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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.19 Lisboa set. 2017

 

Artigos originais

Original articles

Entre-lugares: as Pinturas secas, de Luiz Monken

Between-places: the Dry Paintings, by Luiz Monken

 

Zalinda Cartaxo*

*Brasil, artista visual. Graduação em Artes Plásticas – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Mestrado em História e Crítica de Arte – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutorado em Artes, Universidade de São Paulo (USP). Doutorado em Artes Visuais, UFRJ.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas. Avenida Pasteur nº 436, fundos, Urca, Rio de Janeiro/ RJ, CEP 22.290-240 Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

Resumo:

Considerar a pintura como uma experiência processual auxilia na compreensão das "pinturas secas" do artista brasileiro Luiz Monken. O suporte da tradição é substituído pelo MDF (madeira de fibra), criando nova técnica ao conciliar a tinta acrílica e o fogo, responsável pela negritude barroca dos seus espaços pictóricos. Ao invés do pincel, o massarico que queima a superfície e desenha as formas volumétricas. O confronto entre ser e nada, vazio e pleno, abstrato e concreto, infinitude e finitude, apontam para lugares intermediários: entre-lugares.

Palavras-chave: pintura / espaço / técnica.

 

Abstract:

Considering painting as a process experience helps in understanding the "dry paintings" of the Brazilian artist Luiz Monken. The support of the tradition is replaced by the MDF (fiber wood), creating new technique to reconcile acrylic paint and fire, responsible for the baroque blackness of its pictorial spaces. Instead of the brush, the massarico that burns the surface and draws the volumetric shapes. The confrontation between being and nothing, empty and full, abstract and concrete, infinitude and finitude, point to intermediate places: between-places.

Keywords: painting / space / techinique.

 

Introdução

Segundo Joseph Kosuth (1997), com o surgimento do ready-made, a arte deixou de focar a forma da linguagem (problema de morfologia) para se concentrar no que seria dito (problema de função), ou seja, na transferência da ênfase da 'aparência' para a 'concepção'. Ainda segundo o artista, toda arte depois de Duchamp é, por natureza, conceitual, visto que, "a arte só existe conceitualmente".

Desenvolver qualquer tipo de reflexão sobre as "pinturas secas" do artista brasileiro Luiz Monken, significa considerar a dimensão filosófica que as constitui. De um modo geral, a produção do artista transita (considerando, também, suas criações com outros meios e espacialidades) num território, cuja experiência ocorre de forma aberta, infinita, inconclusa e, fundamentalmente, processual. Daí tomarmos como referência o discurso de Kosuth. Por mais atrativas que suas "pinturas secas" sejam, visualmente falando, o artista opera numa dimensão que está além da fruição visual.

Nesta série podemos localizar, conjuntamente, várias questões relevantes para a disciplina pintura, especialmente, quando pensada conceitualmente: o suporte utilizado, a adoção de materiais e técnicas não tradicionais, a citação à História da Arte (neste caso, ao espaço infinito Barroco) ou o uso do tromp-l'oeil.

A discussão sobre o suporte tem sido questão premente desde, especialmente, o Período Moderno com as investigações críticas das Vanguardas Artísticas, culminando nas experimentações contemporâneas. Neste contexto podemos citar as pinturas losangulares de Mondrian, as geometrias irregulares das telas de Frank Stella ou de Mel Bochnner, as pinturas brancas de Robert Ryman ou, ainda, as pinturas pós-minimalistas de Richard Tuttle e Keith Sonnier. De várias maneiras o suporte foi testado, pensado, discutido e praticado. As "pinturas secas" do artista brasileiro inscrevem-se nesta filiação.

Luiz Monken possui formação acadêmica em arquitetura, portanto, sua proximidade com matérias, materiais e espaço, é visivelmente influente na sua poética. Não se trata de um arquiteto-artista, mas de um artista consciente que buscou formação condizente às suas necessidades estéticas. Vem da sua formação em arquitetura a qualidade e sofisticação do seu pensamento espacial e conceitual. É muito comum o uso de materiais de construção na sua produção artística: azulejos, lajotas ou a pedra. A eleição da pedra como elemento figurativo protagonizador das suas "pinturas secas" vem, muito mais, das suas qualidades metafóricas, do que propriamente plásticas. Do mesmo modo, a citação ao espaço negro e infinito do Barroco. Juntos, operam um diálogo fundamentalmente paradoxal. Para tanto, o artista criou nova técnica que confere a materialidade necessária à imagem e ao espaço:

 

Inicialmente faço um esboço dos contornos com grafite à mão livre numa chapa de MDF crú. Com a ajuda de um maçarico vou queimando a superfície da placa bem vagarosamente, ora aproximando e ora afastando a chama de fogo da superfície, com muito controle, para não queimá-la totalmente. Onde se queima mais fica completamente preto. Menos surgem vários tons de marrons. Nas áreas onde a queima do MDF é mais branda aparece uma coloração amarelada muito forte, devido à química da madeira em reação com a chama do maçarico. Para amenizá-la passo uma camada de tinta acrílica branca muito rala com um pincel bem macio. Finalizando, aplico uma camada de verniz fixador spray incolor, em toda a superfície trabalhada para uma maior conservação da obra (Luiz Monken, comunicação pessoal)

 

O enfrentamento dos materiais e das matérias nesta série de Luiz Monken revela o quão essencial torna-se o real (Figura 1). Não se trata da representação de uma pedra num espaço negro, senão, da construção de um espaço pictórico único constituido, simultaneamente e indissocialmente, de forma e lugar. Patrick Vauday (2002), em seu 'La Peintura et l'Image: y a-t-il peinture sans image?', propõe a denominação de espaço imaginal para aquele espaço comum, diferenciado, que deixa claro o próximo e o distante, a representação e o meio. Para o autor o ponto de vista da pintura não é o 'ou' (alternativa disjuntiva), mas sim o 'e' (simultaneidade conjuntiva). Numa pintura, a imagem está em composição dinâmica com a matéria: é próprio da imagem pictural compor sua superfície manual com o plano visual da representação. Desta forma, o espaço imaginal é aquele da indeterminação visto que o fundo altera a forma, faz-se superfície, signo e a matéria criam agenciamentos imprevisíveis. A imagem pictórica não é sujeito nem objeto, mas sim percurso entre os dois – é trajeto e meio. Conseqüentemente, o espaço imaginal é mais topológico – a topologia estuda a noção de vizinhança dos elementos de dado conjunto independente das distâncias entre os mesmos – , quando, numa pintura elementos composicionais constituem-se pelo movimento de atração e repulsão, independentemente da distância que os separa. Tal espaço, nada mais é, senão, um espaço de contração e de dilatação, em que qualquer elemento pode vir a se relacionar com o outro. As "pinturas secas" de Luiz Monken inscrevem-se nesta estrutura de dinâmica temporal incessante.

 

 

A dimensão filosófico-conceitual das "pinturas secas" de Monken, por analogia, aproxima-se, de algum modo, da cérebre pintura Marat assassiné, de 1793, pintada por Jacques-Louis David (Figura 2). David representa a morte de Marat, segundo Giulio Carlo Argan (1994:44), à "velha maneira da pintura do Iluminismo (Hogarth) de determinar o local do fato mediante uma série de presenças significativas, testemunhais; mas não há o gosto narrativo que dava à representação a duração de uma cena de teatro, de um capítulo de romance."

 

 

Se na pintura de David existe o confronto entre a representação do tromp-l'oeil da parte inferior com a abstração da parte superior, em Monken, a solidez figurativa da pedra também contrasta com o fundo negro abstrato. Para Argan (1994:44), referindo-se à obra de David, "a definição do local, tão exata em primeiro plano, dilui-se no alto: mais da metade do quadro é vazia, é um fundo abstrato, sem sinal algum de existência". O autor conclui que, "da presença tangível das coisas passa-se à desolada ausência, da realidade ao nada, do ser ao não-ser", em que "na exígua zona intermediária morre Marat: David não descreve a violência do assassinato, nem o tormento da agonia, nem a angústia da morte, mas, como filósofo, a passagem do ser ao nada".

Segundo Argan (1994:44), esse "estóico deter-se no momento da morte", aproxima David de Caravaggio, referindo-no ao Sepultamento de Cristo, quando o braço que pende representa o último sopro de vida, tal qual em Marat assassiné. Argan alerta que David chegou a Caravaggio através de Poussin, em que o tema da morte é recorrente, "como passagem do presente a um passado sem fim, do drama à catarse" (Argan, 1994:44):

Somente além da vida reencontrva aquela serenidade clássica que, para ele, reunia o sentido pagão ou natural e o sentido espiritual ou cristão da vida. No entanto, a filosofia de David não é cristã nem pagã, é atéia. Para ele, a morte é apenas o deter-se do presente, as coisas sem a vida. Não havendo drama, não há tempo nem espaço.

Ainda sobre Marat assassiné, Argan observa que não existe nenhuma fonte de luz que justifique o contraste entre luz e sombra, lembrando que a primeira significa a vida e a segunda, a morte. Ambas existem em reciprocidade. Indo mais além, o autor indica o acordo entre a forma-Marat com a estrutura compositiva da obra, em que o nariz acompanha a horizontalidade da borda da banheira e as sobrancelhas a verticalidade do braço e da caixa: a figura está na pintura e vice-versa, tal qual nos fala Vauday. Segundo o autor, a história para David "não é mais fato memorável e exemplar, tampouco drama ou episódio; é a lógica e, ao mesmo tempo, a moral dos acontecimentos" (Argan, 1994, 44).

As afinidades entre as "pinturas secas", de Monken, e Marat assassiné, de David, ocorrem no âmbito filosófico-conceitural. Também nas pinturas do artista brasileiro inexiste a narrativa de uma cena ou indícios de um drama ("não havendo drama, não há tempo nem espaço"). Simplesmente um bloco de pedra (cada um numa pintura) que parece flutuar num espaço escuro. Nossos olhos, viciados, talvez os veja apoiados sobre um chão invisível, contudo, não há, realmente, a indicação de que ele exista. É certo, entretanto, que as arestas dos blocos de pedra estão ajustadas às nossas referências espacias, arquitetônicas, ortogonalmente, portanto, existe uma distensão da pintura no espaço, além da afirmação da subjetividade (as formas regulares existem pelo e para o sujeito).

O confronto objetividade-figurativa versus a abstração também existe nas "pinturas secas". Contudo, diferentemente de David que trata da transição entre a vida e a morte, as pinturas de Monken revelam um lugar intermediário entre a vida e a morte: um entre-lugar. Neste, parece não existir nem passado, nem presente, visto não haver qualquer tipo de narrativa ou alusão temporal. A pedra, elemento da natureza, mas também estrutura do humano na construção das suas arquiteturas-abrigo, aqui é metáfora. O protagonismo da imagem-pedra parece indicar a infinitude da Natureza frente à finitude humana. Tal qual na pintura de Caspar Fridrich, The Temple of Juno in Agrigento, de c. 1828-1830, (Figura 3) em que o templo-pedra sobrevive ao seu criador, nas "pinturas secas" de Luiz Monken as pedras em destaque parecem retomar a categoria estética do sublime para refletir sobre as fragilidades do tempo atual, em que

 

 

 

... na época do desgelo, os limites se fundem, se deslizam, se submergem e reermergem por todas as partes. As identidades – nacionais, culturais, individuais – experimentam as ansiedades exultantes que acompanham a ameaça de dissolução (...). As fronteiras da Europa atual são cada vez mais porosas. (Burgin, 2004:165)

 

Segundo Victor Burgin (2004), antes da perspectiva de ponto de fuga surgir no Renascimento não existia a 'ausência', em que o "horror vacui" era manifesto na filosofia aristotélica, nas cosmologias clássicas, onde o espaço era plenitude e na Idade Média, em que Deus manifestava-se como totalidade. Com o surgimento da perspectiva no quattrocento o sujeito depara-se, pela primeira vez, com a ausência no campo de visão. O vazio transforma-se em objeto de abjeção (grau zero da espacialização). Burgin afirma não existir espaço de representação sem sujeito, nem sujeito sem espaço referente, concluindo a existência de limites para o mesmo. Para o autor, o conceito de abjeto poderia corresponder à separação entre 'sujeito' e 'objeto', contudo está na história do primeiro sendo anterior a esta dicotomia. Tem início com a expulsão do sujeito pela sua mãe pré-édipica, em que o corpo procriador da mulher biológica é o primeiro objeto de abjeção. O "corpo da mulher recorda aos homens a sua própria mortalidade" (Burgin, 2004:91). Para Lacan, a esfera das cosmologias clássicas representa o espaço físico onde o sujeito, repetidamente, renasce e o vazio central nela contida, o lugar do objeto perdido, assim como, da morte do sujeito.

A indissociabilidade entre forma e espaço nas "pinturas secas" de Monken (iclusive, com o mesmo tratamento técnico – fatura e materiais), tal qual nos fala, também, Patrick Vauday, a necessidade de reunião, de conciliação do ser-no-mundo, alinha-se à reflexão de Burgin quanto à transformação do vazio em objeto de abjeção.

 

Conclusão

Os fundos na cor de ouro das pinturas do Trecento, o espaço negro e infinito do Barroco, os brancos de Malévich ou do artista brasileiro Leonilson, cada um destes, à sua maneira, sustenta um conceito espacial, que, em comum, refletem o sentido de extensão ou deslimite. Não é diferente nos negros em carvão das "pinturas secas" de Luiz Monken, contudo, sua espacialidade, densa (em matéria, o fogo transforma a madeira em carvão), está atrelada aos sólidos de forma uníssona. Aqui, não existe o abismo. Tal qual nos fala Burgin, não existe espaço de representação sem sujeito, nem sujeito sem espaço referente. A pedra que vira pó, metáfora do homem no mundo, está em relação direta ao espaço negro que o sustenta (o Absolutamente grande) e vice-versa. O artista enfatisa esta indissociabilidade no uso das técnicas e materiais: ambos constituem-se em igualdade.

A suspensão temporal da representação (forma e espaço), a ausência de ação ou de dramaticidade, a inexistência do tempo passado ou presente, absolutamente tudo, revela um locus, em que o confronto entre ser e nada, vazio e pleno, abstrato e concreto, infinitude e finitude, apontam para lugares intermediários: entre-lugares.

 

Referências

Argan, G.C. (1994). Arte moderna. São Paulo: Companhia das Lestras.         [ Links ]

Burgin, Victor. (2004) Ensayos. Barcelona: Gustavo Gili,         [ Links ]

Kosuth, J, (1997) 'L'Art Après la Philosophie'. In: Harrison, Charles & Wood, Paul. Art en Théorie 1900-1990. Paris: Hazan.         [ Links ]

Vauday, Patrick. (2002). La Peintura et l'Image: y a-t-il peinture sans image? Pleins Veux.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 20 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: z.cartaxo@uol.com.br (Zalinda Cartaxo)

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