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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.28 Lisboa Dec. 2019  Epub Dec 31, 2019

 

Artigos Originais

Blaufuks & Molder contra o império das selfies: Auto retrato, auto representações e selfies no universo da fotografia

Blaufuks & Molder against the empire of selfies: Self portrait, self representations and selfies in the universe of photography

Armando Jorge Caseirão1  , Professor

1Professor Universidade de Lisboa, Faculdade Arquitectura. R. Sá Nogueira, 1349-063 Lisboa, Portugal.


Resumo

Análise e comparação entre auto-retratos, auto representações e selfies. A analise a partir do trabalho de dois artistas portugueses contemporâneos e da mesma cidade, que praticaram e praticam o auto-retrato ou auto representação em fotografia: Daniel Blaufuks e Jorge Molder, em contraponto com os milhares de selfies auto promotores que diariamente são partilhadas na internet.

Palavras chave: Auto-retrato; Fotografia; Selfies; Blaufuks; Molder

Abstract

Analysis and comparison between self portraits, self representations and selfies. The analysis is based on the work of two contemporary Portuguese artists and the same city, who practiced and practiced self-portrait or self-representation in photography: Daniel Blaufuks and Jorge Molder, in counterpoint to the thousands of self-promoting selfies that are shared daily in the Internet.

Keywords: Self Portrait; Photography; Selfies; Blaufuks; Molder

"A importância da fotografia já não advém apenas da utilização que fazemos dela, mas também, e de forma cada vez mais assustadora e amadora, de como ela nos utiliza.", Esta frase encontrava-se à entrada do nª 25 da rua Rodrigo da Fonseca, na Galeria Ether, Vale tudo menos tirar olhos. A galeria iniciou trabalhos em meados dos anos 80 e ainda não havia redes sociais, nem tão pouco internet, no entanto parecia adivinhar o que o futuro nos esperava.

Um auto-retrato é uma representação que o artista faz de si mesmo, e teve a sua grande divulgação na renascença italiana. O auto-retrato destina-se a mostrar e expor os sentimentos do retratado ao espectador. Ou de como o próprio pintor se vê com traços físicos e psicológicos. Poderemos considerar que a primeira selfie terá sido realizada em 1839 por Robert Cornelius. Contrastando com a velocidade de hoje, a selfie de Cornelius demorou entre 3 a 15 minutos, pois era o tempo de velocidade das câmaras da época.

Selfie foi a palavra do ano de 2013, pelo Dicionário Britânico de Oxford: Uma fotografia que alguém tira de si, normalmente uma foto tirada com um smarthphone ou webcam e compartilhada via média social. Hoje muitas selfies não são partilhadas sendo simplesmente armazenadas no smarthphone. Segundo o Dicionário de Oxford não será uma selfie pois não foi partilhada, mas decerto que se trata de um auto-retrato. No entanto a grande diferença parece ser que a fotografia trabalha para uma memoria de futuro enquanto a selfie trabalha essencialmente com o momento, com o presente não carregando nenhum passado, e sendo rapidamente ultrapassada por outra. Segundo Andy Warhol, os seus 15 minutos de fama, as pessoas querem-se mostrar e destacar dentro da sociedade no meio da multidão, sendo o individuo o centro da sociedade, e a cultura do eu e o seu exagero; do eu como centro do mundo e da marcação de território. Porém esta marcação de território é banal e generalizada sendo que todos marcam território que julgam global, no entanto as redes sociais só tem a dimensão dos seus amigos e assim revelam-se curtas, com um total de 5.000 amigos e virtuais.

Dois fotógrafos portugueses e contemporâneos de gerações diferentes apresentam no seu percurso artístico dois pares de fotografias, em jeito de auto-retrato bastante similares, mas de datas diferentes. Numa os dois têm a sua imagem reflectida num espelho, noutra é um auto-retrato utilizando binóculos (Fascínio da fotografia, 2015).

Os auto-retratos de Daniel Blaufuks (n. Lisboa, 1963), (Figura 1), são geralmente apropriações de momentos da história da arte ou mesmo da história da fotografia, deverão ser na sua maioria entendidos como revisitações de trabalhos icónicos de representações de Philippe Halsman, ou de Man-Ray, com quem partilha a ideia de que: "a arte está ultrapassada. Precisamos de algo diferente." (Blaufuks, apud Mendonça, 2018b).

Fonte: própria.

Figura 1 Trabalho de Daniel Blaufuks em exposição, Do outro lado do espelho, na F. C. Gulbenkian, 2017. 

Blaufuks tem direccionado o seu trabalho entre a fotografia e a literatura, na forma de vídeos, fotografia, instalações livros de artista e diários fac-similados. Os temas da sua atenção são a ligação entre o tempo e o espaço e a representação da memória privada e pública.

Para Blaufuks o fotografo deve pensar:

mais do que fotografar, neste momento o fotógrafo só pode pensar, porque nós vivemos numa época em que todos somos fotógrafos e todos pensamos que somos fotógrafos e todos estamos armados com armas de fotógrafo. Todos temos telemóveis com câmeras fotográficas no bolso e todos temos, principalmente, meios de partilha e de disseminação de fotografias. Julgamos inocentemente ou não que só por ser partilhado isso possa ser arte. Portanto, cabe ao fotógrafo pensar. (Blaufuks, apud Mendonça, 2018a)

As redes sociais promovem a descoberta do fotografo ou narciso que há em cada um de nós. Os telemóveis, agora equipados com câmaras fotográficas ajudam a emergir fotógrafos amadores. A necessidade de ascender ao estatuto de artista, de estrela, aos seus quinze minutos de fama, foi de todo auxiliada com estes novos aparelhos de ligação directa às redes sociais. As selfies surgem à velocidade de qualquer olhar no espelho, desacompanhadas de qualquer reflexão ou de pensamento estético. As imagens nunca foram tão inflacionadas.

Nos trabalhos de Jorge Molder, (n. Lisboa, 1947), (Figura 2), o próprio usa-se como personagem, como duplicações ou mesmo como réplicas de si. Molder não diz fazer auto-retratos, mas auto-representações. A imagem pode ser ele próprio, embora representando outro. Segundo Molder ele vive a instabilidade do retrato. Rejeita a ideia do auto-retrato como motivo para a auto descoberta ou auto conhecimento. Considera a sua arte uma arte da carnação, uma arte que encontra no corpo um meio de produzir um qualquer efeito de desfasamento identitário. Molder muitas vezes não se reconhece nas suas próprias imagens. (Molder, apud Pinto, 2018)

Fonte: própria.

Figura 2  Trabalho de Jorge Molder em exposição, Do outro lado o espelho, na F. C. Gulbenkian, 2017. 

Molder, apesar de fascinado pelas novas tecnologias, não usa as redes sociais, nunca usou e não sabe nada sobre isso. Diz mesmo que por razões ideológicas é contra. E que não precisa de razões para ser contra. Em 2014 apresentou cinco imagens de grande dimensão em outdoors na Av. das Forças Armadas em Lisboa, e em 2018 tem uma imagem da sua cara numa tela gigante de 12X15 metros da série A origem das espécies, na Rocha, Av. 24 de Julho (Gomes, 2018). Molder admite que a rua não é como veiculo expositivo o seu habitat nem o seu território natural. A sua obra tem-se centrado sobretudo na interpretação do subconsciente, na representação da carnalidade e no rosto como paisagem. (Molder, apud Bertrand, 2014)

Nas redes sociais os proprietários de cada mural, para além das inúmeras selfies que publicam, traçam o seu próprio retrato, publicam fotos do que comem, de onde estão, da saída para férias e com quem, do ginásio, dos filhos, do cão e do gato. O somatório destas fotos será um retrato psicológico. Dizem quantos anos têm, em que escola estudaram de que cidade ou aldeia. Podemos saber em que faculdade estudaram e onde foram empregados, primeiros, segundos e terceiros empregos. Quem são os seus amigos, porque clube torcem e se são solteiros ou com quem casaram. Podemos saber de que música gostam, que livros lêem e que programas vêem na televisão. Podemos saber a sua roda de contactos, de quem são amigos e melhor, dividir os amigos por: amigos do trabalho, da escola, conhecidos, etc. Podemos saber os seus contactos, de email e de telefone. Podemos saber isto de uma pessoa sem sequer a conhecermos. Toda esta informação é prestada de livre vontade.

Mas também poderemos criar perfis falsos, de pessoas que não existem ou mesmo criar perfis de outras pessoas fazendo-se passar por elas. O roubo da identidade, ou confusão de identidades ou a proliferação de pessoas com o mesmo nome, leva a que se possa dizer que Os Lusíadas não foram escritos por Luís de Camões, mas por um homem com o mesmo nome.

Desde o aparecimento da fotografia que, pintura e fotografia traçaram caminhos paralelos. Os primeiros fotógrafos foram pintores, que já possuíam conhecimentos de arte visual, de composição, de forma visual, de perspectiva, de claro escuro, de cor, entre outros saberes. As regras das composições em fotografia baseavam-se em regras da composição em pintura, passavam pela importância do olhar e, procurava-se a harmonia de linhas, de manchas e volumes e de planos. Na pratica isto reflecte-se por exemplo em retratos onde as poses são as mesmas e onde a iluminação é também a mesma ou semelhante. Isto será válido para retratos como para os auto retratos. Assim, os resultados em fotografia são idênticos diferenciando-se somente o suporte.

Para Blaufuks, a fotografia alcançou um lugar como arte, e de certa forma terá sido a sua ascensão e divulgação que iniciou a sua decadência porque se tornou simples, fácil e acessível a todos. Ainda segundo Blaufunks: tirar uma boa fotografia qualquer pessoa sabe tirar. Agora dar um significado a essa fotografia, será criar um contexto artístico pelo seu carácter poético e próximo da arte, seja pelo lado da informação patente na fotografia que a transforma com o passar do tempo em fotografia documental. (Blaufuks, apud Mendonça, 2018a)

A fotografia contemporânea, ao chegar à quase totalidade dos seres humanos, ao se tornar democrática e igual para todos, com a sua fácil acessibilidade, tornou-se um instrumento de interposição entre o homem e o meio, um perfeito captador da realidade. Vivemos num mundo da inflação de imagens, onde elas se sobrepõem e alinham, afirmando-se e questionando-se num enredo de múltiplos significados. Tudo é fotografável. Há quinhentos anos para ver uma imagem o homem tinha de ir a uma igreja, e não será de estranhar a palavra imagem no sentido religioso. Com a impressão, as imagens tornaram-se mais acessíveis aos olhos dos consumidores. De acessíveis tornaram-se invasoras. De certa forma pensa-se que actualmente num ano se realizaram mais imagens fotográficas do que desde o inicio da fotografia até hoje. Produzir imagens tornou-se um habito comum, e cultural, pois hoje qualquer telemóvel ou tablet tem uma câmara fotográfica. Existem sites e programas de fotografia, assim como aplicações para a postagem instantânea de imagens. A acção do fotografar e de 'postar' é assim mais rápida do que qualquer reflexão sobre a própria imagem e todo o volume de imagens é disponibilizado a todos, geralmente de acesso livre. Curiosamente passou-se a imprimir menos imagens, a materialização da imagem e a sua fixação em papel (ou outro qualquer material) viu os seus números bastante reduzidos. O inicial formato quadrado do Instagram remete o observador para o médio formato das antigas câmeras de 4x4 ou 6x6, enquanto que no Facebook o formato de 6x4 tende para o 35 mm das câmeras analógicas e dos full frames.

Será de referir também nas nude selfies, selfies sem roupa, simplesmente conhecidas por nudes. Se as selfies foram banalizadas, também as nude selfies o ficaram, com a partilha viral de algumas celebridades de reality shows americanos, mas difundidas à escala global. Essas figuras tidas por alguns como ícones ou modelos sociais, foram rapidamente e amplamente imitadas, por uma legião de fans. Nas redes sociais a partilha é banalizada com o termo send nudes.

Há duzentos anos em 1821, a inquisição espanhola abriu um processo contra Goya devido a sua pintura de A Maja desnuda, que geralmente está emparelhada com A Maja vestida. As pinturas são de 1800 e estão presentes no Museu do Prado. Certo é que se esta pintura fosse publicada hoje no Facebook o mural seria bloqueado, pois não é admitida qualquer nudez frontal, ou algo como mamilos. Seja desenho, pintura ou fotografia, histórica ou actual, arte ou banal, toda a nudez será punida. Assim para contornar os algoritmos avaliadores dos conteúdos, quem posta as imagens terá de camuflar certas zonas da imagem. Poderá existir alguma nudez mas disfarçada e tapada. Goya, com alguma dificuldade conseguiu escapar do processo contra si pela pintura da Maja desnuda continuando como "Primeiro Pintor da Câmara." O Facebook assim como outras redes sociais, não permitem a publicação de nudez, sendo a vigilância da matéria feita pelos próprios utentes, que podem ou não denunciar as imagens que achem improprias.

Nesse tipo de retrato existem numerosos filtros e aditivos conforme o dispositivo de telemóvel ou tablet, podendo ao auto-retratado colocar-se em ambientes variados. Um dos mais comuns será a transformação do auto-retratado em animal patusco de pelúcia, pequenos adereços que se sobrepõem ao retrato dando umas bochechas, uns dentes de coelho, umas orelhas, ou então uns simples óculos redondos extravagantes, conferindo um ar de personagem intelectual. Todas estas alternativas e adições se substituem ou sobrepõem ao duke face, uma pose de selfie bastante em voga, nas camadas mais juvenis e não só. Esta tendência e aplicação de adicionar orelhas de coelho ou dentes de rato às selfies, poderá ter paralelismo com um dos passatempos de quem folheia um jornal ou revista para por acrescentar algo ás imagens e retratos. Assim um retrato de uma figura com um sorriso aberto e áureo, logo perde um dente ao ganhar uma mancha de esferográfica, perde também um olho, mas ganha uma pala, novos penteados e cornos diabólicos. Para além de divertido verifica-se toda uma pose do modelo.

Na fotografia quando se dispara procura do momento, a uma velocidade de fragmentos do segundo, pouco se pensa para além do enquadramento. Toda a composição da imagem é estabelecida à posteriori, isto é, verificada depois do disparo, por exemplo a regra dos terços ou a regra de ouro. Estes princípios geométricos, na composição da pintura são ser lançados de inicio. Os novos aparelhos, telefones ou tablets possuem duas ou mais câmaras sendo situadas uma na frente do lado da tela, geralmente de pior resolução e outra ou outras nas costas do aparelho podendo o utilizador ver na tela o que se está a fotografar e melhorar o enquadramento, ou fotografar com a câmara da frente, modo selfie e ver-se na tela como se de um espelho se tratasse; muitas das selfies são feitas ao espelho para utilizar a câmera de melhor resolução.

Actualmente existe uma aplicação da Google art and culture que oferece vários aplicativos, ver obras de arte em grande resolução, visitar museus virtualmente através da street view, conhecer detalhes e curiosidades desses museus ou obras. Entre varias aplicações surge a aplicação art selfie, que por meio de inteligência artificial mostra qual a obra de arte, retrato, que mais se assemelha á selfie feita pelo usuário. Os resultados podem ser partilhados nas redes sociais. Em jeito de conclusão, enquanto num auto-retrato de pintura ou fotografia o retratado é o próprio autor, a selfie pode conter mais do que um indivíduo, ser de um par de pessoas, onde uma faz a foto e a outra só se enquadra, ou de um grupo.

Pode-se estar numa selfie sem se ser o autor, logo seria legitimo o termo auto-selfie para uma selfie de autor. à selfie não se lhe confere qualquer valor artístico.

Referências

Bertrand, Rita (2014) "Jorge Molder: Era um menino da mamã, mas bastante independente." [entrevista] Sábado Disponível em: https://www.sabado.pt/vida/pessoas/detalhe/jorge-molder-era-um-menino-da-mama-mas-bastante-independenteLinks ]

Fascínio da fotografia. (2015). Duas fotografias, Jorge Molder e Daniel Blaufuks, 2002. [blog] Disponível em: https://fasciniodafotografia.wordpress.com/2015/07/24/duas-fotografias-jorge-molder-e-daniel-blaufuks-2002/Links ]

Gomes, Sérgio. (2018). Uma cara na parede ou Jorge Molder como peixe fora de água. Publico. Disponível em: https://www.publico.pt/2018/05/31/culturaipsilon/noticia/uma-cara-na-parede-ou-jorge-molder-como-peixe-fora-de-agua-1832747Links ]

Mendonça, Luís (2018a). Cabe ao fotografo pensar [entrevista] In Instituto Português de Fotografia: Blog. Disponível em: https://www.ipf.pt/site/entrevista-daniel-blaufuks-cabe-ao-fotografo-pensar/Links ]

Mendonça, Luís (2018b) Personalidades da Fotografia: Jorge Molder, fotógrafo do eu e do outro [entrevista] In Instituto Português de Fotografia: Blog. Disponível em: https://www.ipf.pt/site/personalidades-da-fotografia-jorge-molder/Links ]

Mendonça, Luís (2018c). Daniel Blaufuks: Precisamos de um certo grau de identificação com a história. In à pala de Walsh. Disponível em: http://www.apaladewalsh.com/2018/12/daniel-blaufuks-precisamos-de-um-certo-grau-de-identificacao-com-a-historia/Links ]

Pinto, Tânia (2018), "Jorge Molder em entrevista." in Prelo: Imprensa Nacional, Disponível em: http://prelo.incm.pt/p/por-tania-pinto-ribeiro-e-o-unico.htmlLinks ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2019; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

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