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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.18 Lisboa jun. 2017

 

Artigos originais

Original articles

O fluxo da memória no gesto pictórico de Carlos Zílio

The flow of memory in the pictorial gesture of Carlos Zílio

 

Almerinda da Silva Lopes*

*Brasil, professor de Artes Visuais e Curador. Bacharelado em Artes Plásticas, pela Universidade Estadual Paulista, Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestrado em Hisória Artes Visuais (Pintura) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Doutorado em Artes Visuais pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Centro de Artes (CAR), Departamento de Teorias da Arte e Música (DTAM). Avenida Fernando Ferrari, 514 – Campus Universitário de Goiabeiras – Vitória – ES. CEP 20075-910 Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

Resumo:

Este texto contextualiza e reflete sobre uma série de pinturas contemporâneas, produzida entre 2000 e 2010 por Carlos Zílio (RJ. 1944), resultante do olhar anacrônico que o artista lança sobre a pintura moderna, com o propósito de discutir problemas específicos da própria pintura. Submete a seu olhar contemporâneo, experiência cultural e injunções criativas, determinadas formulações plásticas e códigos visuais extraídos da pintura do passado recente, realocando-os transfigurados em suas telas. Distende e redimensiona a noção de tempo/memória, subvertendo a linha evolutiva das formas artísticas e a própria história da arte, tal como propõe o filósofo francês Didi-Huberman.

Palavras-chave: Pintura contemporânea / Carlos Zílio / Tempo/memória / Anacronismo.

 

Abstract:

This text contextualizes and reflects on a series of contemporary paintings, performed between 2000 and 2010 by Carlos Zilio (RJ 1944), resulting from the anachronistic point of view that the artist throws on modern painting, with the purpose of discussing specific problems of the painting itself. It submits to its contemporary look, cultural experience and creative injunctions, certain plastic formulations and visual codes taken from the painting of the recent past, reallocating them transfigured in their screens. It distends and restructures the perception of time / memory, subverting the evolutionary line of artistic forms and the history of art itself, as proposed by the French philosopher Didi-Huberman.

Keywords: Container painting / Carlos Zilio / Time/memory / Anachronism

 

Introdução

Para melhor compreensão e contextualização da série de pinturas objeto deste texto, executada entre o final de 1990 e a década seguinte pelo artista, professor e teórico carioca Carlos Zílio, faz-se antes breve contextualização focando alguns aspectos de sua trajetória criativa.

Ao iniciar a carreira na segunda metade da década de 1960, ele e outros jovens artistas brasileiros envidariam esforços para sintonizar-se com o novo contexto de mundo e as mudanças do paradigma criativo, ditadas pelos principais centros hegemônicos do mundo ocidental, mediante referências que recebiam em especial via Bienal de São Paulo. Embora o país vivesse, então, sob a égide do regime ditatorial – que através de seus órgãos de repressão e de censura controlava e reprimia as formas de expressão que subvertessem a chamada "ordem pública" –, isso incentivou o desenvolvimento de uma atividade artística altamente criativa, diversificada e de forte cunho político.

As tendências artísticas conceitualistas e experimentais foram as que tiverem maior propagação e acolhida entre a geração de artistas brasileiros que emergia naquele momento, em detrimento da retração da pintura. Enquanto as gramáticas conceitualistas circulavam à margem das instituições e sem problemas com a censura, por não serem familiares aos militares, muitos trabalhos de pintura eram proibidos, apreendidos, destruídos e seus autores processados e punidos. Se muitos jovens substituíram a prática pictórica por processos alternativos e experimentais, exerceram por meio deles uma espécie de militância política, contestando o regime de exceção e o sistema artístico. Alguns tomariam uma postura ainda mais radical, engajando-se na luta armada, como ocorreu com Carlos Zílio. Este acabaria gravemente ferido e preso no início da década de 1970.

Ao invés de pintura, o jovem artista produziu, até então, fotografias, objetos e ações propositivas repletas de ironia e de revolta. No período de convalescência, dedicou-se principalmente ao desenho de pequenos formatos e à pintura sobre pratos de porcelana, recorrendo a tintas industriais. Os signos mais frequentes eram caveiras e figuras humanas quase sempre esquemáticas, de corpo inteiro (embora nomeasse algumas de autorretratos), mas desenhou, pintou e fez relevos de cabeças (quase sempre de olhos vendados por tarja preta. Estas são representadas de frente e de perfil, acompanhadas de sequências numéricas, algumas das quais nomeou de autorretratos), ou mesclam-se com elementos simbólicos: cruzes, cérebros, corações e órgãos genitais, sangrando ou atravessados por flechas. Zílio desafiava, assim, a censura, denunciando a morte e a tortura dos presos políticos, mas também seu próprio fichamento e perseguição pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de repressão militar.

Após recuperar a liberdade, o artista refazia as pazes com a pintura, experimentando diferentes suportes e tintas, em composições de formas econômicas, e nas quais recorria apenas ao preto e ao vermelho. Além de corpos esquemáticos, fragmentados ou mutilados, outros signos de tornariam frequentes nas te-las: os objetos industriais contundentes e sangrentos, como lâminas de barbear, alicates, chaves de fenda, pregos de pontas afiadas, pontos de interrogação. Nas composições que se aproximavam da gramática da pop-arte, inseria palavras de ordem e de denúncia, grafadas em vermelho: Lute, Sim, Cuidado, Atenção, In memoriam, além de dedos em riste, pontos de interrogação sanguinolentos e sons onomatopaicos.

O clima de coibição e perseguição faria Zílio deixar o país. Seguindo a rota de outros artistas brasileiros, exilou-se voluntariamente em Paris (1976-1980), onde descobriu a obra dos grandes mestres da modernidade e concluiu um curso de doutorado. Segundo o artista, o exílio lhe desvelou novos horizontes criativos, permitindo-lhe o acesso aos textos teóricos de autoria de Hubert Damisch e aproximar-se do pintor Jorge Guinle (1944-1987), que na época se encontrava na capital francesa. O último lhe ensinou que "pintar é antes de tudo um ato de ver"; e estudando a teoria da subjetividade simbólica de Damisch, conseguiu "entender a história da arte" e aprender "a olhar a pintura" (Zílio, 2006:10).

Ao retornar ao Brasil, no início da abertura política, Zílio atribuiria à irreverência e à impetuosidade da juventude, sua descoberta tardia da pintura moderna de brasileiros e estrangeiros como: Cézanne, Monet, Matisse, Mondrian, Tarsila, Guignard e Volpi, Barnett Newman, Robert Ryman. Tal interesse coincidia, no entanto, com a revitalização da pintura por uma nova geração de jovens, que entediada com a longa persistência dos conceitualismos reverteria os prognósticos da morte da pintura. E também se mostrava disposta a mudar a história, entendendo o fim como possibilidade de um novo recomeçar, não a partir do grau zero, como entenderam os utopistas modernos, mas contaminada pelo pensamento do presente preconizaria a formulação de novos problemas para a pintura, como observou Yve-Alain Bois:

Talvez a pintura não esteja morta. Sua vitalidade só será testada uma vez se estivermos curados de nossa obsessão e nossa melancolia e voltemos a acreditar em nossa habilidade de agir na história, aceitando nosso projeto de trabalhar o fim novamente, melhor do que fugindo disso através de mecanismos cada vez mais elaborados de defesa (...), e estabelecendo nossa tarefa histórica: a difícil tarefa do luto. Não será mais fácil do que antes, mas minha aposta é que o potencial da pintura irá emergir da desconstrução conjuntiva das três instâncias que a pintura moderna dissociou (o imaginário, o real e o simbólico) (2006:110).

Zílio empreenderia nas décadas seguintes, verdadeiro corpo a corpo com o processo pictórico, interrogando inúmeras vezes: "Pode alguém, ainda, pintar hoje em dia?". De maneira coerente, ética e independente dividiria a praxe criativa com a carreira acadêmica, sem demonstrar grande apreço pela euforia do mercado de arte.

Pautado no conceito de autonomia e na brecha aberta por Duchamp transitaria pela história da pintura, apropriando-se de códigos, estilos e gramáticas visuais que, por alguma razão, o instigam. Em Matisse interessam-lhe determinados arabescos, flores estilizadas e elementos geometrizados, que remetem à estamparia de tecidos e aos papeis de parede, de gosto popular. O artista é atraído na pintura de Volpi pela síntese geométrica e pelas cores orquestrais das conhecidas bandeirolas. Nesse processo de reversão da "alta cultura", Zílio voltaria também o olhar para os tons de rosas, verdes e azuis soturnos, as chamadas "cores caipiras", como a crítica denominou o inabitual colorido das telas de Tarsila do Amaral.

Mesclam-se na gramática visual do carioca certos resquícios de rebeldia e um senso de liberdade, reveladores de um olhar sensível e reflexivo lançado sobre determinadas formas e cores da pintura de alguns artistas abstratos. O Artista afirmaria algumas vezes que o que mais o atrai em seus antecessores é a maneira como os mesmos captaram e sintetizaram "toda a tradição da pintura universal" (Zílio, 2006: 9). Embora recorra frequentemente à citação, o artista jamais de contentará com a simples apropriação. Submete as cores e estruturas formais emprestadas, a suas injunções criativas e a sua ação transfiguradora, com o propósito de atribuir-lhes novo sentido e tirá-las do esquecimento.

Estabelece, assim, um processo dialético: reconfigura o passado recente fazendo uma espécie de arqueologia da memória da pintura universal, e desestabiliza o olhar, pondo em xeque a linha evolutiva das imagens e, consequentemente, a história da arte, na mesma acepção proposta pelo filósofo francês Didi-Huberman, em Devant le temps (2000).

 

Da repetição de signos e cores à escrituração do gesto pictórico

Na série de pinturas iniciada na virada dos anos de 1990 para 2000, Zílio recorre a pinceladas lisas ou encrespadas, obtidas ora com a tinta liquefeita ora geradas com a sobreposição de camadas, de uma mesma cor. Faz emergir desse magma signos gráficos ou formas geométricas ancestrais, destituídos de qualquer apelo estético, e que parecem extraídos da memória e da subjetividade.

O gesto pulsante que emerge dessa pintura reflexiva, confirma tanto a autonomia criativa, quanto o amadurecimento de um pensamento lentamente gestado e exercitado pelo artista em seu laboratório criativo, nas décadas anteriores. Distancia-se, então, de qualquer alusão ilustrativa e da paleta anterior de cores puras e vibrantes. Embora mencione ter interesse na pintura planar de Piet Mondrian, Barnett Newman e de Robert Ryman, é na economia de cores e em uma escala monocromática em que predomina o preto, o branco, o azul soturno e as gradações de bege, que tais referências se insinuam.

O campo monocromático dessas pinturas é atravessado por formas geométricas elementares ou pela interseção de planos verticais ou horizontais de gradações de maior ou menor contraste, remetendo de modo especial ao minimalismo de Ryman (Figura 1, Figura 2, Figura 3). Zílio espalha a matéria de forma irregular sobre o campo pictórico, deixando áreas que parecem inacabadas ou incompletas, borrando em alguns casos o traçado negro da estrutura ortogonal, ou das formas circulares, que repete incansavelmente. Libera a pintura de qualquer apelo estético ou de uma relação que o aproxime das formulações construtivas canônicas.

 

 

 

 

 

 

Experimenta novos suportes e materiais, como o verniz sobre placas de poliuretano, em composições em que recorre a uma geometria nada ortodoxa, que aumenta gradativamente de espessura transformando-se em estrutura linear adensada e autônoma, demarcada com tinta preta ou sépia sobre um campo pictórico em que predominam as gradações de bege.

Sobrepõe generosas camadas de matéria em que soterra (ou escava?) nesse magma monocromático grande parte da história da pintura. Zílio desenvolve em alguns trabalhos um processo arqueológico, em que parece revirar as gavetas da memória. Escritura com um pincel de cerdas duras, ou com o cabo do próprio instrumento, formas geométricas elementares, traçados paralelos sequenciais, cruzes ou outras formas ancestrais (Figura 4, Figura 5). Revolve a matéria bruta ou informe, abrindo sulcos no campo de cor, que parecem rasgar a pele ou a carne da pintura, escriturando sobre ela signos ancestrais, que trazem à memória diferentes tempos e códigos da história da arte.

 

 

 

 

Em outras telas imprime formas ora quase imperceptíveis ora claramente definidas sobre a matéria rala, adensada ou mesmo encrespada, com toques curtos e repetitivos do pincel ou com movimentos circulares e gestos amplos e impulsivos do pincel. Como observa Venancio (2006): "a materialidade da tinta e da tela viria a aparecer implacavelmente para o pintor, e o espaço, antes intelectualizado, manifestaria agora sua real verdade empírica e fenomenológica, impossível de fantasiar, difícil de enfrentar". As formas geométricas circulares ganham cada vez mais força, deslizando no espaço em repetições e entrelaçamentos, ou em enrodilhados que lembram ninhos.

 

Conclusão

Nessa série de trabalhos ainda não concluída se confirma o embate de Carlos Zílio com a pintura, atuando aparentemente sem premeditação ou esboço prévio. Escritura o gesto sobre a matéria densa, fazendo o pincel deslizar com impulsividade sobre esse magma, de forma a preservar o percurso da mão em rastros horizontais, oblíquos e circulares. Promove, assim, um processo de síntese digladiando-se sobre grandes suportes, sobre os quais repete os mesmos signos de formulação circular e a paleta de cores se torna cada vez mais restrita. Associa a alguns desses signos visuais palavras ou códigos verbais, promovendo uma articulação metalinguística, em que desimagina e atualiza formas e significados, numa tessitura que visa problematizar o olhar e desestabilizar a percepção. Estabelece, assim, com a obra de seus antecedentes um diálogo que é mais de ordem "externa que interna", ou seja, resulta de uma vivência e de um constante exercício experimental, que ganha corpo e consistência à medida que se lança sobre ela um olhar tátil.

A liberdade com que o pintor enfrenta o suporte é de tal ordem que algumas composições lembram verdadeiras garatujas ou emaranhados de linhas, nas quais a história não deixa de se reconfigurar e se atualizar pela experiência do olhar e por uma temporalidade própria da memória. E não parece ser mera coincidência o fato de na metade da última década o gesto impulsivo do artista formular verdadeiros novelos de linhas, teias ou ninhos, nomeando-os de "banhistas". Se a evocação a Matisse não se afirma a não ser pela memória, confirma a unidade e a coerência da poética de Zílio. Na série de pinturas analisada, o artista se repete sem se repetir, ao dar continuidade a um projeto pictórico singular cada vez mais enredado e que jamais finalizará, ao inserir frequentemente nas telas, signos de trabalhos anteriores, como caveiras e tamanduás, que ora são reforçados pelo pincel ora atenuados, soterrados ou enredados em turbilhões de linhas.

 

Referências

Bois, Yve-Alain (2006). "Pintura: a tarefa do luto." Trad. Taís Ribeiro. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade de São Paulo, ano 4, nº 7, p. 97-111. Publicado originalmente, em inglês, com o título: Painting: the task of Mourning. Catálogo da mostra Endegame: Reference and simulations in recente painting and sculpture (1986). Massachusetts Institute of Technology e Institute of Contemporary Art, Boston (USA).         [ Links ]

Didi-Huberman, Gorges 2000). Devant le temps. Paris: Les Éditions de Minuit.         [ Links ]

Venancio Filho, Paulo (Org.). (2006) Carlos Zílio. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Venancio Filho, Paulo (Org.). (2006) Retrato do artista (antes e depois da pintura). Acesso em 11 dez. 2016. URL: http://www.carloszilio.com/critica/venancio%20filho,%20paulo.pdf        [ Links ]

Zílio, Carlos (2006). "Que história é essa?!" Entrevista. Arte & Ensaios, Revista do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais EBA, UFRJ, ano XIII, n. 13, Rio de Janeiro, p. 7-21.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 23 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: almerinda.lopes@ufes.br (Almerinda da Silva Lopes)

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