1), que é uma frase de Macacha (1964), um verso de Julio Luzatto (1915-2000), poeta argentino. Nos procedimentos utilizados pela artista, os gestos manuais que podem estar associados ao feminino, provocam e processam à memoria dos antepassados. Busca em suas raízes, em sua terra, a força para expressividades que grava no negativo de sais de prata, na placa de offset litográfico, no cianotipo, e nas matrizes experimentais como modos de perpetuar e propagar conceitos (Figura 2). Hibridizações, imagem matricial e campo relacional interpessoal reforçam o diálogo compositivo do imaginário, expandindo conceitos relativos à impressão, imagem processual, imagens do duplo, da presença ausente, do vestígio. A imagem se refaz, com características de um documental, outorga dinamismo e plasticidade ao histórico da condição feminina, revelando identidades multiculturais.

 

 

 

 

 

2. Gestos narrados

Micaela auto performa uma narrativa, às vezes um depoimento cotidiano de mulheres no seu dia a dia. Histórias que envolvem situações de risco, de paixão extrema, perdas, buscas, esperas, desaparecimentos. Na sequencia, após estabelecer o sujeito, a artista auto fotografa-se trabalhando com o modo analógico, vivenciando as temporalidades que cada imagem exige. Procede com modos de transferência relativos à gravura, partindo sempre de uma imagem matricial, uma imagem origem que se rematerializa no seu próprio duplo, sugerindo condições de revelar um evento que se faz entre o conhecido e o desconhecido. Fotografia analógica e modos da Arte Impressa, fotogravura, como instante e como possibilidade de manipulação e intervenção plástica nos negativos/matrizes.

Ao produzir a partir da literatura uma performance narrativa, Micaela depara-se com uma série de escolhas de imagens que falam de outras imagens, enfatizando o hibridismo estético, contando uma história já contada. A narratividade fica evidenciada como significativo elemento constituinte da hibridização no processo de concepção da arte pós-moderna. "Um modo de criar decorrente da arte pós-moderna, advindo de um mundo tecnológico, ambíguo e fragmentado, que tem por propriedade espelhar uma realidade multifacetada." (Simão, 2008:10) Na construção de imagens e imaginários híbridos, Micaela transforma pela ação, reproduzindo o ato narrado em categorias conceituais que reconfiguram seu mundo. Empresta seu corpo, sua vida, nesse ato em que um corpo experimenta seu limite dentro de um ritual da negação e da separação. Faz ir além, pelas fotografias que são "um instrumento de projeção e um elemento de teatro elaborado pela família para convencer-se de que é una e indivisível" (Krauss, 2010: 221). Deter ou parar o tempo, suspender o momento, diminuir ou metamorfosear a perda.

 

Enterada de la muerte de su esposo, Carmencita se cortó el cabello, y se encerró en su habitación donde el 3 de abril de 1822, murió de amor, dejando huérfanos a sus pequeños Martín y Luis... (Slodky, 2010)

 

3. Atualizações de um tempo

Na imagem acima (Figura 3, Figura 4, Figura 5), vê-se a reverencia a uma figura feminina do 1800, em poses que demonstram seu poder de invocação a partir do apreendido pela literatura, sequenciadas pelo desbordamento das linguagens contemporâneas. Impressionada com a narrativa de vida e morte de Carmencita, a artista compõem o projeto Amores Guerreros, que germina na memória de seu povo, ressaltando duas mulheres salteñas que viveram a Revolução pela Independência: Carmen Puch de Güemes (1797-1822) y "Macacha" Güemes de Tejada (1787-1866) – uma como esposa e mãe, outra como irmã e colaboradora na luta contra o exército do Gen. Martín de Güemes. Mulheres ativas e envolvidas na vida política,

 

 

 

 

 

 

 

...presentes tanto en los momentos cotidianos como trascendentes, en el marco de una vida en común convulsionada y compleja. De este modo, pretendo reivindicar y poner en valor a la figura femenina del 1800, focalizando en el contexto específico de lo que hoy es el Noroeste Argentino. Años fundacionales de la historia argentina, peligrosos y crueles tanto para los que combatían en el campo de batalla como para las que esperaban atravesadas por el acecho de la muerte y la ineludible responsabilidad de criar y preservar a los hijos, el hogar y las pocas o muchas pertenencias que la guerra permitiera. Las imágenes son evocaciones de momentos en los cuales Carmencita y Macacha fueron protagonistas. Encarnadas ahora en los cuerpos de otras mujeres, estos retratos se enlazan con fragmentos de escenarios naturales reales. Paisajes salteños registrados personalmente, junto a un mínimo material bibliográfico dedicado a ellas, más el abordaje al repertorio tradicional musical y poético de la región, me permitieron construir tanto las imágenes corpóreas de ambas como sus circunstancias y vivencias. (Micaela Trocello, 2013)

 

Essa historia se articula a partir de um trabalho de recuperação que persiste na imagem recriada como um sintoma, mais próximo à memória que à imagen mesma. "O teste corporal – repetido, coreografado, cronofotografado – das mesmas fórmulas antigas demonstra que seu poder de solicitação dinâmica e estilística, seu poder Nachleben não perdeu nada de sua vivacidade (...)" (Didi-Huberman, 2001:154). Conceito de Nachleben, central no pensamento warburguiano, um recurso à recorrência de imagens e a seu resgate pela imitação dos gestos narrados, reconectando formas e articulações críticas, de uma memória coletiva.

A fotografia é a morte em palavras de Roland Barthes (1984), mas a imagem gravada, elaborada a partir de códigos artesanais, conserva em si a captura de um tempo numa impressão processual realizada com modos experimentais. O inacessível ressuscita no vestígio do espectro, o que leva Barthes a admitir uma confusão entre verdade e realidade. De tal modo surge o mistério e a ausência – indício tanto de vida quanto de morte – daquilo que nunca poderá ser alcançado de um passado não experimentado. De acordo com Pierre Soulages, toda foto é "...o aprendizado da separação dos sujeitos e dos corpos...", (Soulages, 2010:220). O primeiro atributo mais imponente da fotografia é subseqüente à perda: o irreversível da fotografia, pois ela "nunca os dá [o objeto, o sujeito, o ato, o passado, o instante] novamente: ao contrário, ela é a prova de sua perda e de seu mistério; no máximo, ela os metamorfoseia" (Soulages, 2010:14). Dando conta de um posicionamento crítico, Micaela aponta dimensões históricas e culturais na construção de um corpóreo, recuperando a imagem de mulheres ativas, mesclando religiosidade e causa libertaria. Inserimos ainda, problematizando a construção da imagem que a artista concebe, o pensamento que diz respeito a uma 'sobrevivência' da imagem, cruzando histórias e imagens que tem uma "vida para além da morte". (Didi-Huberman, 2002:67-91).

Ao longo do trabalho processual de Micaela, analisa-se como uma mesma imagem ao ser problematizada por diferentes modos matriciais e acolhida por diferentes suportes, adquire variações de sentido, de forma, de ritmo, em combinações e recombinações por justaposição, subtração, acúmulos e outros modos intrínsecos ao imaginário e à arte impressa, sob o efeitos de experiências novas, induzindo verdades.

 

Esto le permitió también explorar nuevas formas de desarrollar su obra que se caracteriza por una fuerte presencia de lo femenino, comprendido desde la culturapopular, desde diferentes comunidades y abordado desde figuras históricas de la Argentina. Las texturas cargadas, el barroco latinoamericano y las narrativas imbricadas, que se enredan, son elementos constantes en la obra de Trocello. (Candiani, 2016)

 

Pela repetição, reivindica. Argumenta com uma imagem origem, a variação, numa nova configuração que fala de ideias sócio-politicas ainda presas a uma rede social. Cria estampas com matrizes estendidas que rechaçam a cópia renovando identidades.

 

Conclusão

Numa produção de sentido nesta série e em outras que a partir desta se desdobram, ao contrário de outros artistas que procuram o desaparecimento do índice, Micaela reforça-o, mostrando a história que se repete no corpo da mulher que ainda procura modos de transmitir seus segredos.

Nesse ato de captura e variação pela fotoperformance autodirigida e pela fotogravura, que repete em módulos elementos da narrativa, se dá, sobretudo, a mobilização da vida, o desafio ao constante movimento dos corpos. Produz imagem a partir de um mundo, configura personagens, transforma pela ação reatualizando problemáticas humanas. Um retorno ao encontro, para transformar, adequar, questionar. Micaela percorre suportes artísticos como espaços abertos a possibilidades expressivas em diferentes perspectivas, transferindo um discurso narrativo a novas conexões com elementos diversos da complexidade contemporânea. A equação construtiva não aciona um modelo de repetição, mas uma unidade repetida no corpo social da história.

 

Referências

Barthes, Roland. (1984)A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

Candiani, Alicia. (2016). ProyectoACE, URL: www.proyectoace.org        [ Links ]

Didi-Huberman. "Aby Warburg et l'archive des intensités," Études photographiques, n. 10, nov. 2001.         [ Links ]

Didi-Huberman. (2002) L'image survivante, Paris Minuit,         [ Links ]

Krauss, Rosalind. (2010). O fotográfico. Barcelona: Editora Gustavo Gilli.         [ Links ]

Simão, Selma Machado. (2008). Entre o pictórico e o fotográfico. São Paulo: Unesp,         [ Links ]

Slodky, David. (2010) "Al encuentro de la heroína...' Una reivindicación de Carmen Puch, la mujer que amó a Güemes."Entrevista. Jornal Clarín, Buenos Aires 01/10/2010        [ Links ]

Soulages, François. (2010) Estética da fotografia: perda e permanência. Trad. Iraci D. Poleti e Regina Salgado Campos. São Paulo: Senac.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 21 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: harkanaan@gmail.com (Helena Araújo Rodrigues Kanaan)

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