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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.27 Lisboa Sept. 2019  Epub Sep 30, 2019

 

Artigos originais

A escultura fragmento de João Castro Silva

The sculpture fragment of João Castro Silva

Luísa Perienes1  *, estudante de doutoramento

1Universidade de Lisboa; Faculdade de Belas-Artes; Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA), estudante de doutoramento. Largo da Academia Nacional de Belas Artes 14, 1249-058 Lisboa, Portugal.


Resumo:

Esta reflexão sobre a escultura fragmento de João Castro Silva, escultor contemporâneo e professor na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, tem como objetivo analisar os processos de conceção e execução utlizados pelo escultor. Na sua escultura é explícita a atitude na representação do corpo humano e na escolha das matérias que utiliza. Investigamos nesta abordagem novas maneiras do conceber e do fazer em que o fragmento marca a escultura da contemporaneidade.

Palavras chave: escultura; fragmento; corpo humano; processo

Abstract:

This reflection on the sculpture fragment of João Castro Silva, contemporary sculptor and professor at the Faculty of Fine Arts of the University of Lisbon, aims to analyze the processes of conception and execution used by the sculptor. In his sculpture are explicit the attitude on the representation of the human body and in the choice of materials used. We investigate in this approach new ways of conceiving and doing in which the fragment marks the sculpture of contemporaneity.

Keywords: sculpture; fragment; human body; process

Introdução

No início do século XX é com Rodin que surge a noção de fragmento como obra de arte acabada. Começou o fragmento por pertencer ao corpo humano e os processos de modelar, esculpir e fundir são os utilizados na escultura.

A questão central que Rodin nos traz é a de que o fragmento expressamente nos convida a participar na criação. Segundo Rosalind Krauss: "Rodin obriga o observador, em repetidas ocasiões, a perceber a obra como resultado de um processo, um ato que deu forma à figura ao longo do tempo" (Krauss, 2001:37).

João Castro Silva nasceu em 1966 e é Professor Auxiliar na área de Escultura na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.

A sua obra fragmentária organiza-se através dos processos de assemblage, construção e talhe directo utilizando diversas matérias e materiais.

Os instrumentos que utiliza são instrumentos de corte, máquina de soldar, martelos, serras, machados de diferentes tamanhos, que lhe possibilitam não só a construção mas também a redução de modo a formalizar as suas esculturas. Apresentarei em primeiro lugar Fragmento/Assemblage, em metal e outras matérias em que utiliza o processo de assemblage e construção. Em segundo lugar, Fragmento/ Construção em que utiliza madeira e trabalha as escalas. Em terceiro lugar abordarei as esculturas em Fragmento/Instalação (em lugares previamente determinados). Podemos talvez questionar se "A condição humana", através da representação do corpo não será a temática principal das suas esculturas. Esculturas essas que refletem bem um acumular dos conhecimentos de anatomia, cânone, proporção, equilíbrio e harmonia assim como o seu criterioso relacionamento com matérias e materiais.

1. Fragmento / Assemblage

Na sua exposição inaugural na Galeria Míron em 1996 João Castro Silva expõe uma série de figuras que nos remetem para o universo de Jerónimo Bosch. O híbrido, o inesperado e o estranho estão presentes nestas esculturas que perturbam/questionam o espectador.

São esculturas compostas de restos: restos de metal em varetas e chapa, que o escultor recorta, dobra, solda e prega com fragmentos da natureza - troncos e ramos que formalizam neste bestiário a sua intenção de nos questionar, inquietar, fazer pensar. Mostra-nos ainda, formalmente, o seu foco no ritmo explícito de leveza na composição que constrói com redes e varetas soldadas nalgumas esculturas suspensas (como os insetos) e de opacidade e peso noutras esculturas assentes no solo. Neste caso a lição de Brancusi em que o suporte é fundamental para a leitura da escultura também está bem presente nesta mostra.

São irónicas e cruas as esculturas. A poesia está na composição dos seus elementos e na matéria que as constituem, nos gestos que as caracterizam, isto nas figuras híbridas ainda irónicas pelos jogos que propõem (Figura 1); algumas são cruas porque a matéria parece que foi rasgada (Figura 2), ou então é crânio de animal verdadeiro.

Fonte: catálogo da exposição Tentações, 1996, Galeria Míron Trema, Lisboa.

Figura 1 João Castro Silva, Técnica mista 145x42x70 cm, 1996. 

Fonte: catálogo da exposição Tentações, 1996, Galeria Míron Trema, Lisboa.

Figura 2 João Castro Silva, Técnica mista, 108x87x15 cm, 1996. 

A figura humana que se tornará central na sua obra aparece aqui ainda como um esboço, uns guerreiros sombra, porque orosto e as mãos são perfis em ferro e os corpos estão reduzidos à forma global imposta pela sugestão de um panejamento.

2. Fragmento / Construção

Segundo Rosalind Krauss, recorrendo à lição ensinada anteriormente por Rodin e Brancusi: "a fragmentação do corpo é uma maneira de libertar o significado de um gesto particular de uma impressão de que o mesmo é pré-condicionado pela estrutura subjacente ao corpo, compreendido como um todo coerente" (Krauss, 2001:331).

Da representação da figura humana trata a sua tese de Doutoramento e podemos afirmar que João Castro Silva liga todos estes conhecimentos, teóricos e práticos que utiliza para expressar em escultura todas as facetas inerentes à condição humana.

Para o situar no campo artístico cito Michel Onfray que compara um artista a um Condottiero:

O Condottiero que proponho é um artista que opera no mundo horizontal. A esta altura do campeonato parece ser evidente que ele realiza um determinado tipo de escultura, mas o facto de estar mais relacionado com Dioniso do que com Apolo subentende um olhar um pouco mais apoiado nas modalidades de uma estética mais precisa que mete em cena corpos, seres, pessoas fabricadas de acordo com um desígnio. Deste modo, o Condottiero é conhecedor nato da arquitectura do seu ser, entendido no seu próprio fabrico como que de uma obra. Converte as suas atitudes em formas, indo buscar a uma estética de existência o estetismo da vida. A arte contemporânea, na sua versão dionisíaca, é um laboratório de experimentação de novas maneiras de ser, viver, agir, pensar, encarar o corpo, a vida e a singularidade (Onfray, 2003:85).

Nesta nota a ideia do escultor:

A toda a representação do corpo humano está implícita a ideia que o escultor tem do corpo, ideia essa expressa através dos meios que possui. Teremos sempre uma métrica essencial de construção, linhas estruturais e composição e desejo de encontrar o cânone perfeito, expressão universalizante do corpo humano em que as formas se dão de per si, sem outra necessidade de fundamentação de que a sua existência real. É através da mão do escultor que a forma encontra a sua materialidade, volume e matéria, sujeito e objeto, exterior e interior elaborando-se reciprocamente (Silva, 2010:231).

Assinalando a continuidade/descontinuidade de manifestações artísticas onde se centraliza o conhecimento do corpo humano, passamos a analisar as suas produções ainda de escultura-fragmento, agora de grandes dimensões, constituídas por tiras de aço soldadas que dão forma a umas pernas que se prolongam até à bacia. Apresentamos Kolosso (Figura 3). Estes fragmentos, estas pernas de grande escala algo mecânicas, resultantes dos tempos de hoje, remetem para um tempo antigo evocando figuras gigantes. É segundo o escultor uma reminiscência miniaturizada do Colosso de Rhodes. O escultor não fecha completamente as formas, constituindo o vazio entre as placas um elemento plástico de equilíbrio.

Fonte: fotografia do escultor.

Figura 3 João Castro Silva, Kolosso, Aço soldado, 270x100x70 cm, 2006. 

A propósito da sua execução o escultor esclarece: "o tempo conceptual é feito na execução, pensa-se fazendo, faz-se pensando, não há desfasamento. Em escultura, realização e conceção fundem-se num só momento" (Silva, 2013:27). O Kolosso, escultura pública, foi colocado em frente ao Centro de Educação Ambiental em Torres Vedras em 2013.

De grande escala também, João Castro Silva constrói e prega com ripas de várias madeiras de dimensões diferentes, uma mão (Figura 4). Nessa representação o escultor não esquece a mimese, apesar da importância dada à expressão na utilização de madeiras aparentemente pouco trabalhadas, em bruto, e pregadas nas representações que acompanham tendões e músculos. Digo em bruto no sentido em que o escultor utiliza os elementos de que dispõe para as suas construções e vai pregando e finalizando a escultura sem a preocupação de um todo fechado e de superfícies lisas e polidas. A forma dos pedaços que acumula, a direção que lhes impõe quando constrói, os espaços que ficam entre esses fragmentos são o conjunto rítmico de elementos plásticos que definem e contribuem para a estética da sua obra.

Fonte: fotografia do escultor.

Figura 4 João Castro Silva, Mão, madeiras várias, 120x210x70 cm, 2005. 

Na cabeça de grande dimensão também o fazer está na construção em que os pedaços de madeira vão sendo pregados e acumulados, tendo subjacente uma certa poesia assim como a anatomia (Figura 5).

Fonte: fotografia do escultor.

Figura 5 João Castro Silva, Cabeça, madeiras várias, 150x150x90, 2005. 

Aqui falamos do acto de construir, diferente do de esculpir que João Castro Silva utiliza também.

O escultor, para as suas esculturas escolhe, numa atitude que podemos apelidar de respigador, pedaços de várias matérias, materiais, restos de metal, chapas, varetas,… assim como madeiras de diferentes origens, formas e dimensões.

A matéria interessa-lhe e ele respeita-a. Segundo as suas palavras:

A escolha que faço da matéria a trabalhar prende-se com a exaltação dos valores intrínsecos que o material encerra, mas acima dessa matéria está a minha vontade e a forma que para ela pensei. O respeito que tenho pelos materiais que trabalho nunca me deixou extasiado pelo seu lado decorativo. Qualquer tipo de madeira, por muito bonita que seja, nunca será mais interessante que a forma que dela tirei (Silva, 2013b).

Na exposição Abandono, no ano 2000 na galeria Trema, os corpos construídos em tamanho natural estão quase completos e são acompanhados de um longo título, de uma frase (Figura 6).

Fonte: fotografia do escultor.

Figura 6 João Castro Silva, São os desejos que nos salvam. Estando com eles salvamo-nos. Mas era demasiado tarde quando percebi, Madeira, 202x43x28 cm, 2000. 

Um pensamento sobre a perda, um lamento sobre a falta de coragem, uma reflexão sobre o tempo perdido, uma nostalgia do tempo da infância. João Castro Silva aqui personaliza as esculturas, elas são sujeito.

Ao contrário, no grupo Passo, Espaço Afastamento, não há individualidade. É constituído por 25 esculturas muito semelhantes, figuras a meio-corpo, alinhadas, com quase nenhum afastamento, olhando todas na mesma direção, um bloco humano. Não tem título (Figura 7).

Fonte: fotografia do escultor.

Figura 7 João Castro Silva, Sem título, Pinho, 50x25x25 cm, 2004. Exposição individual: “Passo, Espaço, Afastamento, Passo Espaço compreendido entre esse Afastamento”. 

As ideias de ação e atitude estão patentes quando expõe figuras isoladas ou grupos e aqui lembramos Machado de Castro, que diz nos seus escritos sobre a escultura: "Por exemplo: quer-se representar um homem a ler um livro; o ler é a ação ou feito, neste caso, porém pegar no livro com uma ou ambas as mãos, estar de pé sentado ou encostado, mais ou menos torcido, etc. esta é que é a Atitude" (Castro, 1937:20).

3. Fragmento/Instalação

Instalação e escultura têm em comum a tridimensionalidade e o desdobramento do espaço. Ambas partilham ainda essa capacidade de investir num espaço através de uma inscrição, até mesmo de um implante, no lugar que elas ocupam (Cross, 2003:65).

Ligo o texto que se segue de João Castro Silva, sobre mimese e representação, focando a ideia de congelar o tempo do corpo através da representação, à instalação intitulada A boca de Debbie Harry na minha boca, de 2001 (Figura 8).

Representar um corpo é isolar uma forma permanente que na realidade não existe, em que os 'traços inalteráveis' serão percecionados num processo que tenta congelar o constante fluxo desse corpo, num estado de imutabilidade. Um processo simbolizante deste tipo introduz-nos num tempo diferente, não mais no não-tempo presente de um corpo, perdido na sua ininterrupta flutuação de luzes e sombras, mas antes no tempo de uma medida que solidifica as coisas, que desenvolve uma imagem formal e a guarda numa fixidez absoluta, num tempo que interpreta proporções, define contornos e tenta estabelecer traços essenciais, universais (Silva, 2010b).

Fonte: fotografia do escultor.

Figura 8 João Castro Silva, a boca da Debbie Harry na minha boca, 2001. 

Trinta cabeças, como máscaras em madeira branca, os lábios pintados de vermelho, estão dispostas numa parede também branca em duas filas. Cada fila contém quinze cabeças. Apesar da aparente uniformidade formal e no modo como estão colocadas são todas diferentes. Debbie Harry é cantora mas as bocas das cabeças estão fechadas, percecionando-se apenas ligeiras diferenças nas expressões faciais.

Esculpir um pequeno objeto é difícil. Primeiro temos que o segurar com a mão, ou outros meios, para que se possa trabalhar nele e depois ter o domínio da ferramenta que determina a forma.

Deste modo João Castro Silva esculpiu em talhe directo "ossos", em madeira devolvida e já gasta pelo mar.

A maneira como depois os mostrou explicita o conceito e completa o seu significado.

No museu Militar de Lisboa João Castro Silva coloca-os numa vitrine na sala de entrada, do lado esquerdo, antecâmera da sala principal onde expunha um canhão.

Esses ossos expostos e alinhados, protegidos pela caixa de vidro, portanto só visíveis mas intocáveis, como se de relíquias se tratassem, sacralizam como restos mortais a memória de combatentes (Figura 9).

Fonte: fotografia do escultor.

Figura 9 João Castro Silva, Ossos, talhe directo sobre madeiras de maré, dimensões várias, 2016. 

Estas pequenas esculturas, como despojos de guerra, fragmentos do corpo humano, falam dele, da sua ausência, sem que se vislumbre a sua presença.

Conclusão

Na sua escultura, utilizando o conceito de fragmento, João Castro Silva questiona a condição humana representando o corpo.

João Castro Silva, apropriando-se da linguagem clássica na representação do corpo humano e de novos processos menos convencionais para a execução da sua escultura, dá uma forte contribuição para uma constante renovação sobre o modo de fazer, dar a ver e questionar a obra de arte na contemporaneidade.

Referências

Castro, Joaquim Machado de, (1937) Dicionário de Escultura, Lisboa: Livr. Coelho. [ Links ]

Cross, Caroline (2003) l'ABCdaire de la Sculpture du XX siècle, Paris: Flammarion. ISBN:20801 10802 [ Links ]

Krauss, Rosalind (2001) E Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes. ISBN: 85-336-0958-2 [ Links ]

Onfray, Michel (2003) A Escultura do Eu. Coimbra: Quarteto. ISBN: 972-8717-94-6 [ Links ]

Silva, João Castro (2010) O corpo humano no ensino da escultura em Portugal: mimése e representação. Tese de doutoramento, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes. [ Links ]

Silva, João Castro (2010b) Mimese e Representação I, [blog] Silva, João Castro (2010b) Mimese e Representação I, [blog] http://joaocastrosilva-escultura.blogspot.com/2010/02/representar-um-corpo-e-isolar-uma-forma.html , Publicado em 28 de Fevereiro 2010, Consultado em 28 de Dezembro de 2018. [ Links ]

Silva, João Castro (2013), "Arte pública, Kolosso de João Castro Silva", Revista Municipal de Torres Vedras nº17 - Novembro/Dezembro de 2013. [ Links ]

Silva, João Castro (2013b) Ausência, [blog] Silva, João Castro (2013b) Ausência, [blog] http://salteiro.blogspot.com/2013/03/joao-castro-silva-escultura-e-materia.html , Consultado em 28 de Dezembro de 2018. [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2019; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

Endereço para correspondência Correio eletrónico: luisaperienes@gmail.com (Luísa Perienes)

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Portugal, escultora.

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