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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.27 Lisboa Sept. 2019  Epub Sep 30, 2019

 

Artigos originais

Jorge Macchi me despertou

Jorge Macchi woke me up

Lúcia Bergamaschi Costa Weymar1  *

11 Universidade Federal de Pelotas (UFPEL); Centro de Artes (CA); Colegiado dos Cursos de Design. Rua Alberto Rosa, 62, Centro, 96010-770 - Pelotas, RS, Brasil.


Resumo:

O presente artigo objetiva divulgar parte do trabalho do artista argentino Jorge Macchi através do olhar cartográfico de uma professora de design brasileira cuja trajetória artística foi interrompida e hoje procura se despertar. As obras de Macchi com foco nos mapas de países ou lugares, temática recorrente em seu portfólio, são aqui divulgadas e organizadas em função de categorias como tensão, equilíbrio e relação ciência/arte.

Palavras chave: Jorge Macchi; cartografia em arte; design de mapas

Abstract:

This article aims to divulge some of the work of the Argentine artist Jorge Macchi through the cartographic view of a Brazilian design teacher whose artistic trajectory was interrupted and today seeks to wake up. Macchi's works focusing on the maps of countries or places, recurrent theme in his portfolio, are here disclosed and organized according the categories such as tension, balance and relationship science/art.

Keywords: Jorge Macchi; cartography in art; design of maps

Introdução

O objetivo deste artigo é divulgar o trabalho cartográfico do artista argentino Jorge Macchi (1963) e não, como o título sugere, o sentido que suas obras ligadas à cartografia produziram em mim. Escrever sobre Macchi prescinde de qualquer outro criador. Nascido em Buenos Aires, onde vive e trabalha, lá cursou a Escuela de Bellas Artes; recebeu bolsa da Fundação Guggenheim, participou de residências artísticas na Holanda, França, Itália e Reino Unido e expôs nas Bienais de São Paulo, Veneza, Istambul, Cuba e do Mercosul.

O resgate de Macchi atualmente faz toda diferença em minha vida acadêmica, e justifico: quando estudante descobri na disciplina Artes Gráficas o possível da arte, e isso me confortou. Projetei um escaravelho como marca de uma empresa de turismo e o decalquei sobre o desenho de um mapa do Nilo; esse cartaz deflagrou minha primeira e única exposição individual na qual pintei mapas gigantes de cidades articulados a pequenos símbolos de identidade. Entretanto, como o embate entre subjetividade e objetividade talvez seja a grande divisa da minha vida, depois de formada adentrei no campo da prática e da teoria do que então passou a se denominar design. E a arte ficou para trás, adormecida.

Divulgar o trabalho de Macchi, para além de justificativas pessoais, fundamenta-se pela criatividade e improvisação associadas, e não opostas, ao rigor, característica seminal que observo no artista e tema relevante ao Congresso. Para atingir a intenção alegada estruturo o desenvolvimento do presente texto em três partes nas quais, primeiramente, apresento Macchi do modo como sua obra foi a mim apresentada, ou seja, presencialmente; na sequência, recupero algumas análises de seu trabalho a partir do olhar de dois ensaístas e, finalmente, organizo algumas de suas obras a partir das categorias tensão, equilíbrio e relação ciência e arte, advindas daquela associação entre criatividade e rigor vislumbrada no artista.

1. Macchi ao vivo

Quase vinte anos depois, em 2007, uma exposição individual de Jorge Macchi no Santander Cultural, em Porto Alegre, RS, rememorou o que eu havia deixado pra trás e passei a acompanhar seu trabalho, à distância. A obra Amsterdam (Figura 1), mapa realizado com alfinetes sobre madeira, causou em mim um tamanho impacto, apesar da delicadeza de seus materiais, que decido apresentá-la primeiramente.

Fonte: http://www.jorgemacchi.com/en/works/98/amsterdam

Figura 1 Amsterdam, 2004. 

Uma década depois, em duas visitas ao Instituto Inhotim, um enorme museu a céu aberto que apresenta "um dos mais relevantes acervos de arte contemporânea do mundo" (Inhotim,s/d) - e localizado na cidade brasileira de Brumadinho, em Minas Gerais - , pude ver e experimentar Piscina (Figura 2). A obra, site-specific, é uma instalação, e também piscina em funcionamento, construída em concreto branco, pedra e água, e realizada escultoricamente a partir de um desenho que o artista fez de uma caderneta de endereço com índice alfabético.

Fonte: http://www.inhotim.org.br/inhotim/arte-contemporanea/obras/piscina/

Figura 2 Piscina, 2009, fotografia de Pedro Motta 

Depois dessas experiências ao vivo passei a acompanhar seu trabalho artístico, sobretudo e infelizmente, à distância, seja através da observação de suas obras online seja pela leitura de textos sobre elas.

2. Macchi à distância

Macchi é um cartógrafo cuja obra desafia categorizações e emerge complexa, propondo múltiplos caminhos. O artista investe tanto na qualidade conceitual dos materiais ao fazer trabalhos ligados à informação, em jogos semânticos com nomes e palavras, a partir de jornais e mapas de cidades, de metrô, etc., quanto na improvisação e no rigor. O rigor é, então, percebido (Pedrosa, 2011, tradução minha).

Jorge Macchi é um cartógrafo /flâneur cuja obra desafia categorizações e emerge complexa, propondo múltiplos caminhos. O artista usa a cidade e o cotidiano como elementos para suas obras e, nelas, música e escrita interagem bem como investe na qualidade conceitual dos materiais fazendo trabalhos ligados à informação a partir de jornais e mapas de cidades, de metrô, etc., em jogos semânticos com nomes e palavras. Importa atentar, igualmente, à improvisação e ao rigor característicos de seus trabalhos. Como um estatístico improvisa ao usar aleatoriamente a chance para compor suas confiáveis representações e, na contramão, usa a grade, errante, no seu fazer detalhado.O rigor é, então, constatado (Pedrosa, 2011, tradução minha).

Impressiona a multiplicidade de seu trabalho em uma rápida visita ao seu site. Pinturas, vídeos e desenhos estão abrigados em categorias com tais nomes; porém, instalações, esculturas, colagens, tapetes, livros de artista e sites specifics confundem-me a ponto de eu desistir de apresentá-los nas possíveis categorizações. E decido, tal qual Macchi, percorrer seu site enquanto cartógrafa/flâneuse, e coletar, dele, algumas obras que converjem com minhas pesquisas teóricas atuais e com minhas antigas práticas em arte e em design, como os mapas. Recorrentes em sua trajetória, os mapas revelam o interesse do viajante Macchi (viveu durante mais de uma década em países estrangeiros)

por examinar, analisar, dissecar e subverter sistemas de representação de dados. O mapa aparece sobretudo em recortes, colagens e instalações que fazem referência ao mapa múndi, a cidades e a acidentes geográficos (Moura, 2011).

3. Macchi: tensão, equilíbrio, ciência e arte

A atividade projetual de Macchi, de certo modo perpassada por Pedrosa e Moura, é inconstestável como podemos perceber no guia turístico Buenos Aires Tour (Figura 3), um livro-objeto que nunca esteve em minhas mãos, mas sempre em meu imaginário. Em minha avaliação é uma obra completa pois contempla artes visuais, design, música, literatura, artes gráficas, escultura, fotografias e reproduções.

Fonte: http://www.radarconsultoria.com/blog/2012/03/ricardo-macchi-e-edgardo-rudnitzky-no-hunter-college-em-ny/

Figura 3 Detalhe do vidro quebrado em Buenos Aires Tour, 2004. 

A partir da apresentação da obra Buenos Aires Tour passo a traduzir descrições extraídas do site oficial http://www.jorgemacchi.com/es/obras , realizadas pelo próprio artista, e reescritas por mim (afinal, a análise do seu trabalho não prescinde do meu olhar cartográfico enquanto pesquisadora e designer). Publicado pela Editorial Turner em 2004, com dimensões de 15,5 x 21,5 x 6,5 cm, o livro consta de oito itinerários que reproduzem uma trama de linhas originadas a partir de um vidro quebrado sobre o mapa da capital argentina. Dentro desses itinerários quarenta e seis pontos de interesse são escolhidos e um guia apresenta fotografias de Jorge Macchi, sons de Edgardo Rudnitzky e textos de Maria Negroni sobre tais pontos. Considero uma obra completa pois o livro contem esse guia, um mapa com os itinerários, um CD-ROM com os materiais encontrados e que estabelecem links entre diferentes pontos da cidade, cartões-postais de fotografias do bairro Recoleta e de objetos recolhidos durante os trajetos, uma prancha de selos com a reprodução de uma capa de um livro achado em um dos pontos e fac símiles das reproduções de um notebook e de um missal com anotações, também encontrados (Macchi, 2012, tradução minha).

Na qualidade de cartógrafa/flâneuse (e com meu olhar agora ampliado através das reflexões de outros autores e da caminhada improvisada e ao mesmo tempo rigorosa por Buenos Aires Tour) percorro o site de Macchi e crio novos itinerários. E, de súbito, percebo o quanto seu trabalho projetual e cartográfico nos ensina sobre a tensão e o equilíbrio que existem na relação ciência e arte.

3.1 Tensão

Em American Dream (Figura 4), um enorme óleo sobre tela no tamanho 170 x 300 cm destaca a América em um mapa múndi através de um jogo de luzes poético e político. E em Lilliput (Figura 5), uma colagem de 130 x 180 cm na qual recortes de países que formavam um planisfério, são jogados de uma certa altura e caem aleatoriamente o que afeta a posição, a natureza dos países bem como sua escala em representação (Macchi, 2012, tradução minha).

Fonte: http://www.jorgemacchi.com/en/works/465/american-dream

Figura 4 American dream, 2011. 

Fonte: http://www.jorgemacchi.com/en/works/68/liliput

Figura 5 Liliput, 2007. 

3.2 Equilíbrio

Em La ciudad luz (Figura 6), obra realizada com lâmpada, mesa, mapa, impressão digital sobre papel nas dimensões 250 x 200 x 150 cm, um mapa de Paris encontra-se sobre uma mesa e sua sombra no chão, dada por uma lâmpada que projeta luz sobre a mesa, é ocupada por uma ampliação do mapa original. As projeções do objeto e da sombra se confundem (Macchi, 2012, tradução minha). E em Blue planet (Figura 7), um desenho sobre papel de 30 x 30 cm, com imagens também apropriadas do universo gráfico como inúmeras outras de Macchi, porém alteradas para a construção de um planeta Terra coberto por água e cheio de água azul uma vez que os oceanos, ampliados, misturam-se e os continentes, reduzem-se.

Fonte: http://www.jorgemacchi.com/es/obras/63/la-ciudad-luz

Figura 6 La ciudad luz, 2007. 

Fonte: http://www.jorgemacchi.com/en/works/109/blue-planet

Figura 7 Blue Planet, 2003. 

3.3 Relação ciência e arte

Em "Sobre o rigor da ciência" Borges (1999), igualmente argentino e igualmente Jorge, escreve com ironia

…Naquele Império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados não foram satisfatórios e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Afeitas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas. (Suárez Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quarto, cap. XLV, Lérida, 1658.)

Os mapas da ciência são representação e não realidade, e eles podem somente trazer indicações do que seria a coisa maior, mas nunca podem ser igual a ela. O mapa descrito pelo escritor Jorge deixa de ser, assim, uma representação e passa a ser inútil. Uma não realidade. Em ciência, só podemos ter uma fração, um fragmento da realidade; não podemos tê-la inteira.

Em arte, e em todas as outras formas de modelação do mundo, também não. Em Island (Figura 8), um óleo sobre tela de 200 x 200 cm do artista Jorge, a pintura sugere uma improvisada peça de um quebra-cabeça à semelhança de cada peça da sua obra Diáspora (Figura 9), uma série de quarenta e oito colagens, de 40 x 27,2 cm cada, correspondentes a peças de um quebra-cabeça. Cada colagem tem um esboço rigoroso do jogo inteiro e é numerada, assinada e contem apenas uma peça colocada no lugar que lhe é próprio. Tais colagens foram vendidas separadamente para coleções ao redor do mundo a um preço baixo relativo ao valor do trabalho total dividido por quarenta e oito. "A distribuição global causa uma diáspora, a destruição da imagem e a impossibilidade de sua reconstrução" (Macchi, 2012, tradução minha).

Fonte: http://www.jorgemacchi.com/es/obras/477/island

Figura 8 Island, 2010. 

Fonte: http://www.jorgemacchi.com/es/obras/511/diaspora

Figura 9 Diáspora, 2016, fotografia de Edouard Fraipont. 

Enfim, e na continuação, 32 morceau d'eau (Figura 10) é um guache sobre papel cujo conjunto completo tem dimensões variáveis. Na obra, o curso do Sena em Paris é decomposto em pedaços determinados pelas pontes que o atravessam. Cada uma das formas que resulta da decomposição é pintada em guache azul sobre uma folha branca de 24 x 32 cm e cada folha é anexada à parede e coberta por vidro; a ordem das peças é respeitada e sua orientação, não. Como se sabe, o Sena se bifurca para abarcar duas ilhas, e então a linha dos pedaços da obra também se bifurca e, ao término das ilhas, volta a ser uma única linha (Macchi, 2012, tradução minha).

Fonte: http://www.jorgemacchi.com/es/obras/19/32-morceaux-deau

Figura 10 32 morceaux d’eau, 1994. 

Conclusão

Finalizo com o Sena em Paris porque em 1989, cinco anos antes de Macchi realizar 32 morceaux d'eau, naquela única exposição individual sobre mapas de cidades, uma das obras apresentadas - que coincidentemente está comigo - representava o Sena (em pedaços!). Sobre eles desenhei suas pontes e inseri caracteres, bifurquei suas águas e abarquei suas ilhas. Depois envidracei cada uma daquelas peças. Não cabe aqui expô-lo, mas cabe, sim, mostrar minha ambiguidade: sinto-me ressentida e ao mesmo tempo esperançosa.

A breve pesquisa realizada sobre uma pequena parte da espetacular e prolífica arte de Jorge Macchi buscou divulgar algumas de suas obras cartográficas a partir da constatação de que, nelas, criatividade e o rigor não se excluem; buscou, igualmente, aceitar o desafio proposto pelo Congresso de debater arte latino americana com a comunidade artística de língua ibérica. Entretando, por detrás de todas as reflexões sempre esteve o meu olhar, a minha admiração, o meu desejo reprimido e a minha potência adormecida.

Contrariamente aos meus processos anteriores iniciei o processo de escrita desse artigo pelo título; resgatei algumas memórias e, a seguir, pesquisei dados sobre o artista. Ao finalizar, para minha surpresa, encontro as seguintes palavras de Macchi (apud Molina, 2016, grifo meu): "Gostaria de ser percebido como um criador de imagens e gostaria que elas despertassem ou provocassem ideias".

Sua arte, objetiva e subjetiva, despertou minha arte. Gracias Jorge.

Referências

Borges, Jorge Luis. (1999) Obras Completas: Volume III (1952-1972). São Paulo: Editora Globo. [ Links ]

Inhotim. (s/d) [Site oficial]. Disponível em: http://www.inhotim.org.br/inhotim/sobre/historicoLinks ]

Macchi, Jorge. (s/d) Jorge Macchi. Disponível em URL: http://www.jorgemacchi.comLinks ]

Molina, Camila. (2016) O artista Jorge Macchi torna visíveis os paradoxos. Disponível em URL: https://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,jorge-macchi-e-a-arte-de-tornar-visiveis-os-paradoxos,10000055199Links ]

Moura, Rodrigo.(2011) Jorge Macchi: Press Release. Disponível em: http://www.galerialuisastrina.com.br/wp-content/pdfs/exposicoes/jorge-macchi2011_pt-br.pdf?nocache=1 Acesso em: 23/12/17Links ]

Pedrosa, Adriano.(2011) Jorge Macchi and the Argentine School of Cartography. Disponível em: http://www.jorgemacchi.com/en/textos/298/jorge-macchi-and-argentine-school-cartography, Acesso 30/11/17. [ Links ]

Recebido: 26 de Dezembro de 2018; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

Endereço para correspondência Correio eletrónico: luciaweymar@gmail.com (Lúcia Weymar)

*

Brasil, professora, designer.

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