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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.28 Lisboa dez. 2019  Epub 31-Dez-2019

 

Artigos Originais

O Sólido e o Etéreo na Obra de Sérgio Niculitcheff

The Solid and the Ethereal in the Work of Sérgio Niculitcheff

Ariane Daniela Cole1  , artista visual

11artista visual Universidade Presbiteriana Mackenzie Rua da Consolação, 930. Consolação, São Paulo, SP, 01302-907, Brasil


Resumo

Sérgio Niculitcheff, artista da Geração 80, grupo que despontou na década de 1980 com a exposição intitulada: A pintura como meio, teve sua visibilidade muito tímida frente à potência de seu trabalho, que vem sendo reconhecido ao longo do tempo. A sua obra pode ser abordada de diversos pontos de vista, o que a torna densa e rica. Optamos aqui, abordá-la do ponto de vista da fenomenologia, considerando a sua inevitável condição contemporânea, evidenciando a importância da dimensão simbólica em sua obra.

Palavras chave: Sérgio Niculitcheff; pintura; arte visual; imagem

Abstract

Sérgio Niculitcheff, an artist from 80 Generation, a group that emerged in the 1980s with the exhibition titled: Painting as a medium, had its visibility very timid considering the power of its work, which has been recognized over time. His work can be approached from different points of view, which makes it dense and rich. We have chosen here to approach it from the point of view of phenomenology, considering its inevitable contemporary condition, highlighting the importance of the symbolic dimension in his work.

Keywords: Sérgio Niculitcheff; painting; visual art; image

Introdução

Artista da Geração 80, grupo que despontou na década de 1980 com a exposição intitulada: A pintura como meio, teve sua visibilidade muito tímida frente à potência de seu trabalho, que vem sendo reconhecido ao longo do tempo.

Mesmo que os artistas de sua geração migrassem da pintura para o objeto, o ready made e a instalação, o artista manteve-se fiel ao seu trabalho, fez um movimento inverso, trazendo os objetos do cotidiano para a sua pintura, estabelecendo um jogo entre planaridade e volumetria, entre objetividade e subjetividade, numa rota sem desvios, aprofundando e adensando seu projeto poético, desafiando o ideário que se construiu sobre a morte da pintura e contribuindo assim para a sua manutenção.

Em contraponto ao rigor da observação, de matriz renascentista, seus procedimentos técnicos envolvem muitas vezes, expor a pintura à intempéries e ações imprevisíveis, dessacralizando de muitos modos a pintura, estabelecendo diálogo e vínculo com o debate contemporâneo sobre a arte.

Embora sua obra apresente objetos do cotidiano, onde seu apreço pela forma, privilegiada, protagonista da imagem, se origine de observação minuciosa e disciplinada, gerando imagens muito próximas às aparências do real, remetendo às disposições platônicas das imagens, elas se apresentam de forma enigmática e ambivalente, provocando nossa imaginação, nosso pensamento.

A cadeira, a pedra, o colchão, o extintor de incêndio que flutuam, livros que se incendeiam, que dormem sobre nuvens, conchas, forquilhas e árvores, torres e casas que se fundem, escadas que alcançam nuvens (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4), são imagens que nos convidam ao devaneio.

Fonte: acervo do artista

Figura 1  Sérgio Niculitcheff, sem título, 2009, acrílica sobre papel, 113 x 77 cm, São Paulo, coleção particular, 

Fonte: acervo do artista

Figura 2  Sérgio Niculitcheff, sem título, 2007, acrílica sobre papel, 113 x 77 cm, São Paulo, coleção particular, 

Fonte: acervo do artista

Figura 3  Sérgio Niculitcheff, sem título, 2011, acrílica sobre tela, 20 x 20 cm, São Paulo, coleção particular. 

Fonte: acervo do artista

Figura 4  Sérgio Niculitcheff, sem título, 2006, acrílica sobre tela, 150 x 190 cm, São Paulo, coleção particular 

O cuidado com a fatura, seja das suas pinturas, assim como das gravuras, e as associações que o artista realiza, atribui aos objetos, a princípio ordinários, um caráter extraordinário, se aproximando assim do entendimento aristotélico do conceito de mimese. A aparente solidez e rigor das formas, seu apreço pela harmonia, pela ordem, alinhadas à tradição renascentista, se mostra objetiva, rigorosa, quase científica, diurna (Figura 5), todavia, ao mesmo tempo, muitas vezes, propõe uma atmosfera onírica, em suspensão, noturna, desafiando a gravidade, esfumaçando seu foco, e remetendo à associações de forte teor simbólico (Figura 6). Assim, embora a tradição renascentista se afirme pela objetividade e rigor, o artista também estabelece fundamentos contemporâneos em seu trabalho na medida em que evoca a ação do pensamento.

Fonte: acervo do artista

Figura 5  Sérgio Niculitcheff, sem título, 2006, acrílica sobre papel, 113 x 77 cm, São Paulo, coleção particular, 

Fonte: acervo do artista

Figura 6 Sérgio Niculitcheff, sem título, 2009, acrílica sobre tela, 90 x 90 cm, São Paulo, coleção particular. 

Podemos dizer que a obra de arte emerge do olhar do artista e se realiza no olhar do expectador, favorecendo diversos olhares, conjuminando e agregando percepções, em uma abstração conjunta. Do mesmo modo, a obra de Sérgio Niculitcheff, pode ser abordada de diversos pontos de vista, o que a torna densa e rica.

Buscamos aqui, abordá-la do ponto de vista da fenomenologia, considerando a sua inevitável condição contemporânea, trazer o conceito de imaginação material para observarmos como em sua ação, em seu embate com a matéria, objetiva, alcança em sua vontade de criar, a imanência do imaginário, convidando o expectador de sua obra aos devaneios da imaginação a partir de objetos banais, sugerindo associações e dormências arquetípicas.

Uma figura sempre oferece o que pensar/imaginar. Para além de suas relações intrínsecas, de seu contexto interno, suas relações entre figura e fundo, com outras figuras que habitem o mesmo campo visual, uma imagem também se insere e se relaciona com seu contexto, como num circuito de fenômenos conectados (Samain, 2012). Na medida em que estas se interconectam com outras imagens, interagem e se contaminam mutuamente.

Diante destas características que envolvem as imagens, Samain (2012) propõe uma questão:

Ouso dizer que a imagem - toda imagem - é uma forma que pensa. A proposição é tanto mais ambígua e complexa que chega a insinuar - até sugerir - que, independentemente de nós, as imagens seriam formas que, entre si, se comunicam e dialogam. Com outras palavras: independentemente de nós - autores ou espectadores - toda imagem, ao combinar nela um conjunto de dados (traços, cores, movimentos, vazios, relevos, e outras tantas pontuações sensíveis e sensoriais), ou associar-se com outra(s) imagem(ns), seria uma "forma que pensa" (Samain, 2012:23).

Tratam-se de fenômenos que nos indagam, se colocam diante de nós como sujeitos que nos arguem e nos convocam a pensar. Repositórios de memórias, sensações, emoções, memórias, e pensamento, tanto de seu autor como de todos os seus expectadores, geram densas camadas de significação.

Mas, assim como são capazes de comunicar, imagens também ocultam, se recusam a revelar extratos mais profundos de sua existência e importância. Para Bateson (2000 apud Samain, 2012), nem as formas, nem as imagens, ou mesmo o cérebro pensa, o que pensa é o cérebro dentro de um homem que é parte de um sistema que inclui o ambiente.

Toda imagem é fenômeno resultante de uma expressão, manifestação que emerge de uma experiência e que vem à luz, revelando-se. Experiência que implica em um contexto, que depende da existência do tempo e do espaço, da luz da sombra, de um suporte, e para ser imagem, de seu expectador, com o qual se relaciona em um movimento de via dupla, de dentro para fora e de fora para dentro. "Sem chegar a ser um sujeito, a imagem é muito mais que um objeto: ela é o lugar de um processo vivo, ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é pensante" (Samain, 2012:31). "Diante dela, o espectador sente-se como se estivesse diante de um outro que o interpela." (Tassinari, 2001:145).

Assim, a obra de arte se constrói por meio de intersubjetividades, em uma relação simétrica entre sujeitos. Já que é necessário que cada um seja capaz de inferir o mundo do outro dentro de si, retendo um núcleo intersubjetivo, na direção da construção de uma rede de socialização e história constitutiva da cultura, propõe um jogo entre olhares, no sentido de construir uma trama intersubjetiva, que não emerge somente da obra, exige do espectador um esforço. (Tassinari, 2001)

O que quer dizer esta imagem (Figura 4) que nos mostra uma casa que repousa sobre uma forma que remete à forma da nuvem, etérea, mas ao mesmo tempo sólida, que recebe luz e projeta sombras tal qual as paredes da casa? Certamente é uma imagem aberta, que possibilita inúmeras interpretações. Buscamos assim na antropologia visual e na imaginação material proposta por Bachelard um caminho possível de contribuição para o enriquecimento do entendimento da obra deste artista evitando assim uma leitura superficial e redutiva de sua obra.

A imaginação material proposta por Bachelard (Pessôa, 2008), propõe ao espectador, em contraposição das disposições da ciência formal, um exercício da capacidade de abstração, tal qual o artista o faz, em sua postura ativa diante da matéria, resistente, com a qual sua mão, em embate, a manipula, a elabora em uma constante vontade de criar. Sugere que sejamos capazes, assim como criamos teoremas, sejamos capazes de operar devaneios, criar poemas, dando asas à nossa imaginação.

Por oito anos tivemos a alegria de conviver e observar este obrar meticuloso e disciplinado de Sérgio Niculitcheff sobre suas gravuras, no atelier que mantemos, eu e meu companheiro Artur Cole. Muitas das vezes pudemos observar, de modo direto ou indireto, a presença recorrente dos elementos fundamentais da vida, como o fogo, a água, a terra e o ar. Para Bachelard (Apud Pessôa, 2008:3), tratam-se de:

Imagens primitivas que substanciam o que há de material e dinâmico no mundo. Imagens que traduzem temperamentos artísticos, poéticos e filosóficos. Para o pensador há uma carência de estudos que tratam da materialidade na arte. Há que serem notados os devaneios materiais que que antecedem à contemplação estética. Os quatro elementos da natureza são vistos na sua obra como sentimentos humanos primitivos, realidades orgânicas primordiais e temperamentos oníricos fundamentais

A maior parte, senão todas, as figuras evocadas na obra de Niculitcheff se originaram no tempo, num tempo de tenra infância e adolescência, em um plano individual, porém também em um tempo imemorial, longínquo, formadas lentamente pela cultura em um plano coletivo. A forma do livro, da casa, da escada, da nuvem, da concha, entre outras, habitam nossa memória, convocam nossas sensações, emoções, pensamentos, proporcionando ao artista a possibilidade de amalgamar toda a carga simbólica elaborada, construída e atualizada ao longo do tempo.

Assim como as imagens têm capacidade de se comunicar com seu contexto espaço-temporal também viajam no tempo. Sabemos que a dimensão simbólica é um componente do conhecimento integrante da cultura constituída ao longo do tempo. "O conhecimento consiste na captura e na observação do princípio vital que trabalha todo fenômeno. A memória humana preserva a lembrança daquilo que foi, assegura a perenidade do passado sob a constante mudança" (Lescourret, 2012:81).

Tanto a ideia, o conceito quanto a forma do livro, pode se referir em um primeiro momento à ciência, à constituição da memória, do conhecimento, da imaginação criadora. Em um livro podemos encontrar um mundo inteiro, desde as mais ínfimas partículas de suas estruturas, até a vastidão do cosmos. O próprio universo pode ser visto como um grande livro a explorar, desvendar e descrever. (Chevalier & Gheerbrant, 1999). Quando aberto, revela, comunica, se expande, quando fechado oculta, assim como nosso ser. Suas páginas podem ser preenchidas com imagens, textos ou brancas aguardando inscrições.

Já o fogo nos remete a humores extremos, elemento primordial do universo vive no cosmos assim como no coração da Terra, pode ser entendido tanto em sua ascepção positiva, ascensional, como fonte de calor e de luz, de conforto, de iluminação divina, assim como em seu aspecto negativo, capaz de nos causar dor e destruição.

Ao tomarmos como exemplo a pintura apresentada na Figura 6, veremos livros amontoados, alguns abertos, outros fechados. O livro associado ao fogo, pode nos lembrar a tradição iluminista ou os terrores de tempos obscuros. O artista assim, propõe uma obra ambivalente, aberta e silenciosa.

A nuvem não tem forma definida, nem corpo, é etérea, mutante, instigante, abriga formas e cores ilimitadas, objeto visual da pintura e da fotografia, ela pode ser vista como espelhos que devolvem cores, ou, aos olhos de um cientista, como arautos de fenômenos meteorológicos. Trata-se de um elemento celeste, símbolo da transcendência, faz parte do espaço ilimitado. Suportando um livro fechado, quantas interpretações poderia gerar esta associação?

Mas, sabemos também que o conhecimento, assim como a cultura, é móvel, se transforma ao longo do tempo, impactando nosso entendimento dos fenômenos, e por mais que busquemos interpretar a obra de Sérgio Niculitcheff do ponto de vista da sua dimensão simbólica, ela continuará nos desafiando em sua ambiguidade, em suas múltiplas proposições, em seu mistério (Figura 7).

Fonte: acervo do artista

Figura 7  Sérgio Niculitcheff, sem título, 2009, acrílica sobre tela, 100 x 125 cm, São Paulo, coleção particular. 

Neste sentido, a disposição da obra de arte de expressar uma vivência, e de impactar nossos sentidos e pensamentos, expõe o quanto ela, obra de arte, participa e colabora para a constituição da cultura e, portanto, do conhecimento, portador de uma natureza tanto objetiva quanto subjetiva (Figura 8).

Fonte: acervo do artista.

Figura 8  Sérgio Niculitcheff, sem título, 2003, acrílica sobre tela, 190 x 198 cm, São Paulo, coleção particular. 

Por todas estas razões e contrapontos, em sua aparente objetividade e silêncio, sua obra vibra.

Referências

Alain-Bois, Ives (2009) "Pintura: a tarefa do luto". In: A pintura como modelo. São Paulo: WMF. Martins Fontes. [ Links ]

Chevalier, Jean e Gheerbrant, Alain (1999). "Dicionário de Simbolos". Trad. Vera da Costa e Silva. 13 ed. Rio de Janeiro: José Olympio. [ Links ]

Danto, Artur (2006) "O mundo da Arte". Apontamentos. Revista Bienal de Estética e Filosofia da Arte do Programa de Pós-graduação em Filosofia - UFOP - Universidade Federalde Ouro Preto. ISSN: 2526-7892 Disponível em URL: https://www.periodicos.ufop.br/pp/index.php/raf/article/view/791/746Links ]

Lescourret, Marie-Anne. (2012) "Aby Warburg, o não lugar de uma arte sem história", in Samain, Etienne (org.) Como pensam as imagens. Capinas, S.P: Editora da Unicamp, pp 81-87. [ Links ]

Niculitcheff, Sérgio (2009) "Imagem da Memória". Tese de doutorado. UNICAMP. 2009. Disponível em URL: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/284023Links ]

Pessôa, André Vinicius (2008). "Gaston Bachelard e a imaginação material e dinâmica". In: XI Congresso Internacional da ABRALIC. Tessituras, Interações, Convergências. Disponível em: http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/044/ANDRE_PESSOA.pdfLinks ]

Samain, Etienne (2012) (org.) "As imagens são como bolas de sinuca: como pensam as imagens". In Samain, Etienne (org.) Como pensam as imagens. Capinas, S.P.:Editora da Unicamp, pp 21-40. [ Links ]

Tassinari, Alberto (2001) O espaço Moderno. São Paulo, Cosac Naify Edições. [ Links ]

Wisnik, Guilherme (2015) "Dentro do nevoeiro: diálogos cruzados entre arte e arquitetura contemporânea." Tese de doutorado. FAUUSP. 2012. 262 pg. [Consult. 2016-01-18] Disponível em Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16133/tde-03072012-142241/pt-br.php . [ Links ]

Recebido: 01 de Janeiro de 2019; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

Correio electrónico: arianedaniela.cole@mackenzie.br (Ariane Daniela Cole)

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