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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.19 Lisboa set. 2017

 

Dossier editorial

Editor's section

"Arquivos da Destruição": experiências e invenções sobre a paisagem a partir da obra de Glayson Arcanjo

"Archives of the Destruction": experiences and inventions about landscape by the Glayson Arcanjo's work

 

Paula Cristina Somenzari Almozara*

*Brasil, artista visual, professora e pesquisadora. Doutorado em Educação, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestrado em Artes, Unicamp. Bacharelado em Educação Artística com Habilitação em Artes Plásticas, Unicamp.

AFILIAÇÃO: Núcleo de Pesquisa e Extensão do Centro de Linguagem e Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Campus I – Prédio da Reitoria Rod. D. Pedro I, km 136. Pq. das Universidades Campinas – SP / CEP: 13086-900 Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

Resumo:

Pretende-se refletir sobre as experiências e invenções ligadas a construção de uma poética da paisagem por intermédio de obras e de projetos do artista brasileiro Glayson Arcanjo, especificamente, os intitulados "Arquivos da Destruição".

Palavras-chave: Paisagem / Glayson Arcanjo / projeto de exposição / arquivo / desenho.

 

Abstract:

It intends to reflect on the experiences and inventions concerning to poetics landscape construction from the works and the project "Archives of Destruction" the brazilian artist Glayson Arcanjo.

Keywords: Landscape / Glayson Arcanjo / exhibition project / archive / drawing.

 

O objetivo é pensar sobre uma poética da paisagem baseada em uma noção fenomenológica que a coloca como elemento construído e identificado pela experiência e pela invenção. Para tanto, pretende-se articular essa questão por intermédio da obra e de projetos do artista brasileiro Glayson Arcanjo.

Os projetos de exposição "Arquivos da Destruição" de Arcanjo que foram apresentados às instituições Museu de Arte da Universidade Federal de Uberlândia e Museu da Universidade Estadual de Minas Gerais, interessam-nos particularmente, pois, por meio desses, podemos, inicialmente, verificar dois indícios conceituais de análise que reverberam por toda a obra do artista e que nos ajudam em uma reflexão amplificada sobre a paisagem. O primeiro diz respeito a menção da palavra "ruína", vista como uma metáfora a fim de determinar uma relação indicial dos resquícios da presença humana, vislumbrados por construções abandonadas na paisagem da cidade e que, no caso do artista, são transformadas em lugares de identificação simbólica por meio do desenho e por intervenções (Figura 1). O segundo aspecto é a ideia vestigial, ou seja, marcas, sinais, que podem intensificar uma relação experiencial e de invenção que transforma o espaço em lugar, no que concerne especificamente a uma acepção de lugar como sendo: "tempo em espaço; ou seja, lugar é tempo lugarizado, pois entre espaço e tempo se dá o lugar, o movimento, a matéria" (Oliveira, 2012: 5).

 

 

Dentro da análise da produção de Glayson Arcanjo, a tomada de consciência sobre a construção de significados associados ao espaço estabelece uma invenção sobre a ruína e os vestígios como uma espécie de arqueologia da paisagem. Nesse caso, não se trata da disciplina arqueológica em si, mas de um posicionamento imaginativo de como ocorre a relação entre os resquícios de construção e a memória individual, em uma espécie de tentativa de demarcar e experimentar sentimentos e sensações sobre o/e a partir do contato com o espaço/lugar. Ao ressaltar isso pelo desenho na própria observação do sítio abandonado, o processo afirma-se como tautológico, no qual a ruína e sua re-apresentação ocorrem em paralelo. O registro não se limita apenas à essa operação tautológica, mas infere outro processo que é o de cuidadosa apreensão dos detalhes das ruínas e de seus vestígios por meio de um rigoroso desenho de observação (Figura 2) em outro suporte que passa a integrar um arquivo de memórias e sensações e que, posteriormente, determinarão intervenções em espaços expositivos.

 

 

Observamos que, dentro das proposições expográficas de "Arquivos da Destruição" (Figura 3), o artista pretende um deslocamento do desenho elaborado e registrado in loco para o espaço ascético do museu. Essa transposição evidencia uma reapresentação do desenho que demonstra as peregrinações do artista por sítios abandonados na cidade. A monumentalidade proposta, ou seja, o tamanho e as proporções escolhidas para as paredes do museu sugerem algumas sensações e sentimentos experenciados por Arcanjo diante do abandono e dos escombros. Não sendo ruínas históricas, no sentido estrito do termo, sua importância não diminui por isso, uma vez que sua historicidade reside na sua existência como testemunhos de um processo de abandono típico de explorações imobiliárias dos grandes centros urbanos.

 

 

Reapresentar tais ruínas, nesse sentido, é um ato de resistência e de provocação, retirando os destroços de sua condição de invisibilidade urbana, por meio dos três processos vivenciados pelo artista: a intervenção no local, a representação mnemônica do desenho sobre papel e reapresentação no espaço museal.

Esses três momentos distintos intensificados pelo desenho são fundamentados pela lógica vestigial, que amplifica o ato de observação realizado no espaço/lugar, no qual o suporte eram as paredes restantes da construção e, portanto, efêmeras e pouco acessíveis ao público e que posteriormente encontram sua perenidade na relação de Arcanjo com os desenhos em sua forma de registro, de interação e de observação.

Neste caso, como uma possibilidade de compreender esse abandono e esses vestígios, podemos tentar uma aproximação com as "cidades e as trocas" (Calvino, 1990: 72), mais especificamente Ercília descrita no livro Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino (Calvino, 1990), e que aqui ousamos apresentar como uma referência ao processo de Glayson Arcanjo:

 

Em Ercília, para estabelecer as ligações que orientam a vida da cidade, os habitantes estendem fios entre as arestas das casas, brancos ou pretos ou cinza ou pretos e brancos, de acordo com as relações de parentesco, troca, autoridade, representação. Quando os fios são tantos que não se pode mais atravessar, os habitantes vão embora: as casas são desmontadas; restam apenas os fios e os sustentáculos dos fios. [...] Deste modo, viajando-se no território de Ercília, depara-se com as ruínas das cidades abandonadas, sem as muralhas que não duram, sem os ossos dos mortos que rolam com o vento: teias de aranha de relações intrincadas à procura de uma forma. (Calvino, 1990: 72)

A descrição de Ercília ressalta um processo de conexão entre espaços, materiais e elementos conceituais, nos quais seus habitantes "são nada" (Calvino, 1990) a observar do "costado" o que lhes sobrou do desmonte de sua cidade após a interdição que as "linhas existentes" e indicativas de seus processos de vida provocaram no movimento vital que compõe o emaranhado de "linhas existencias". Por sua vez, as linhas dos desenhos de Arcanjo se coadunam às linhas de Ercília por mostrarem e representarem as perdas às quais, de modo real ou metafórico, o homem da urbe está destinado ou pré-destinado.

Para compreender, desse modo, "Arquivos da Destruição", temos de referenciar os antecedentes que configuram a gênese dessas obras e projetos (Figura 3), e que podem ser percebidos em participações do artista em eventos entre os anos de 2013 e 2014, sendo uma das mais impactantes a residência artística realizado por Arcanjo em 2014 na Plataforma Phosphorus (projeto realizado com apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura – Programa de Ação Cultural – 2013, contemplado através do edital no. 24/2013 relativo ao "Concurso de Apoio de projetos de espaços independentes vinculados às artes visuais no Estado de São Paulo" [Montero, 2014: capa]), na qual o artista vivenciou o espaço urbano do centro da cidade de São Paulo (Figura 4) por meio de deambulações que ativaram tentativas de ações a partir dos prédios e construções abandonadas ou invadidas por ocupações:

 

 

Não há como ficar alheio a ideia de ruína, de abandono, de escombro. Estamos no coração esquecido da cidade se São Paulo. Há prédios abandonados por toda a parte. Mas o que é pior. Há pessoas abandonadas dormindo embaixo de espessos cobertores. Tropeçamos em corpos. [...] Na frente do Phosphorus todos os prédios (que estavam vazios desde que mudamos para cá a 3 anos) foram invadidos pelas ocupações. Movimento popular paulista. LPM, luta por moradia. Uma luta que não conhecemos na pele. Uma luta de classes daqueles que historicamente, não possuem os recursos/direitos mínimos de sobrevivência. Tentou entrar nas ocupações mas os muros são rígidos. O medo não dá passagem aos estrangeiros. (Montero, 2014: 2).

 

A ausência da figura humana em seus trabalhos é sintomática e torna-se profundamente dramática, uma vez que, ao prescindir da representação humana e indicar apenas vestígios de sua presença, isso revela o aspecto mais insidioso do que se pode considerar como ruína, ou seja, o abandono. A "ruína" para o artista não é um modelo ligado ao sublime sugerido por uma visão romantizada da paisagem, mas a uma situação moral ligada à destruição das condições de se habitar um espaço.

Os vestígios coletados, as ações performáticas, as fotografias e, principalmente, os desenhos do artista relacionam-se à "falta" e também a uma tentativa de pertencimento como uma forma de experimentar a perda ao mesmo tempo em que se pretende dignificar ou devolver ao espaço a sua condição de lugar.

Trata-se de uma situação paradoxal. Quando Maria Montero (2014: 2) afirma que o "medo não dá passagem aos estrangeiros" – ao sugerir que as ocupações não permitiram a entrada de pessoas "de fora" e, portanto, Glayson não conseguiu conhecer os meandros dos prédios ocupados nem sua residência em 2014 – enfim, o que lhe foi dado a conhecer pelos limites físicos impostos colaboraram para a "invenção" como busca e para uma tentativa de elucidação de otenciais histórias ligadas à percepção, à empatia e à subjetividade do artista que se relaciona ao que lhe tocou a alma. Na verdade, para o artista não se trata de uma ação histórica apenas, mas de instauração, de uma busca sígnica, uma conexão com o espaço, um esforço de se entender uma condição humana ligada ao abandono e à perda. Nesse sentido, o artista foi privado de uma relação com o espaço, mas essa privação encaminhou seu trabalho para a única coisa que lhe restou, a fachada, que, em última análise, seria a peça fundamental de um intrincado quebra-cabeça (puzzle) social que lhe foi "concedido" naquele momento (Figura 4).

Pelos escombros, pelas vias marginais, Glayson acabou construindo sua poética, não é sem propósito que o título dos projetos de exposição e dos conjuntos de obras apresentados coloca lado a lado as palavras arquivos e destruição.

Em um dos últimos trabalhos desta série de Arcanjo, percebe-se o inexorável, ou seja, a destruição que não pode ser aplacada por ser atávica ao crescimento desenfreado da cidade e das condições sociais adversas que enfrentamos. Assim, o artista cria um elemento visual emblemático desse possível destino paisagístico distópico da urbe: sua encarnação civilizatória, uma imagem de uma construção incrustada em um pedaço de muro, uma espécie de ostraca de argamassa e cimento (Figura 5), na qual se vê representada o que possivelmente deveria ser a parede de onde foi retirada esse pequeno pedaço de material.

 

 

A obra de Glayson Arcanjo deixa implícita nossa incapacidade de controle absoluto sobre a verdade dos fatos, resta-nos apenas a invenção, a busca pelo entendimento, pela empatia, por intermédio de marcas, indícios e vestígios, que associados ao repertório do artista ou do observador podem reconstruir ou reordenar o aparente caos da vida contemporânea. E, muito provavelmente nos impele à sensação de que a paisagem contemporânea seja realmente "o muro", como afirma Nelson Brissac Peixoto (2004:13).

 

Referências

Calvino, Ítalo (1990). As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN: 978-85-7164-149-5        [ Links ]

Montero, Maria (Org.) (2014). "Uma página de prosa e outra de poesia". IN: Catálogo do projeto de Residência Phosphorus 2014. São Paulo: Phosphorus (publicação independente). Sem ISBN.         [ Links ]

Oliveira, Lívia de (2012). "O sentido de lugar". In: Mandarola JR, E; Holzer, W.; Oliveira, L. (2012). Qual o lugar do espaço?: geografia, epistemologia, fenomenologia. São Paulo: Perspectiva. ISBN: 978-85-273-0959-2        [ Links ]

Peixoto, Nelson Brissac (2004). Paisagens urbanas. São Paulo: Editora Senac. ISBN: 85-7359-348-2.26 27         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 25 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: almozara@gmail.com (Paula Cristina Somenzari Almozara)

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