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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.27 Lisboa Sept. 2019  Epub Sep 30, 2019

 

Artigos originais

Letícia Lampert e a paisagem afetiva urbana: estratégias do fotográfico diante do público e do privado

Letícia Lampert and the affective paisage urban: strategies of the photographic before the public and the private

Daniela Mendes Cidade1  *

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Faculdade de Arquitetura (FA), Departamento de Arquitetura Rua Sarmento Leite, 320, CEP 90050-170, Porto Alegre, RS, Brasil.


Resumo:

A análise do trabalho de Letícia Lampert tem como objetivo uma reflexão sobre paisagem e a transformação do espaço urbano, e estratégias do fotográfico diante do público e o privado. A fotografia aparece como reveladora de uma paisagem inédita porque escondida atrás de paredes, onde a alienação provocada pela insegurança provoca o isolamento na cidade. A obra transforma-se em olhar compartilhado, provocando ao espectador um efeito de vertigem e a sensação de viver uma experiência de imersão em um espaço privado.

Palavras chave: fotografia; publico; privado

Abstract:

The analysis of Known by sight: the city revealed through looks, windows and photographs of Letícia Lampert will aim to establish a reflection on landscape and the transformation of urban space focusing strategies of the photographic before the public and the private. Taking the photograph as revealing of an un precedented landscape because hidden behind walls The reading of the work becomes a kind of shared look, provoking the viewer with a vertigo effect and the sensation of living in a private space.

Keywords: photography; public; private

Introdução

Conhecidos de vista: a cidade revelada através de olhares, janelas e fotografias, trabalho de Letícia Lampert realizado em 2013, mostra o relato de moradores do centro histórico da cidade de Porto Alegre, e estabelece uma pesquisa sobre paisagem em uma reflexão sobre a constituição do espaço urbano, o público e o privado. O texto busca analisar o trabalho, e a maneira como ele transforma-se em espécie de olhar compartilhado, provocando ao espectador um efeito de vertigem e a sensação de viver uma experiência de imersão em um espaço privado, como um voyeur junto aos personagens que habitam as imagens.

Neste trabalho, a artista realiza projeções de imagens obtidas no interior de apartamentos escolhidos ao acaso nesta mesma região, ao mesmo tempo em que reproduz em áudio o depoimento de seus moradores, como um relato sobre as relações de vizinhança com outros moradores de apartamentos próximos (Figura 1 e Figura 2). Letícia Lampert partiu destas imagens projetadas para a elaboração de um livro de artista, desdobrando o conceito de relações de afetividade, de espaço privado em relação ao público, como mote para tratar de livro-labirinto e paisagem afetiva como conceitos operatórios (Figura 3). O objetivo é realizar uma reflexão sobre as transformações da cidade, de suas sombras, e da fotografia como instrumento de estranhamento e de conhecimento, e ressaltar a relação entre livro e arquitetura.

Foto da artista

Figura 1 Letícia Lampert. Conhecidos de vista. 2013. Fotograma do áudio visual. 

Foto da artista

Figura 2 Letícia Lampert. Conhecidos de vista. 2013. Fotograma do áudio visual. 

Foto da artista

Figura 3 Letícia Lampert. Conhecidos de vista. 2018. Livro de artista. 

Nesta série Conhecidos de vista, Lampert propõe um olhar sobre uma situação cada vez mais recorrente no contexto urbano contemporâneo: prédios com janelas próximas demais, vizinhos que não se conhecem formalmente, mas que acompanham de perto a vida do outro, mesmo que involuntariamente. Em uma pesquisa que baseou-se em uma amostra destes 40 apartamentos escolhidos em Porto Alegre, a artista captou imagens e gravação de áudio que direcionam a elaboração da proposta de discutir as relações nos espaços público e privado, desdobrando-se à pequena arquitetura de um livro de artista.

Buscando a janela como modelo de um projeto, este artigo evoca pesquisas anteriores da artista para encontrar continuidades e procedimentos diante da paisagem urbana, confrontar as tipologias, e convida a pensar sobre os espaços vazios e as ausências que se abrem na arquitetura, as estratificações da memória coletiva e as relações de proximidade. as mais evidentes e as mais dissimuladas. O objetivo é uma procura pelos lugares inconscientes, onde a imagem, o som e o enquadramento relatam as relações entre a arquitetura e o habitar na cidade, e os hábitos cotidianos de moradores de uma determinada região da cidade, além daquilo que estes escondem, como as surpresas que um ambiente em que uma parede fechada oculta. As imagens nos fazem pensar sobre as relações, a ausência, e os limites nos grandes centros contemporâneos. E sobre o formato impresso de um livro de artista onde em cada página encontramos caminhos que se bifurcam como em um labirinto urbano.

1. Adorar a alienação e o labirinto

Quem ganha e quem perde no isolamento que a cidade promove e é pelos seus próprios moradores cultivada? Esta é a pergunta que motivou a artista em sua pesquisa. O isolamento, buscado como proteção da ameaça silenciosa da violência na cidade de Porto Alegre, segundo Lampert, agravou-se nos últimos anos e alimentou o medo do outro,provocando um distanciamento cada vez mais opressor. A artista relata que escolheu fotografar durante o dia, onde "mais do que ver a imagem do vizinho em uma vitrine, vemos fragmentos enegrecidos pela sombra no interior da morada, que assim podem ser completados pela imaginação" (Lampert, 2013). O conceito da sombra e do oculto aparece aqui como um mistério, apesar da prioridade à luz, à iluminação em sua obra, e não ao seu contrário, como um negativo. Isso porque o reino das sombras talvez lembre um lado negativo, aquele das trevas, da melancolia. Já a luz, ou a iluminação, é associada a toda uma tradição da filosofia ocidental depois de Platão: século das luzes (o iluminismo, o conhecimento através das enciclopédias), luz da razão. A obscuridade ofusca a memória e a consciência.

O trabalho de Lampert recebeu o prêmio Pierre Verger de Fotografia no ano de 2013, da Fundação Cultural do Estado da Bahia, o que garantiu à artista um certo reconhecimento não apenas regional, mas mais amplo no Brasil. A artista relata que recebeu um convite para a publicação de partes de sua pesquisa no jornal Folha de São Paulo. Mas, para a surpresa da artista, não era na editoria de cultura do referido órgão de imprensa, mas no caderno de imóveis e de anúncios classificados, ao lado de uma matéria sobre os prós e os contras de viver em edifícios (Borguetti, 2018).

A ironia deste convite é que os grandes projetos arquitetônicos de moradias em uma metrópole como São Paulo são marcados por uma obcessão à segurança, onde os lugares do público e do privado são demarcados nestes arranha-céus que se apresentam cada vez mais frios e isolados pelo fato de os lugares serem reservados às classes sociais mas ricas. O contato frio e antiemocional, neutro, dirige-se ao tipo de habitante que se contenta em ficar em seu apartamento, dotado de toda uma tecnologia que acaba afastando as relações entre vizinhos. A auto-reclusão, nestas torres auto-suficientes, burguesas e hermeticamente fechadas em relação ao exterior, como bem salienta Lippolis (2016), seria uma tentativa de fugir aos perigos dos labirintos escuros de locais como o centro das cidade. E a sensação de inquietação que os grandes empreendi&&mentos imobiliários transmitem criariam um mal-estar e alienação, males aos quais se dirige o trabalho de Lampert. A artista destaca que sua principal questão seria como viver e se relacionar entre tantos olhares anônimos que a cidade nos aponta. Sobre estas sombras inicialmente negativas, a artista propõe uma espécie de vacina contra o isolamento social, paradigma da sociedade urbana atual, construindo um livro, uma construção que se desdobra. Em realidade, a artista não propõe a melhor maneira de habitar a cidade ou se relacionar com o vizinho, mas sim oferece uma nova possibilidade de agenciamentos através de um livro de artista.

O poeta japonês Tanisaki Junichirô (2001), em O Elogio das Sombras denuncia a violência das luzes de néon, que penetra na intimidade das pessoas, desrespeitando a esfera privada de cada um. O poeta mostra uma certa prevenção a tudo o que brilha, preferindo o jogo de sombra que deixa a nossa imaginação livre para atuar, e mostra as sutilezas do tempo, como a beleza do musgo que se deposita sobre as pedras polidas de um rio. E o tempo representa a espera, vigilância, reflexão, O poeta prefere então o jogo de sombra que deixa o nosso pensamento livre para imaginar, e cria condições à imaginação. Assim, o trabalho da artista provocaria uma revelação, como uma alegoria da caverna de Platão, metáfora que fundou a teoria ocidental do conhecimento, como nos conta Stoichita (1998). E uma proposta de ver a cidade como um labirinto, onde o livro de artista estabelece um jogo entre o público e o privado, a luz e a sombra.

Os textos antigos que falam da origem da pintura se referem á operação primitiva da pintura como a skiagrafia, ou adumbratio, ou seja: a escrita das sombras. Plínio, o Velho, descreve a história do nascimento da pintura pelas sombras: uma jovem chamada Dibutade teria se apaixonado por um soldado que estava prestes a partir para a guerra. Ela convidou, então, o apaixonado, a comparecer ao atelier de seu pai, que era um oleiro, e o desenhou, circunscrevendo a sombra do jovem projetada na parede. A partir do desenho, a moça pediu a seu pai para que ele executasse a obra.

O fato de o nascimento da pintura e da representação artística ocidental ter nascido nas sombras , em negativo, tem uma importância indiscutível. Quando a pintura nasceu, ela já fazia parte da dialética presença/ausência: presença da pintura, ausência do corpo. Ausência do corpo, presença da sombra, ou sua projeção. Uma espécie de ausência anunciada. Esta é uma via para se pensar no labirinto da cidade como um livro, uma arquitetura de luz e sombra onde o público e o privado convivem sem nenhum conflito.

2. O público, o privado e o livro de artista

Em uma paisagem urbana onde o superpovoamento coincide com o isolamento social, o edifício, construído para proteger a estabilidade e a segurança, teria como consequência o empobrecimento das relações pessoais e de vizinhança. Estes não lugares seriam a negação de toda uma dimensão humana, trazendo, como define Augé (2004) uma ideia de "contrário à utopia", uma distopia, com o esvaziamento dos centros históricos e outros testemunhos do passado cultural das cidades. Seriam estas as "sombras públicas" do isolamento característico de nossa época que, ao contrário das "sombras privadas" apresentadas inicialmente por Lapmert, provocariam a imaginação?

O conceito de público e privado construído a partir da antiguidade relaciona a casa como a esfera privada e a cidade como esfera pública. Para autores como Sennett (2014) e Arendt (2007), trata-se, na verdade, de um limite difuso. Conforme Sennett, a crescente transformação das relações socioculturais após a modernidade resultou na "erosão da vida pública" (Sennett, 2014:20) predominando a vida privada, uma ideia contrária ao crescimentos das cidades. "À medida que a cidade continuava a se encher de gente, as pessoas foram perdendo cada vez mais o contato funcional uma com as outras nas ruas" (Sennett, 2014:200).

Para Arendt (2007) a esfera pública como espaço comum, social e político, tem dois significados. Um significado de que tudo que vem a público pode ser divulgado, ser visto e ouvido por todos, portanto da ordem da aparência, e isso constitui a realidade. Porém, a autora salienta que a realidade que decorre do que podemos ver e escutar também produz pensamentos, paixões, forças da vida íntima que existem na incerteza e na obscuridade. Para sair da obscuridade de uma realidade interior é necessário desindividualizar, desprivatizar. Essa transformação pode se dar através da arte e da experiência estética. Quando falamos de algo que só pode ser experimentado na privacidade ou intimidade, trazendo para a esfera da realidade a presença de outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos, "garantindo-nos a realidade do mundo e de nós mesmos"(Arendt, 2007:62). O segundo sentido de público que Arendt nos traz é o próprio mundo como artefacto humano que pode separar ou estabelecer uma relação entre as pessoas. "A esfera púbica, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros […] O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a forca de mantê-las juntas, de relacioná-las uma às outras e de separá-las" (Arendt, 2007:62).

Conclusão

O trabalho de Lampert nos provoca pela relação utopia/distopia, como uma metáfora das relações de vizinhança na cidade, onde apesar da proximidade, tudo é cada vez mais impessoal. A fotografia e o livro de artista aparecem como reveladores de uma paisagem inédita porque utópica, escondida atrás de paredes. Em Conhecidos de vista o fenômeno da projeção como meio de apresentação das imagens, comparada com a apresentação de um livro de artista apresenta-se como um labirinto de desdobramentos entre o imaginário e a realidade na cidade contemporânea. Sombra e luz, pisos sobrepostos, paredes derrubadas.

Jorge Luiz Borges nos ensina que livro e labirinto podem ser considerados como um único objeto (Borges, 1988). A relação entre o livro de artista e a arquitetura desdobra-se no trabalho de Lampert, partindo de distopias, em uma reflexão onde podemos pressentir a ideia de que quando observamos uma certa falência dos ideais utópicos na arquitetura e na vida das cidades, uma das funções da arte é a de mostrar que poderemos combatê-la com um impulso utópico. Como a arquitetura labiríntica de um livro, onde se pode atravessar paredes e romper barreiras através da experiência estética.

Referências

Arendt, Hannah (2007) A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. ISBN: 978-85-218-0255-6. [ Links ]

Augé, Marc (2004) Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papiros. ISBN: 8530802918 [ Links ]

Borges, Jorge (1988) Obras Completas. Porto Alegre: Editora Globo. ISBN: 978-85250228778 [ Links ]

Borghetti, Lucas (2018) "Paisagem afetiva urbana" Jornal da Universidade. Porto Alegre: UFRGS, n.11: 10. [ Links ]

Lippolis, Leonardo (2016) Viagem aos confins da cidade. Lisboa: Antígona. ISBN: 978-972-608-272-9 [ Links ]

Sennett, Richard (2014) O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Record. ISBN: 8501400947 [ Links ]

Stoichita, Victor (1998) A short history of the shadow. Londres: Reaktion Books. ISBN: 1861890001 [ Links ]

Tanizaki, Junichiro (2001) Elogio da sombra. Lisboa: Relógio d'Agua. ISBN: 9727085210 [ Links ]

Recebido: 30 de Dezembro de 2018; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

Endereço para correspondência Correio eletrónico: daniela.cidade@ufrgs.br (Daniela Mendes Cidade)

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Brasil, artista visual.

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