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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.27 Lisboa Sept. 2019  Epub Sep 30, 2019

 

Artigos originais

Improvisação e drone: uma leitura metodológica de David Maranha

Improvisation and drone: a methodological reading of David Maranha

Bruno Trochmann1  *

Luisa Paraguai2  *, Docente e Pesquisadora

1 Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas), Programa de Pós-Graduação em Linguagens, Midia e Arte (LIMIAR). Rua Professor Doutor Euryclides de Jesus Zerbini, 1516, Parque Rural Fazenda Santa Cândida, 13087-571, Campinas, SP, Brasil.

2 Docente e Pesquisadora na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas), Faculdade de Artes Visuais, Centro de Linguagem e Comunicação (CLC), Programa de Pós-Graduação em Linguagens, Midia e Arte (LIMIAR). Rua Professor Doutor Euryclides de Jesus Zerbini, 1516, Parque Rural Fazenda Santa Cândida, 13087-571, Campinas, SP, Brasil.


Resumo:

Este artigo articula as obras "Âncora" (2016) e "Marches of the new world" (2007) de David Maranha, com a improvisação emocional do Free jazz negro e o drone incendiário da Dream music. Ambas perspectivas estão comprometidas com o rompimento das tradições eurocêntricas da música, e neste sentido, o texto vale-se de Flynt (1982) como abordagem metodológica teórico-prática, para inferir os modos de apropriação das técnicas e tecnologias sonoras do artista, enquanto princípios operativos do processo de criação.

Palavras chave: processo de criação; música experimental; improvisação; drone.

Abstract:

This article articulates the David Maranha's works, "Âncora" (2016) and "Marches of the new world" (2007), with the emotional improvisation of Free black jazz and the incendiary drone of Dream music. Both perspectives are committed to the disruption of Eurocentric traditions of music, and in this sense, the text draws on Flynt (1982) as a theoretical-practical methodological approach, to infer the ways of appropriation of the artist's sound techniques and technologies, as practical principles of the creative process.

Keywords: creative process; experimental music; improvisation; drone.

Introdução

Este artigo propõe um encontro das escolhas sonoras e projetuais de David Maranha, no disco "Âncora" (2016) (Figura 1), do seu grupo com Alex Zhang Hungtai e Gabriel Ferrandini, e no disco "Marches of the new world" (2007) (Figura 2), com o negro de John Coltrane e o drone de Tony Conrad David.

Fonte: https://f4.bcbits.com/img/a1205140649_10.jpg

Figura 1 “Âncora” (2016)  

Fonte: http://grainofsound.org/project/david-maranha-marches-of-the-new-world-digital-release/7

Figura 2 Capa do disco “Marches of the new world” (2007) 

Maranha nasceu na Figueira da Foz, Portugal, em 1969, e em 1986, começa a desenvolver seu trabalho como músico solo e desde então tem colaborado com inúmeros músicos portugueses e internacionais: "Curia" (com Manuel Mota, Margarida Garcia e Afonso Simões) e "Organ Eye" (com Patrícia Machás, Jasmine Guffond e Torben Tilly). Em 1989 criou o "Osso Exótico" com André Maranha, António Forte e Bernardo Devlin, estabelecendo-se na cena experimental mundial. A produção de David Maranha nos parece evocar um lugar híbrido, constituído pela prática orgânica e exploratória do som, na qual se assume o conceito de improvisação como uma chave de leitura, ainda que nenhuma das articulações propostas por este texto - free jazz e drone - seja explorada pelo artista de forma purista ou excessivamente formal.

Pensar a improvisação no cenário pós-Cage da música de vanguarda dos anos 60, a partir dos "detritos da civilização" (Flynt, 1982), é negar ambos: a antiga figura do compositor e o discurso de Cage (quanto aos seus métodos aleatórios), para a produção sonora. Vale pontuar que tanto existem tradições improvisatórias em diversas culturas musicais, bem como na produção contemporânea com a busca de liberdade de formas preconcebidas (como a improvisação livre do grupo britânico AMM).

Devemos observar cuidadosamente como Cage faz referencia às tradições asiáticas para tecer seu programa - um programa que os asiáticos tradicionais não teriam reconhecido. Em 1946, em uma de suas publicações mais importantes, Cage comparou a música hindustani com Shoenberg: alegando que ambas estavam rigidamente estruturadas. O efeito dessa interpretação foi relacionar a música hindustani à primazia do sistema organizacional - desconsiderando totalmente a experiência do ouvinte (ou do improvisador) (Flynt apud Flemming & Duckworth, 1996:45).

Assim, também Cage nega o jazz, como Stockhausen, enquanto uma forma musical séria, tanto pela sua tradição idiomática, como pelo compasso constante, e não o reconhece como expressão do indivíduo dentro de uma tradição cultural viva, por isso, muito distante da sua abordagem laboratorial do som. Novamente citando Flynt, podemos dizer que Cage estava alinhado com a leitura dominante sobre a narrativa musicológica ocidental,

Há uma compreensão, mais forte nos departamentos de musicologia, sobre a Europa ser uma civilização única que tem uma música de arte que de alguma forma não é étnica (…) o que é chamado musicologia era uma ideologia da produção musical Européia. É por isso que existe a chamada disciplina acadêmica. (…) Eles assumiram a posição de que a produção artística Européia era a música de todas as músicas (…) Em outras palavras, essa é a única música que é feita corretamente pelas regras corretas (Flynt, apud Chen, 2008).

1. "Âncora" (2016): improvisação emocional

Historicamente, o free jazz estabelece-se como uma experiência de ruptura sistemática com a arte ocidental europeia a partir de uma expressão cultural de origem popular, o jazz. De diferentes formas, artistas como Ornette Coleman, Jonh Coltrane, Sun Ra e Albert Ayler romperam com as estruturas que definem a música como som organizado para encontrar outras formas e lógicas de expressão, calcadas na materialidade sonora, sem no entanto afastarem-se da linguagem. Para Flynt (2013), Coltrane e Coleman exploraram novas formas de expressão sem o aparato institucional da vanguarda branca, desenvolvendo-se portanto fora do discurso eurocêntrico.

Ocasionalmente chamado de Fire Music, o free jazz diferencia-se da vanguarda também por uma exploração formal, baseada na expressão emocional do indivíduo. Neste sentido promove um embate ao jazz como prática autônoma, pois expressa as emoções da comunidade que a constitui em um contexto de resistência à opressão racial. Diferentemente de outros esforços eurocêntricos de uma vanguarda politicamente ativa, o free jazz já nasce em um lugar de oposição política.

"Âncora" (2016), o disco gravado por David Maranha, Gabriel Ferrandini e Alex Zhang Huangtai parece-nos evocar a fire music dos anos 60 ao explorarem uma força emocional semelhante pela/na improvisação. A expressão sonora não apresenta compromisso com uma linguagem tradicional, nem a pretensão de estabelecer novos precedentes formais. Maranha e Huangtai tocam órgão e sax tenor e compartilham com o baterista Ferrandini instrumentos de percussão - peças de bateria e címbalos, constituindo uma seção rítmica. De forma semelhante, "Arkestra" de Sun Ra e "Art Ensemble" de Chicago dividiram entre os membros inúmeros instrumentos não ocidentais, que expandiram progressivamente da condição de ritmo à textura na sonoridade.

Em "Âncora", as percussões constroem mais pulso do que ritmo, desdobrando-se em estruturas, que garantem textura e energia e constituem um fluxo intenso. O órgão de Maranha estende o drone no seu reconhecido idioma, assim como o sax naïf de Huangtai, que não parece obedecer nenhuma base idiomática para o instrumento. O som é como um barco ancorado no fluxo emocional dos artistas, no espírito de entrega e estático da fire music. Percebe-se, não um pastiche da , mas uma abordagem elaborada a partir de força emocional e humana da expressão do indivíduo.

Da mesma forma, a implosão das escalas e acordes em pura matéria sonora e energia de John Coltrane não emerge de um formalismo, mas de uma prática exploratória pessoal intensa, quase religiosa. Coltrane elabora sua busca espiritual no fazer artístico para além de um atavismo pré-industrial, assumindo um lugar de investigação formal que não se compromete com ideais de beleza anteriores e, principalmente, ocidentais. O álbum "Ascension" (1965) de John Coltrane traria então referência a essa relação. Uma improvisação coletiva de 11 instrumentos sobre um tema simples, mas em constante movimento, que Litweiler (1990) descreve como,

"Ascension" é um projeto massivo em todos os aspectos. (…) A subestrutura modal e o material temático são pouco importantes em face das massas de jogadores reunindo linhas simultâneas, separando breves solos e reunindo-se em lamentações pesadas. Apesar da turbulência da música, a multidão de vozes permanece fixa em seu peso: Ascensões soam ao vivo em uma centrífuga de fogo de trinta e oito minutos (Litweiler, 1990:100).

2. "Marches of the New World" (2007): drone incendiário

A improvisação coletiva e energética de "Ascension" irá estabelecer referência para outra forma distinta de improvisação: o drone da "Dream music" desenvolvida por Tony Conrad e a banda Dream Synticate (grupo formado por La Monte Young, Marian Zazeela, Tony Conrad, John Cale e Angus Macclise). Assim como o free jazz, o improviso coletivo da Dream music estabelece um lugar fora da tradição musical eurocêntrica. Da mesma forma, que "Ascension" de Coltrane reduz a estrutura da música à voz dos indivíduos, a Dream music condensa a voz de cada indivíduo a uma ou duas frequências, eliminando assim qualquer referência idiomática. Dessa forma, o drone estabelece-se como uma nova expressão sintática, escapando dos paradigmas da arte europeia e baseada na experiência física e matemática simples. O grupo decidia-se por uma tônica, uma nota base e cada membro deveria sustentar esta ou outra no seu instrumento pelo período de tempo da performance. A afinação justa, tons suspensos e o volume massivo das apresentações colaboravam para criar um ambiente sonoro imersivo; as relações harmônicas entre as notas estão evidentes, conduzindo a uma percepção física das menores variações nos tons. Então, tomando o som como uma experiência física, cabe aos performers um controle e atenção muito especial, enquanto uma disciplina frente ao fazer. Para Conrad (1997), a dream music coloca todos, artistas e público, na mesma disciplina do ouvir, pois a interpretação do performer depende da fisicalidade do som; pretende-se um espaço de democracia radical, de construção coletiva. A disciplina de Conrad é tudo menos ascética, é o esforço de estabelecer uma comunidade sem hierarquias, pela presença consciente no mundo. É uma prática improvisatória e aberta a todos.

A Fire Music e a Dream Music validam-se como práticas improvisatórias calcadas em atitudes críticas contra o poder e opressão social. A Fire Music desenvolve uma abordagem sonora baseada na expressão cultural do indivíduo, a partir de uma comunidade subjugada em um contexto de opressão racial. Enquanto a Dream Music surge da tentativa insurrecional de derrubar as autoridades e o elitismo sobre a música, desenvolvendo uma prática sonora colaborativa e anti-hierárquica, negando toda a narrativa eurocêntrica da música e da vanguarda. Não buscando recriar o fogo da "Ascension", de Coltrane, ou mesmo da música indiana que tanto fascinava Conrad como La Monte, a Dream Music desenvolve o drone, que se eleva de um lugar novo, utópico, em direção à democracia radical. Neste processo, evitaram-se o colonialismo cultural e o daltonismo racial, que apresentava o jazz como uma expressão apolítica e universal. "Marches of the New World" (2007) está distante de um registro de mera exploração formal do drone, tem a dureza e agressividade de um disco de rock: o prazer do volume e do ruído. Por exemplo a faixa "Oil Crows" parece que poderia surgir a partir de algum bootleg particularmente inspirado do "Velvet Underground". O drone aqui é incendiário. Sem articulação direta com a disciplina auscultatória das relações entre as frequências presente na Dream music, Maranha desenvolve o drone de forma orgânica, mais próxima talvez ao que Conrad (apud Beaumont-Thomas, 2016) chama de "a primeira drone música de uma não-gaita de foles ocidental". Aproxima-se de sua origem não-eurocêntrica: estruturas da música étnica, da vida comunitária e de eventos com dança e ritos, distantes assim da disciplina ascética de Young e da disciplina democrática de Conrad. Como diz Boon (2003) "do ponto de vista dos performers, a criação de drones, mesmo quando sob a instruções de outro, é sentida como uma experiência coletiva".

O drone, como as drogas ou o erotismo, não pode ser facilmente assimilado a um lado da divisão pelo qual o modernismo ou a vanguarda tentou se separar do mundo da tradição. Como os psicodélicos, o drone, saindo do coração do moderno, e seu mundo de máquinas (…) em um campo aberto de atividade que está sempre em diálogo com culturas "arcaicas" ou tradicionais (Boon, 2003).

"Marches of the New World" (2007) é exatamente isso, um registro de drones executados a partir das escolhas de notas e frequências de Maranha, mas que se pretende como uma experiência coletiva. Pode ser interpretado como um ponto intermediário entre a expressão livre e idiomática do free jazz negro e do drone construído da Dream music: um espaço para exploração sonora de grandes volumes e longas durações, uma abordagem orgânica.

Conclusão

A compreensão do free jazz e do drone como culturas musicais que afirmam um contra-discurso eurocêntrico da arte está articulada ao pensamento do filósofo e artista Henry Flynt e sua crítica à vanguarda branca. A partir do contato com a música de Coltrane, Pandit Prah Nath e da música popular negra (do blues ao rock), Flynt (1982) propõe a vanguarda como expressão fora da "Cultura Séria", da Arte Institucional e da narrativa modernista, que desagua em Cage. Para o autor, é fundamental a inversão do status quo entre cultura dominante e cultura dominada, enquanto apropriação das técnicas e tecnologias dos dominadores pelos povos e classes subjugados, como o free jazz e o rock negro de Bo Diddley e Chuck Berry. Ambas formas de expressão aliaram a exploração formal e a busca por refinamento formal de linguagem sonora, no contexto de luta política da comunidade negra nos Estados Unidos.

Assim, propõe-se a perspectiva teórico-prática crítica de Henry Flynt como um aparato metodológico, passível de reconhecer em um objeto artístico o quanto reproduz ou debate (ainda que formalmente) os mecanismos de colonialismo cultural da vanguarda, e neste sentido o quanto inventa enquanto operacionaliza a criação. Elencam-se enquanto princípios norteadores desta leitura: "a construção de uma expressão não-ocidental, explorada dentro de sua própria linguagem e tradição; a apropriação de técnicas (dispositivos) e tecnologias da vanguarda (formalismo, experimentalismo); e o posicionamento político (crítica e autocrítica) contrário ao colonialismo, racismo e imperialismo" (Trochmann, 2018:64). Então, fez-se pensar neste texto as obras de David Maranha para compreender suas operações enquanto um embate crítico de forças instituídas, assumindo sua criação pela exploração irrequieta de novos territórios sonoros.

Referências

Beaumont-Thomas, Ben (2016). "People thought we were on drugs - and we were!"… Tony Conrad, the great avant-garde adventurer. [Consult. 2019-01-02]. Disponível em URL: Disponível em URL: https://www.theguardian.com/music/2016/mar/22/people-thought-we-were-on-drugs-and-we-were-tony-conrad-the-great-avant-garde-adventurer . [ Links ]

Boon, Marcus (2003). The Eternal Drone. [Consult. 2019-01-02] Disponível em URL: Disponível em URL: http://marcusboon.com/node/46 . [ Links ]

Chen, Che (2008). About Henry Flynt. [Consult. 2019-01-02] Disponível em URL: Disponível em URL: http://www.henryflynt.org/overviews/henryflynt_new.htm . [ Links ]

Conrad, Tony (1997). Early Minimalism. Volume one, CD-Rom. Milwaukee, Wisconsin: Table of the elements. [ Links ]

Flemming, Richard; Duckworth, William (1996). Sound and Light: La Monte Young, Marian Zazeela. Vancouver, Canada: Fairleigh Dickinson University Press. ISBN: 978-0-83875-346-0. [ Links ]

Flynt, Henry (1982) The Meaning of My Avant-Garde Hillbilly and Blues Music. [Consult. 2019-01-02] Disponível em URL: Disponível em URL: http://www.henryflynt.org/aesthetics/meaning_of_my_music.htm . [ Links ]

Litweiler, John (1990). The Freedom Principle: Jazz after 1958. Cambridge, MA: Da Capo Press. ISBN: 978-0-30680-377-2. [ Links ]

Trochmann, Bruno (2018). Drone, Rock, Revolução: teoria crítica, prática crítica a partir de Henry Flynt. Dissertação de Mestrado em Linguagens, Mídia e Arte. Campinas, Brasil: Pontifícia Universidade Católica de Campinas. [ Links ]

*Brasil, artista visual.

Recebido: 02 de Janeiro de 2019; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

Endereço para correspondência Correio eletrónico: bruno.t2@puc-campinas.edu.br (Bruno Trochmann)

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