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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.27 Lisboa Sept. 2019  Epub Sep 30, 2019

 

Artigos originais

O mundo exposto ao devir-mulher: videografia de Barbara Fonte

The world exposed to the becoming-woman: videography by Barbara Fonte

Pedro Miguel dos Santos Silva1  *

1 Universidade de Vigo (UV), Facultad de Belas Artes de Pontevedra; Departamento de Escultura. Programa de Doutoramento en Creación e Investigación en Arte Contemporánea. Grupo de Investigación H07 - La dimensión escultórica de las prácticas artísticas. Rúa Maestranza, 2, 36002, Pontevedra, Galicia, España.


Resumo:

O presente artigo versa sobre o trabalho videográfico de Barbara Fonte, tendo como principal objectivo encontrar pontos de convergência entre dois tópicos aparentemente contraditórios: uma exteriorização libidinal do corpo da artista - que relacionaremos com o conceito de devir-mulher dos pensadores Deleuze e Guattari, - e de uma representação da mulher como Eva, na sua matriz judaico-cristã.

Palavras chave: videoarte; devir-mulher; corpo; simbologia judaico-cristã; Eva

Abstract:

This paper addresses Barbara Fonte's videographic work, with the primary aim of identifying convergence points between two seemingly contradictory topics: a libidinal exteriorization of the artist's body - which will be linked to Deleuze and Guattari's concept of becoming-woman - and that of the woman as a representation of Eve, in its Judeo-Christian matrix.

Keywords: Video art; becoming-woman; body; judeo-christian symbology; Eve

Introdução

Barbara Fonte (1981) é oriunda de Braga. Licenciada em Artes Plásticas (2004) e pós-graduada em Teoria e Prática do Desenho (2005) pela FBAUP. Tem exposto o seu trabalho recorrendo a vários médiuns como o desenho, a fotografia ou a imagem em movimento, sendo nesta última disciplina que nos focaremos, tendo por base os seguintes trabalhos:

  • - Teatro da Identidade, 2015, Encontrarte Amares, Amares;

  • - Fluxo de Intervalos - Promessa, 2016, Centro de Arte de São João da Madeira;

  • - Fluxo de Intervalos - II, 2016, Centro de Arte de São João da Madeira;

  • - M de Manifesto, 2018, Galeria da Universidade Minho, Museu Nogueira da Silva;

  • - 50 Ave Marias, 2018, ainda não exposto a público.

A artista, no sítio da internet onde apresenta o seu portefólio, refere que este "invoca a relação entre o feminino, a cultura e a religião" (Fonte, 2018, https://www.barbarafonte.com/ ). Procuraremos salientar que, no caso da artista, esta relação trinitária é tensa, exactamente porque está assente na preposição "entre", ou seja, assente no que é próprio do devir como disposição nómada, interposta, como procuraremos demonstrar.

Partindo de uma análise dedutiva, propor-nos-emos estudar a obra videográfica de Barbara Fonte a partir da ambivalência "entre" uma exteriorização libidinal do seu corpo, à qual nos aproximaremos do conceito de devir-mulher de Deleuze e Guattari (2007) e "entre" a representação da mulher, próxima da figura de Eva presente na iconografia judaico-cristã.

1. Exteriorização libidinal do corpo… em devir

O devir não é um modelo, não é um padrão, é diversidade, é multiplicidade. O devir caracteriza-se sem demarcações fixas, mas como algo que devém (Deleuze & Guattari, 2007). Assenta a sua prática em alianças fragmentárias, em pulsões advindas de relações que se vão estabelecendo com o mundo. Enfim, baseia-se no "caos" enquanto potência que "desfaz toda a consistência" (Deleuze & Guattari, 1992).

O trabalho autoral de Barbara Fonte vai-se concretizando em manifestações do que é díspar. Expressa-se numa diversidade tensional em torno dum corpo que, umas vezes, se expõe ao desejo libidinal de cariz sexual, outras, se inibe em práticas devocionais de cariz religioso. Está, neste sentido, muito próximo das zonas intermédias que caracterizam o devir, uma vez que este é fugidio, organiza-se no "entre" estágios.

Acresce a esta tensão manifesta no trabalho videográficas da artista, o intento em esquivar-se a uma linearidade narrativa, ao domínio de uma representação padronizada. Ou seja, as obras de Barbara Fonte movem-se em torno de aporias, o que as aproxima das manifestações a-lógicas do devir. A provar está, p. ex., a montagem fragmentária em que assentam os vídeos, quer ao nível sequencial das imagens em movimento como ao nível do som a estas acoplado: apresentam-se sem princípio ou fim clarificados, sem progressão linear, sem afinidades espácio-temporais. Podiam, hipoteticamente, começar ou acabar em qualquer outra parte, ter uma outra qualquer organização sequencial, porque o que os identifica é o seu conjunto de perplexidades em torno de algumas temáticas. Tal conjectura remete-nos, potencialmente, para o devir que "não tem princípio nem fim, nem partida nem chegada, nem origem nem destino", mas apenas estados intermédios (Deleuze & Gattari, 2007:373). Ou seja, uma união em torno do que é dissemelhante. Neste sentido, o devir está próximo do desejo e da afeição (Deleuze & Gattari, 2007:347), sendo que estes sentimentos são, por natureza, movimentações que incitam à proximidade e ao contágio com entidades heterogéneas por quem se sentem atraídos. O desejo e o afecto apelam, efectivamente, à multiplicidade. E o devir é multiplicidade (2007:319), é aliança na dissemelhança (2007:306). E nisto apresenta uma faceta política. O devir é desterritorialização de oposições binárias. O devir opõe-se à categorização da sociedade Ocidental construída na base de poder cêntrico do modelo "homem-branco, adulto, macho" (idem: 369). Caracterização generalista baseada em atributos de poder, sinónimos de fortaleza, racionalidade, virilidade, masculinidade, supremacia, por confrontação com a Mulher representada como fragilidade, emotividade, debilidade, insignificância, fugacidade, etc.

Os devires são minoritários (Deleuze & Gattari, 2007:369). Embora o homem tenha muitos devires na sua quotidianidade, não há um devir-homem porque este define-se como soberano-dominador-maioritário. Por isso, a mulher apresenta-se como uma primeira linha de fuga capaz de mover-se, em configurações precárias, contra os moldes estabelecidos (Deleuze & Gattari, 1997:87), contra os poderes que se vão instituindo, cristalizando e perpetuando. Assim, o devir-mulher é mais do que a constituição de formas opostas ao homem (Deleuze & Gattari, 2007:351); não procura criar um outro tipo de categorização ou de poder alternativos. O devir diz respeito tanto ao homem como a mulher (2007:370): ambos são chamados a devir, a desprenderem-se das categorias que os estancam e os aprisionam. Ambos são chamados a assumir movimentações transitórias mais consonantes com a multiplicidade e inconstância da vida. O que movimenta o devir é um carácter inventivo e fugidio, é ser uma fenda que abre brechas no se institui como modelos, como categorizações hierárquicas.

Barbara Fonte não receia debater-se e questionar os códigos instituídos pela cultura e religião, nem pelo padrão cêntrico Masculino. Se a mulher ocidental é socialmente tida como submissa, então a artista assim se apresenta em "M de Manifesto", abocanhando uma banana (falo?) entregue por uma mão masculina. Mas apresenta-se como denunciadora destes jogos de poder, fitando-nos o olhar directamente.

A artista procura ir colocando esses códigos político-culturais em causa, apartando-os de categorizações deterministas, como são as tradicionais de masculino-feminino. Encontramos esse questionamento em "Inside-Outside" - o próprio nome é indicativo - onde se apresenta deitada na borda de uma cama com uma trança de cabelo (falo?) a derivar da sua zona genital; ou quando, em "Identidade", depois de aplicar creme no seu rosto - numa rotina culturalmente tida como feminina -, adorna-se de um conjunto de pelos, masculinizando-se exageradamente (uma espécie de caricatura) sem, contudo, deixar de perder a sua feminilidade sensual (pormenor da alça que cai e deixa desnudo o ombro). Habita, assim, uma feição hibrida, um estado "entre". O devir é esta disposição fluida que "só cresce pelo meio" (Deleuze & Gattari, 2007:372). A artista não procura substituir um domínio - neste caso o masculino - o por um outro - que seria o feminino. Apenas procura a desterritorialização (Deleuze & Gattari, 2007:306).

2. Representação da mulher como Eva

A mulher, enquanto ser feminino liga-se, simbolicamente, à origem da vida. A iconografia judaico-cristã apresenta Eva como a primeira mulher, a mãe de todos viventes: "o homem chamou à sua mulher «Eva», por ser a mãe de todos os viventes (Gn 3, 20). Precisamente, Eva vem do hebreu Havvah, que deriva da raiz hayah, que significa "viver" (Gn 3, nota e).). Eva está, pois, associada à vitalidade, à potencialidade do emergente, à fecundidade, enfim, a atributos próximos de um estado de devir e antagónicos de qualquer estruturação rígida e hierarquizada. Eva, também, está vinculada àquilo que carece de fundamento autónomo, pois é (de)composta, deduzida, a partir de uma costela de Adão. É "tirada do homem" para se constituir mulher (Gn 2, 22-23). Eva está, pois, relacionada com o que é secundarizado, com o que é minoritário, com o devir.

Em "M de Manifesto" (Figura 1, Figura 4), Barbara Fonte parece desejar assumir esta múltipla faceta do devir, ingerindo a palavra "mulher", composto de partículas fragmentárias, representando o que mínimo, transitório, precário (Figura 2, Figura 3).

Fonte: still do vídeo.

Figura 1 ∙ Barbara Fonte, vídeo M de Manifesto. 22:35 min. 2018 .  

Fonte: still do vídeo.

Figura 2 Barbara Fonte, Vídeo Teatro da Identidade. 15:11 min 2015. 

Fonte: still do vídeo.

Figura 3 Barbara Fonte, Vídeo Teatro da Identidade. 15:11 min 2015. 

Fonte: still do vídeo.

Figura 4 Barbara Fonte, vídeo M de Manifesto. 22:35 min. 2018. 

Algumas das acções performativas exposta em vídeo pela artista remetem para, efectivamente, a figura de Eva, inclusive, algumas mais literais, como quando no trabalho "Língua" apresenta "eva" inscrito num dedo indicador (Figura 5).

Fonte: still do vídeo.

Figura 5 Barbara Fonte, vídeo Língua, 4:30 min, 2018. 

Mas muitas outras têm relações mais derivada, nomeadamente, naquelas em que a primeira mulher é associada à fertilidade, à sedução-tentação e à nudez. Vejamos:

Fertilidade: Eva, simbolizando "a mãe de todos os viventes", apresenta-se como fecunda, fértil, potência latente de vida, ou seja, como devir. Alguns dos trabalhos de Barbara Fonte remetem para esta temática. Ressaltamos aqueles que foram realizados num período em que a artista se encontrava grávida, fazendo dessa condição matéria artística. São eles o "Fluxo de Intervalos I" e "II" de 2016-17 (Figura 6, Figura 7, Figura 8). Assim, p. ex., em "Fluxo de Intervalo II", a artista apresenta uma acção que remete para o acto de parir, quando puxa, de uma abertura no solo, uma espécie de cordão umbilical, constituído por um conjunto de tecidos brancos que depois contempla demoradamente, numa imagem que relembra uma pietà; ainda no mesmo vídeo expõe-se vertical, de pernas abertas, com uma vara apontada para os seus órgãos reprodutores; ou ainda quando, deitada no chão de braços abertos, numa postura que remete para a crucifixão, se expõe com duas esferas pousadas na zona pélvica, a insinuarem-se como ovários.

Fonte: própria, a partir de still do vídeo.

Figura 6 Barbara Fonte, vídeo Fluxos de Intervalo II . 13:38 min, 2016. 

Fonte: própria, a partir de still do vídeo. 

Fonte: própria, a partir de still do vídeo.

Figura 8 Barbara Fonte, vídeo. Fluxos de Intervalo II, 13:38 min. 2016. 

Sedução-tentação: em Eva evidencia-se uma das características fundamentais do ser humana: a atracção pela tentação e a sua potencial transgressão. Eva habita o "entre", o devir. É seduzida pela tentação (simbolizada numa serpente) e é sedutora do homem que anui provar do fruto proibido que lhe foi apresentado. Barbara Fonte expõe-se nesta tensão, mas encontramo-la, sobretudo, enquanto sedutora, profusa de indícios tentadores. Um dos momentos mais declarados encontra-se em "M de Manifesto" (Figura 9), quando se exibe numa dança sensual e sensorial, repetida em loop, com derivações cromáticas (filtros de cor diferenciados) e rítmicas (aceleração das imagens).

Fonte: própria, a partir de still do vídeo

Figura 9 Vídeo M de Manifesto, 22:35 min, 2018. 

Nudez: em Eva evidencia-se o desejo do ser humano se substituir a Deus: Eva desejou comer o fruto proibido quando a serpente lhe disse que comendo-o passaria a ser como deus (idem, Gn 3, 5). Por Eva a humanidade passou a conhecer o pecado e, consequentemente, a punição: culpa, remorso, condenação. Depois de Eva e de Adão terem provado a maça da árvore do conhecimento do bem e do mal, a sua nudez tornou-se embaraçosa (idem, Gn 3, 7). É latente nos vídeos de Barbara Fonte a preocupação em trabalhar com a dimensão da vergonha, muitas das vezes, jogada na tensão entre o encobrimento e o desvendar de partes do seu corpo, nomeadamente, aquelas que (des)ocultam os seus genitais. Esta tensão "entre" o que se expõe e o que se encobre - correlato do desejo - é próxima do devir enquanto estágio intermédio. Em de "50 Ave Marias" a artista comprime junto à região genital uma maça - referência ao fruto proibido. É um momento tenso, contudo, não dos mais voluptuosos do trabalho da artista, exactamente porque lhe falta o jogo tensional e subtil de um latente (des)ocultamento.

3. antinomias e correlações entre o devir-mulher e Eva

Procurámos ressaltar que a videografia de Barbara é caracterizada tanto por uma exteriorização libidinal do seu corpo como por uma representação da mulher tendo Eva como modelo.

Na exteriorização libidinal manifestaram-se factores como a dissemelhante e a transitoriedade, que se apartam de categorizações bipolares. Há, assim, uma aproximação ao devir. Daí que não encontremos nos trabalhos videográficos da artista uma linearidade narrativa nem uma hierarquia categorial, antes fragmentos, contextos dispares.

Na representação da mulher como Eva, dado o seu carácter fragmentário e minoritário, é também possível encontrar elementos próximos do devir. Explorámos ainda alguns elementos simbólicos associados a Eva, como a "fertilidade", a "sedução-tentação" e a "nudez". Se no elemento fertilidade foram visíveis as aproximações ao devir, o mesmo já não ficou tão patenteado nos restantes elementos. Na "sedução-tentação" parece-nos existir uma sobrevalorização do factor "sedução" face ao factor "seduzida" e, neste sentido, ficou menos evidente a tensão intermédia que caracteriza o devir. No elemento "nudez", também denotámos que a tensão entre "exposição-encobrimento" do corpo da artista, nem sempre foi explorada enquanto movimento tensional, enquanto devir.

Conclusão:

Partindo da análise ao trabalho videográfico da artista Barbara Fonte, procurámos encontrar pontos de confluência entre o conceito de devir-mulher e a representação da mulher enquanto Eva. Estas correlações tornaram-se manifestas ao longo da análise e permitiram reler o trabalho da artista sob este ponto de vista. Há, contudo, tópicos onde esta correlação ficou menos patente. São os casos dos elementos "sedução-tentação" e "nudez" na representação da mulher como Eva. Tal facto não indicia que os procedimentos artísticos que Barbara Fonte usou nos seus trabalhos fossem menos eficazes em função da sua própria problemática. Apenas, indica que não se encadeiam totalmente com o enquadramento teórico-conceptual adoptado neste artigo.

Referências

Bíblia de Jerusalém, (2003), Nova edição rev. e ampl.,: 2ª ed., Editora Paulus, São Paulo [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (2007), Mil Planaltos - Capitalismo e Esquizofrenia 2, Lisboa: Assírio & Alvim. [ Links ]

Deleuze, G. & Guattari, F, (1992), O que é Filosofia?, Editorial Presença, Lisboa [ Links ]

Fonte, Barbara, (s/d) Barbara Fonte [consult. 20-12-2018], disponível em URL: 20-12-2018], disponível em URL: https://www.barbarafonte.com/Links ]

Fonte, Barbara, (2018), M de Manifesto, [Catálogo de exposição], Galeria da Universidade do Minho, Museu Nogueira da Silva, Braga. [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2019; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

Endereço para correspondência Correio eletrónico: pmiguelsantossilva@gmail.com (Pedro Santos Silva)

*Portugal, Artista plástico.

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