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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.25 Lisboa mar. 2019

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Le Madonne Trans de Carlos Alberto Negrini

Le Madonne Trans by Carlos Alberto Negrini

 

Marcos Rizolli*

*Brasil, artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Presbiteriana Mackenzie; Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura; Grupo de Pesquisa Arte e Linguagens Contemporâneas. Rua da Consolação, 896 — Prédio 25, São Paulo (SP), CEP 01302907, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Carlos Alberto Negrini é um artista performático brasileiro que faz uso de sua declarada identidade homossexual para operar uma sugestiva militância sobre gênero — fazendo do corpo um campo de batalha. O artista tem concebido desconcertantes performances, plenas de aparatos cênicos, com viés fotográfico. Assim, concebeu também a série Madonnas — aqui neste estudo nomeadas Le Madonne. Na série, buscou a parceria de mulheres trans que lhe serviram como modelos para a configuração contemporânea de um tema clássico.

Palavras chave: corpo / performance / fotografia.

 

ABSTRACT:

Carlos Alberto Negrini is a Brazilian performance artist who uses his declared homosexual identity to operate a suggestive militancy about gender — making the body a battlefield. The artist has designed disconcerting performances, full of scenic displays, with photographic way. Thus, he also conceived the series Madonnas — here in this study named Le Madonne. In the series, he seeks the partnership of trans women who served as models for the contemporary configuration of a classic theme.

Keywords: body / performance / photography.

 

Introdução

Há algo de transgressor na obra artística de Carlos Alberto Negrini!

Devidamente inserido no contexto das temáticas da arte contemporânea o artista brasileiro, que vive e trabalha em São Paulo, sempre insistiu na convergência entre vida e arte: imprimindo, de forma indelével, sua declarada homossexualidade — transformada na presentificação de seu corpo político.

Artista multimedial — do desenho, da performance, do vídeo, da fotografia — integrou à sua pesquisa de mestrado em Educação, Arte e História da Cultura, realizada na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, intitulada Um corpo como campo de batalha: resistências contemporâneas, um apreciável conjunto de fotografias: As Madonnas — que neste estudo crítico serão nomeadas Le Madonne.

Reivindico o termo original, em italiano, para reafirmar a percepção de que o artista nos propõe uma figuralidade pautada na cultura clássica — notadamente, no Renascimento Figurativo que além de conferir excelência na representação das figuras da virgem e do menino perpetuou a maneira moderna de reconhecimento do tema.

Assim, Le Madonne de Carlos Alberto Negrini estão expressivamente posicionadas para aquém e além dos tão propagados multiefeitos da cultura queer — exemplificados nas obras de David LaChapelle ou nos textos de Judith Butler.

 

1. Um corpo como campo de batalha

A transgressão, então, não está no posicionamento do artista em relação à sua militância gay. E, sim, na forma de enfrentamento que encontrou para anunciar suas vitais vicissitudes: primeiramente na família, diante da frustação materna/paterna, continuamente na sociedade, diante das alteridades preconceituosas e, por fim, na linguagem, para apresentar imagens fiéis à sua identidade.

Bem assim:

A obra performático-fotográfica de Carlos Negrini determina uma dimensão autobiográfica ao revelar o corpo em suas múltiplas possibilidades, que assume um lugar de extrema densidade política, evidenciando questões para refletir a própria existência. Tendo como referência o ambiente familiar como microcosmo criativo, explora as fronteiras entre sujeito e sociedade assumindo uma natureza expressiva que transita do íntimo ao universal. Como consequência de memórias da sua infância e do embate relacional com o mundo, emergem questões como pertencimento, rejeição, amor, ódio, identidade e sexualidade — na delicada relação entre mãe e filho (Mello; Rizolli; Stori, 2017:30)

Ou ainda:

Como confrontar o impasse de que o discurso que fundamenta o padrão, o escolhe como certo e padronizado? Consequentemente, tudo o que foge a esse olhar esteriotipado deve ser escondido ou inviabilizado? As prováveis respostas não são fáceis, mas indubitavelmente geram novas questões que problematizam nossas formas de pensar, ver e estimular novos olhares a partir dos caminhos da alteridade e da arte (Negrini, 2017:7).

Então o artista pensa o corpo como um campo de batalha, em suas ações políticas e artísticas — sempre performáticas.

Pois,

a sexualidade, diz-se, é dramática porque engajamos nela toda a nossa vida pessoal. Mas justamente por que nós o fazemos? Porque nosso corpo é para nós o espelho de nosso ser, senão porque ele é um eu natural (Merleau-Ponty, 2011:236).

Contudo, partindo da máxima de que o problema do mundo, e, para começar, o do próprio corpo, consiste no fato de que tudo reside ali (Merleau-Ponty, op.cit.:268), o artista encontra outras formas de registro!

Ato contínuo, os registros videográficos e/ou fotográficos consequentes de suas performances sugerem novos encaminhamentos expressivos aptos a alcançar autonomia tanto como proposição quanto como imagem (Figura 1).

 

 

A potência performática indicou ao artista a viabilidade de transferir sua energia vital — afinal, o artista é sempre o corpo-argumento protagonista de suas ações — para outros corpos. Por alteridade, cedeu a autorrefêrencia para outros corpos-sujeitos.

O jogo simbólico da transferência, por assim dizer, dissipou a necessidade da ação — devidamente substituída pelo processo fotográfico — compreendidas, aqui, as etapas de criação, pré produção, ato fotográfico e pós produção.

A série de fotografias Le Madonne, da Carlos Negrini, abre-se à novas batalhas corporais — entre a pintura de gênero (clássica e tradicional) e o discurso de gênero (emergente e contemporâneo).

 

2. Le Madonne

O modelo temático adotado é o nome dado à representação artística da mãe imaculada, em iconografias da arte cristã. É um tema tradicional, onde as obras representam a Virgem Maria com seu filho — Jesus.

Considerando a primeira representação da Virgem com o Menino ainda existente, que pode ser vista no mural da Catacumba de Priscila, em Roma, na qual Maria aparece sentada amamentando Jesus, que por sua vez inclina sua cabeça, parecendo olhar o observador, Carlos Negrini arrastou o tema à sua batalha — e, consequentemente, para a contemporaneidade (Figura 2).

 

 

Não sem antes pesquisar a iconografia dos mosaicos, dos afrescos, dos retábulos, das encáusticas, das telas — que constituiram suas referências visuais e conceituais. Neste insterstício criativo, prevaleceu o afeto ao tema. Silenciou o emblemático de suas próprias questões para dar voz ao sublime!

Comprometido com sua artisticidade, concebeu e conduziu todos os passos procedimentais que constituiram a série Le Madonne! Desde a identificação de mulheres trans que se prontificaram a posar como modelos e se dispuseram ao elaborado tempo de caracterização — nos ínterins de maquiagem, figurino, cenografia, iluminação, composição postural — e produção fotográfica (Figura 3). Assim, a iconicidade do tema reconhece diferentes técnicas, diversificados estilos, múltiplas composições. Elementos que irrigaram o processo criativo do artista.

 

 

Carlos Negrini se apropria da cultura das convenções do tema da Madonna e Bambino para inventivamente configurar a série Le Madonne.

A índole expressiva adotada é lacônica. Não mais uma mulher santa, virgem! Agora, mulheres trans — que conservam, por determinações próprias, seus genitais masculinos. Não mais um menino santo, salvador! Aqui, um boneco negro de brinquedo — que por sua materialidade inanimada torna-se uma existência falseada.

Como, talvez, pudesse pensar:

Se o caráter imutável do sexo é contestado, talvez esse construto chamado "sexo" seja tão culturalmente construído quanto o gênero; de fato, talvez já tenha sido sempre gênero, com a consequência de que a distinção entre sexo e gênero não é, de modo algum, uma distinção (Butler, 1990:ii).

Contudo, o artista mantém as concepções da maneira moderna de representação do tema: Le Madonne trans, ao tempo que transgridem, insistem no coroamento ou entronamento da virgem, enaltecendo o seu santo sentimento de piedade. E, assim como as pinturas clássicas, recolhem o filho ao colo — em mútua veneração (Fgura 4).

Le Madonne, contrariando aquilo que em origem aconteceu com o artista na relação mãe-filho, aceitam o filho! Mesmo que ele seja excêntrico ao mundo das normas sociais. Le Madonne de Carlos Negrini estão dispostas à uma devoção pessoal, em ambiência particular. Tornam-se, em tácito significado, ícones devocionais privados.

 

3. Procedimentos e semioses

Le Madonne é uma proposta de work in progress. Uma experiência criativa que exigiu, da gênese criativa à pesquisa acadêmica, a construção de um território referencial. A saber:

A partir do estudo de aproximadamente mil obras de Madonnas de diversos pintores, pesquisas em sites de museus do mundo todo e principalmente da Itália, foram selecionadas dezenove pinturas e uma gravura […] sendo os fatores de seleção a composição, gestualidade, iluminação da cena, vestimentas e o diálogo direto e indireto com a proposta do trabalho (Negrini, 2017: 48).

Ao elaborar a série fotográfica, as mulheres trans retratadas (Amanda Marfree e Brenda Oliver) não são os sujeitos que fingirão ser outros, em pose para a foto, mas o próprio artista-fotógrafo que age no corpo-cenário do referente, dissimulando-o (Figura 4, Figura 5).

 

 

 

 

Carlos Negrini acredita que a fotografia nos revela tanto sobre o ponto de vista de quem fotografa quanto acerca do objeto a ser fotografado. E considera que o fotógrafo deva ser um sujeito único — que traz sua visão de um mundo particular e inteiramente diferente.

Na série Le Madonne a fotografia não se limita apenas à tomada da imagens advindas do instante fotográfico: os instantes de pré e pós produçãosão elevados à extrema potência procedimental.

O arco criativo-produtivo compreendeu todas as etapas de configuração das cenas. Na dimensão inanimada: definição dos cenários; escolha das indumentárias; preparação dos adereços; qualificação da luz. Na dimensão animada: a maquiagem; as posturas; os gestos; as expressões faciais — e o boneco. Tudo, para construir uma realidade e criar o momento único e ilusório de captação da imagem. Tudo, para trazer para dentro da cena uma travesti ou uma transexual feminina elevada ao máximo significado santo — mantendo a iconografia cristã. Imagens que representam um imaginário utópico, na ascensão de corpos (e sujeitos) deslocados da completa repulsa e marginalidade imposta pela sociedade para o status de respeito e mérito, por suas lutas pela existência, visibilidade e liberdade de expressão.

 

Conclusão

O depoimento autorreferente subjaz a série Le Madonne, dando oportunidade para o fluir de memórias e subjetividades. A série, ao produzir marcas de identificação e reinvenções artísticas, rompeu fronteiras entre sujeitos e sociedade e assumiu uma natureza expressiva que transita do íntimo para o universal.

Hoje, Carlos Alberto Negrini vive uma estável relação homoafetiva e é pai adotivo de uma adorável menina. Portanto, psico e socialmente autorizado à trangressão de padrões — comportamentais e artísticos.

Considero, ainda, importante informar que a Dissertação de Mestrado defendida no PPG-EAHC/UPM foi por mim orientada. No contexto da Linha de Pesquisa Linguagens e Tecnologias, referida dissertação investiu na área de pesquisa em artes, no campo dos processos e procedimentos artísticos — tornando-se, desde então, referência metodológica para outros pesquisadores.

 

Referências

Butler, Judith (1990) Gender Trouble: feminism and the subversion of identity. London: Routledge. ISBN 0-415-38955-0        [ Links ]

Mello, Regina Lara Silveira; Rizolli, Marcos; Stori, Norberto (Orgs.) (2017) Arte e Linguagens Contemporâneas. São Paulo: Uva Limão. ISBN: 978-85-93072-08-6        [ Links ]

Merleau-Ponty (2011) Fenomenologia da Percepção. São Paulo: WMF Martins Fontes. ISBN 978-85-78271-16-9        [ Links ]

Negrini, Carlos Alberto (2017) Um corpo como campo de batalha: resistências contemporâneas. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Programa de PósGraduação em Educação, Arte e História da Cultura — Universidade Presbiteriana Mackenzie.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido a 03 de janeiro de 2019 e aprovado a 21 janeiro de 2019

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: marcos.rizolli@mackenzie.br (Marcos Rizolli)

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