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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.27 Lisboa Sept. 2019  Epub Sep 30, 2019

 

Artigos originais

Do vazio e do silêncio nos desenhos de Maria Laet

Of the emptiness and the silence in Maria Laet's drawings

Aline Teresinha Basso1  2  *

1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes (FBAUL); Lisboa, Portugal

2Professora na Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte (ICA/UFC). Campus do Pici, ICA, Av. Mister Hull, s/n - Pici, Fortaleza - CE, CEP 60455-760 Brasil.


Resumo:

Este artigo apresenta uma leitura pautada nos conceitos de Vazio e de Silêncio em alguns desenhos da artista brasileira Maria Laet. Foram analisadas a série 'Daquilo que não se vê' (2016), que consiste em uma série de livros em papel e a série 'Atividade Interna' (2017), constituída por dez desenhos feitos com tinta da China sobre papel. A análise foi estruturada a partir da teoria pictórica e do pensamento filosófico chineses, nos quais os conceitos supracitados ocupam papel central.

Palavras chave: Maria Laet; vazio; silêncio

Abstract:

This article presents a reading based on the concepts of Emptiness and Silence in some drawings by Brazilian artist Maria Laet. Two series were analyzed: 'Daquilo que não se vê' (2016), consisting of a series of books on paper and 'Atividade Interna' (2017), consisting of ten drawings made with Indian ink on paper. The analysis was structured in Chinese pictorial theory and philosophical thought, in which the above-mentioned concepts occupy a central role.

Keywords: Maria Laet; emptiness; silence

Introdução

Maria Laet nasceu no ano de 1982 e é natural do Rio de Janeiro, Brasil. Formou-se em Design Gráfico em 2006 e ao longo da carreira ampliou sua formação com pós graduações em arte realizadas em Londres, Rio de Janeiro e São Paulo. Além de exposições individuais e coletivas no Brasil, Europa, Estados Unidos e Austrália, a artista realizou residências artísticas em Bad Ems (Alemanha), Lisboa e Nova York. Foi premiada no Programa Rumos Itaú Cultural, no Brasil, e indicada ao prêmio PIPA, no mesmo país. Possui obras em diversas instituições artísticas no mundo. Nas palavras de Bernando José de Souza,

Acaso não conhecesse Maria, era bem possível acreditar tratar-se de uma artista oriental - japonesa, quem sabe -, que responde a uma ancestralidade e a um tempo que não parecem ser os mesmos nossos. Há algo de intangível em sua ação silenciosa, fantasmática, litúrgica, eu diria - uma presença e um protagonismo que nos transpõem a outro plano, senão austero, milenar, esotérico, místico (Souza, 2018).

Os conjuntos de obras escolhidos para esta reflexão apresentam uma interessante aproximação ao pensamento chinês. Tanto os livros quanto os desenhos nos põem diante de alguns conceitos que são extensivamente discutidos a respeito das pinturas chinesas: o vazio, um conceito estrutural em todo o pensamento chinês, e o silêncio, relacionado ao estado contemplativo que engloba tanto o fazer quanto o fruir de uma obra e muitas vezes acaba por materializar-se na própria obra.

Por basear-se nas principais correntes filosóficas - taoísmo, budismo e confucionismo - o pensamento sobre pintura chinês possui um cunho profundamente espiritual e abstrato. Os conceitos de vazio e de silêncio são centrais em toda a discussão da pintura tradicional e são estruturantes nas inúmeras teorias pictóricas chinesas que foram desenvolvidas ao longo dos séculos.

A concepção, criada pelos chineses para a pintura mas que pode ser expandida para todas as outras linguagens artísticas, é de que "[…] la pintura, en vez de ser un ejercicio puramente estético, es una práctica que compromete al hombre todo, tanto su ser físico como su ser espiritual, tanto su parte consciente como la inconsciente" (Cheng, 2016: 135). Através dela, o artista estabelece novos mundos, não se limitando à mera representação do mundo observado. "A criação pictórica é um processo idêntico ao da criação do Universo; ambos se exercem paralelamente" (Ryckmans, 2010: 67).

A seguir apresentamos uma leitura pautada nos conceitos de Vazio e de Silêncio em duas séries de desenhos da artista brasileira Maria Laet: a série 'Daquilo que não se vê', de 2016, e a série 'Atividade Interna', de 2017. Foi realizada uma análise interpretativa das obras, estruturada a partir das teorias da pintura tradicional chinesa. Naturalmente a análise perpassou também o pensamento filosófico-espiritual, visto que este é a raiz das teorias pictóricas.

1. Do vazio

A série 'Daquilo que não se vê', de 2016, é composta por livros com dimensões e números de páginas variados. Com excessão do livro (V), que possui manchas suaves em algumas páginas, todos os outros livros estão 'em branco' e suas páginas são mais ou menos amassadas (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4). No site da artista estão disponíveis vídeos que apresentam o folhear das páginas de quatro livros.

Fonte: http://marialaet.com/obra/daquilo-que-nao-se-ve/

Figura 1 Maria Laet. Fragmento da obra Daquilo que não se vê (I), 2016. Vídeo, 33’’ / Livro, 48 x 32 cm fechado, 48 x 65 cm aberto, 28 pág. 

Fonte: http://marialaet.com/obra/daquilo-que-nao-se-ve/

Figura 2 Maria Laet. Fragmento da obra Daquilo que não se vê (II), 2016. Vídeo, 1’01’’/ Livro, 45 x 28,5 cm fechado, 45 x 56 cm aberto, 56 pág. 

Fonte: http://marialaet.com/obra/daquilo-que-nao-se-ve/

Figura 3 Maria Laet. Fragmento da obra Daquilo que não se vê (IV), 2016. Vídeo, 55’’/ Livro, 32 x 23,5 cm fechado, 32 x 46 aberto, 46 pág. 

Fonte: http://marialaet.com/obra/daquilo-que-nao-se-ve/

Figura 4 Maria Laet. Fragmento da obra Daquilo que não se vê (V), 2016. Vídeo, 1’05’’ / Livro, 35 x 24,5 cm fechado, 35 x 48,5 cm aberto, 60 pág. 

O pensamento pictórico tradicional da China é permeado pela noção de vazio. Este conceito é estruturante para a obra, seja materialmente, conceitualmente ou filosoficamente. Contudo, a ideia ocidental de vazio, que em geral corresponde ao nada, à falta de algo, está muito distante da oriental. François Cheng (2016: 18) explica que para os chineses o vazio é um elemento dinâmico e ativo. Corresponde a uma série de conceitos, tais como o de energias vitais e o de equilíbrio entre yin e yang. Além disso, é o espaço onde se manifestam as transformações e onde a plenitude é alcançada.

Nas regras do Manual de Pintura do Monge Abobora Amarga, escrito pelo monge Shitao e publicado em 1710 (Ryckmans, 2010), consta que na pintura

[…] o conceito central da crítica é o 'xu', o vazio, isto é, essas áreas brancas deixadas à imaginação - a parte pintada, menos importante que as áreas vazias, tende a ser apenas, de uma certa forma, o suporte destas, o auxiliar que guia o olho e o leva até o limiar essencial do vazio, onde é o espírito que substitui o olho (Ryckmans, 2010:135).

Um espaço em branco, portanto, não significa que nada foi feito. Ou mesmo que ali não há nada. O vazio é o espaço onde tudo acontece, onde todas as possibilidades são viáveis. O título da série em si já indica uma potência. Fala de algo que não é visto mas que existe, está latente. Há algo nos livros de Laet que não se vê. Não é algo passivo, mas sim ativo. Ao folheá-los, percebe-se que as folhas não são todas iguais, cada uma possui um padrão diferente no amassado do papel. Assim como na pintura chinesa, as páginas vazias não são necessariamente a neutralização de algo, e sim um processo aberto de realização em direção à plenitude do objeto. É um vazio que fomenta algo e este vazio assume uma função ativa que

Es todo lo contrario de una "tierra de nadie" que implique neutralización o compromiso, puesto que el vacío es efectivamente le que permite el proceso de interiorización y de transformación mediante el cual cada cosa realiza su identidad y su alteridad, y con ello alcanza la totalidad (Cheng, 2016:71).

Dessa forma, os livros em branco podem ser lidos a partir dos seus vazios, suscitando uma reflexão a respeito do seu verdadeiro conteúdo. É como um pensamento em negativo: partir do vazio para encontrar o conteúdo, que pode estar centrado no próprio vazio. à semelhança da arte zen:

[…] é importante notar que a prerrogativa Zen de exercitar a mente para abarcar o aspecto vazio e despojado da ação de arte, libertando-a de quaisquer regras, não significa que seu caminho conduza a um niilismo, uma negação pura e simples da forma, do conteúdo, dos meios, do artista; […]. O uso, na linguagem zen, de recursos negativos visa apenas reintroduzir (através de uma experiência reflexiva ou contemplativa - seja esta artística ou puramente espiritual) os aspectos cotidianos e casuais que são negligenciados e recusados em nossa percepção comum (Miklos, 2011:130).

Nesse pensamento negativo, temos a subversão do objeto. O livro não possui textos, não possui imagens. É um livro em si e por si. Esses livros põem o pensamento à deriva das letras. Se a função de um livro é informar e gerar reflexão, eles atuam exatamente através de seu caráter vazio: estão plenos de significados e de possibilidades de leituras.

2. Do silêncio

Em todo o pensamento chinês os conceitos de silêncio e vazio relacionam-se. O silêncio diz respeito a uma espécie de quietude do espírito, a um esvaziamento, a um estado meditativo e receptivo. É somente através do silêncio interior que o vazio pode se manifestar no espírito e abrir as portas para a verdadeira plenitude. A pintura, por sua vez, é uma ferramenta para encontrar esse silêncio, pois "busca plasmar un estado anímico, en la medida en que es siempre el resultado de una larga meditación (Cheng, 2016:20)". Para Haertel (1990:57), "a noção de silêncio pode apenas ser apreendida, nas artes visuais, num sentido metafórico - como imobilidade e serenidade":

Nas artes visuais, dentro da articulação de formas cheias e vazias, na luz imaterial que pode formar objetos ou dissolver seus contornos, uma luz que pode revelar detalhes ou escondê-los totalmente, uma área neutra que atrai a nossa atenção justamente porque não esteja provendo nenhum significado óbvio ou convencional, nós podemos perceber inúmeras analogias com aquelas propriedades quase miraculosas do silêncio. O que eu descrevo aqui como propriedades quase miraculosas são precisamente as vagas sensações ou a multiplicidade de significados que o conceito de silêncio, quando inserido em diferentes contextos, pode trazer à nossa percepção (Haertel, 1990:56).

A série 'Atividade Interna', de 2017, aponta para este sentido metafórico do silêncio. É composta por 10 desenhos medindo 75 x 100CM, em tinta nankim sobre papel (Figura 5, Figura 6, Figura 7, Figura 8, Figura 9, Figura 10), sendo dois deles em díptico e três deles em tríptico, conforme pode ser visto especificamente na Figura 10.

Fonte: http://marialaet.com/obra/atividade_interna/

Figura 5 Maria Laet. Atividade Interna, 2017. Tinta nankin sobre papel, 75 x 100 cm. 

Fonte: http://marialaet.com/obra/atividade_interna/

Figura 6 Maria Laet. Atividade Interna, 2017. Tinta nankin sobre papel, 75 x 100 cm. 

Fonte: http://marialaet.com/obra/atividade_interna/

Figura 7 Maria Laet. Atividade Interna, 2017. Tinta nankin sobre papel, 75 x 100 cm. 

Fonte: http://marialaet.com/obra/atividade_interna/

Figura 8 Maria Laet. Atividade Interna, 2017. Tinta nankin sobre papel, 75 x 100 cm. 

Fonte: http://marialaet.com/obra/atividade_interna/

Figura 9 Maria Laet. Atividade Interna, 2017. Tinta nankin sobre papel, 75 x 100 cm. 

Fonte: http://marialaet.com/obra/atividade_interna/

Figura 10 Maria Laet. Atividade Interna, 2017. Tinta nankin sobre papel, 75 x 100 cm. 

O título da série remete ao conceito taoista de wu wei: a não-ação. Em wu wei o espírito está em silêncio e a ação ocorre por si mesma, sem que seja necessário o esforço do artista. Há certa imobilidade no sentido de não se realizar esforço na ação. Todas as coisas encontram seu próprio lugar, naturalmente. É o que eles denominam de "outer passivity, inner activity" (Sze, 1956:17). Este conceito pode ser inferido também nos próprios desenhos, em que a tinta aparentemente encontra seu caminho por si só.

Para alcançar a quietude do wu wei é necessário esvaziar-se: acalmar a mente e o coração e libertar o espírito para a ação inspirada. "'Emptiness' in this Taoist sense is the equivalent of wu wei: the cessation of all action and the suspension of thought, in order to allow freedom of the inner activity of the spirit" (Sze, 1956:17).

Para os chineses, não é apenas o fazer da obra que ocorre em silêncio. Mais do que isso, uma pintura tem o papel de induzir o espectador ao silêncio. Sua materialidade deve suscitar uma contemplação silenciosa, um encontro com o espírito. Os desenhos da série Atividade Interna nos remetem tanto ao conceito de wu wei quanto ao silêncio encontrado na materialidade de algumas pinturas de paisagem chinesas. Há um sentimento de vazio na medida em que sentimos a suspensão do tempo nas manchas que se espalham pelo papel e são absorvidas pelo entorno que ficou em branco. Há uma espécie de movimento lento e sereno. Em seus gestos as manchas dizem muito, porém sem nada dizer.

Conclusão

Nosso objetivo neste estudo não foi o de realizar uma análise puramente formal, mas sim uma interpretação que apontasse proximidades entre a delicadeza das obras da artista e a sutileza do pensamento oriental. A aproximação nos pareceu clara desde o princípio, e como afirmou Bernardo José de Souza, quem não conhece a artista está sujeito a inferir sua conexão com a arte oriental. Há nas obras uma aura orientalista.

Maria Laet traz em seus trabalhos uma força além do tempo. Há certamente algo que a conecta às antigas pinturas chinesas. Não apenas nas séries aqui apresentadas, mas em muitos de seus outros trabalhos. E esse algo não centra-se unicamente na forma, na materialidade das obras. Expande-se.

O que percebemos com esta análise é que as séries de livros e desenhos escolhidos se entrelaçam de forma fluida e natural com os conceitos de vazio e de silêncio da arte chinesa. Suspeitamos que esses conceitos fizeram parte mesmo do pensamento e da concepção dos trabalhos da artista. Ainda que de forma indireta ou a partir de um ponto de vista ocidental.

Referências

Cheng, François. (2016). Vacío y plenitud. El lenguaje de la pintura china. Madrid: Siruela. ISBN: 978-84-7844-769-5 [ Links ]

Haertel, Nilza Grau. (1990). "A magia do silêncio nas artes visuais." Revista Porto Arte. e-ISSN 2179-8001. Vol. 1 (1): 56-61. [Consult. 2018-12-26]. Disponivel em URL: Disponivel em URL: https://seer.ufrgs.br/PortoArte/article/view/27323Links ]

Miklos, Cláudio. (2011). A arte zen e o caminho do vazio. Rio de Janeiro: Claudio Miklos. ISBN: 978-85-906901-6-0 [Consult. 2018-12-26]. Disponivel em URL: Disponivel em URL: https://www.academia.edu/Links ]

Ryckmans, Pierre. (2010). As anotações sobre pintura do Monge Abóbora-Amarga: tradução e comentário da obra de Shitao. Campinas, SP: Editora da Unicamp. [ Links ]

Souza, Bernardo José de. (2018). A folha folheada pelo tempo. [Consult. 2018-12-27] Disponível em URL: Disponível em URL: http://marialaet.com/textos/a-folha-folheada-pelo-tempo/Links ]

Sze, Mai-Mai. (1956). The Tao fo Painting: a study of the ritual disposition of chinese painting, with a translation of the "Chieh Tzû Yüan Hua Chuan", or Mustard Seed Garden Manual of Painting, 1679-1701. New York: Pantheon Books, Bollingen Series XLIX. ISBN-13: 978-0691098319 [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2019; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

Endereço para correspondência Correio eletrónico: alinebasso@gmail.com (Aline Basso)

*

Brasil, artista visual e professora, estudante de doutoramento.

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