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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.28 Lisboa Dec. 2019  Epub Dec 31, 2019

 

Artigos Originais

Souke, de Kennia Passos: a arte como pesquisa e o método como criação

Souke, by Kennia Passos: art as research and method as creation

Ana Flávia Merino Lesnovski1  , professora

1artista multimídia e professora Universidade Estadual do Paraná, Campus II Curitiba, Licenciatura em Artes Visuais Rua dos Funcionários 1357- Cabral, Curitiba, Paraná, CEP 80035-050, Brasil.


Resumo

Souke (2018), de Kennia Passos, éuma obra de eletrônica vestível produzidano contexto da formação e pesquisa em arte.Observamos o método utilizado pela artista a fim de refletir sobre as questões da poé-tica em arte eletrônica no sentido do fazer.Descrevemos o tripé hipótese-experimentação-prototipagem, com foco na experimentação como ação artística e nos objetostécnicos como atores em rede. Provocando odiálogo entre artista e técnica, Souke expõe osconceitos e mecanismos de dentro para fora,virando a caixa-preta do avesso.

Palavras chave: arte eletrônica; metodologia poética; eletrônica vestível

Abstract

Souke (2018), by Kennia Passos, is a wearable electronics piece made in the context of art research and education. We observe the method used by the artist in order to reflect upon the matter of making in the electronic arts. We describe the trio hypothesis-experiments-prototypes, focusing on experimenting as an artistic gesture and on technical objects as actors in a network. By provoking dialog between artist and technique, Souke exposes its own concepts and mechanisms, turning the black box inside out.

Keywords: electronic arts; poetics methodology; wearable electronics

Introdução

Souke (2018) é uma obra de eletrônica vestível realizada por Kennia Passos comoparte de projeto de conclusão de curso em Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Estadual do Paraná, Campus II, Curitiba, Brasil. Como objeto artístico produzido no contexto da educação em arte, observá-lo nos informa sobre o processo de criação (designado aqui como poética), na medida em que, além de obra,Souke também é um trabalho de reflexão e pesquisa. Exibida em dezembro de2018 no evento #Conexão IV, no Museu Municipal de Arte (MuMA) em Curitiba, Souke resulta também em um memorial reflexivo em que o processo de criaçãoé documentado, o que propicia terreno fértil para a análise da poética da artista.

Iremos observar o método de hipótese-experimentação-prototipagem empregado em Souke e a forma como se relaciona com o pensamento sobre a cria-ção em arte eletrônica. Fundamental aqui é o conceito de experimentação, não como o ato comprobatório (da teoria para a prática) da ciência tradicional, mas como o experimentar artístico enquanto ação de risco, brincadeira, exploração perigosa e rica:

A noção de ação é interessante nas artes, uma vez que coloca o experimento dentro de uma relação sujeito-ambiente. Uma ação experimental é baseada na observação e intervenção, explorando as relações desconhecidas entre o sujeito e a ação. (...) A experimentação aqui está muito mais relacionada às suas origens etimológicas de risco e perigo. A palavra experiência tem origem do verbo latino periri, que significa “experimentar”, mas também “correr riscos” e até “morrer” - pensar em perigo. O prefixo ex implica um movimento, um “sair”. (Coessens, 2014:7)

É este o percurso em que nos lançamos. Rumo ao perigo, os experimentos desvendam os modos de ser de artista e objetos técnicos, expõem o diálogo e os conceitos inscritos nos aparatos. Souke evidenciará, por fim, aquilo que está por dentro, expondo reflexivamente as estruturas de sua própria criação.

1. Artista e técnica: entre o que se quer e o que se pode

A arte eletrônica mostra-se desafiadora para o artista iniciante, uma vez que as bases curriculares em arte não costumam privilegiar a experiência direta na área. De fato, nota-se que as primeiras hipóteses levantadas para o projeto de Souke (Figura 1) representam com mais intensidade a experiência prévia de Passos com formação técnica em moda pelo Senai-PR (representada no uso de dobraduras de tecido), aliada ainda a uma imaginação da técnica. Para levar o projeto de Souke ao cabo, Passos opta por um percurso de descoberta individual da técnica: escolhe experimentar em eletrônica como parte da poética, em oposição à delegação da realização a um agente técnico externo.

Fonte: acervode Kennia Passos

Figura 1 Hipótese preliminar de Souke, incluindomochila para ocultar o maquinário 

A questão do envolvimento do artista na produção técnica no âmbito da arte eletrônica tem sido tema de debate desde Arlindo Machado (1997) até Cesar Baio (2012). Marcadamente atravessados pela filosofia de Vilém Flüsser (1985)e Gilbert Simondon (1969), há uma questão central nestes textos sobre a pertinência da ação direta do artista sobre os aspectos técnicos de uma obra de arte eletrônica. Ora, neste momento não nos cabe prescrever mas observar o que temos diante de nós. Neste caso, trata-se se uma artista que optou pelo desenvolvimento técnico como prática artística. Em Passos, a tekhnè retoma por assim dizer o sentido grego do saber fazer, entre arte e técnica:

A tekhnè compreende as atividades práticas, desde a elaboração de leis e a habilidade para contar e medir, passando pela arte do artesão, do médico ou da confecção do pão, até as artes plásticas ou belas artes, estas últimas consideradas a mais alta expressão da tecnicidade humana. (Lemos, 2002:26)

Seguindo esta linha de raciocínio, se os aparatos técnicos são materializa-ções de conceitos (Flüsser, 1985), caberia ao artista, como “programador de máquinas abstratas» (Baio, 2012:9), reconhecer e dialogar com os conceitos embutidos nos aparatos. O aparato joga para automatizar; a filosofia joga para expor o jogo (Flüsser, 1985:38). O artista opera como provocador de pensamento ao construir objetos:

Em vez de se vincular aos modelos conceituais programados nas máquinas estabelecidas, ele opera por meio da criação de seus próprios aparatos, programando sua visão de mundo e abrindo diálogo com os paradigmas estéticos e epistemológicos formalizados nos contextos nos quais sua proposta é inserida. (Baio, 2012:8-9)

Pois que tipo de encontro ocorre quando o artista ignora os conceitos obscurecidos pela caixa-preta? O desencantamento parece ser uma saída possível, mas em que medida isso é possível ao artista iniciante formado com maior ênfase nas disciplinas humanas do que nas exatas? No caso de Souke, o envolvimento se dá através de aproximações e provocações, como descreveremos a seguir.

2. Experimentação: atores e redes

A partir da hipótese, Passos elabora experimentos pontuais e aproximações técnicas a elementos atravessadores e disruptivos. A isto chamamos de ciclos de iteração e incrementação: a cada etapa, um novo recurso é explorado, ampliando e transformando o repertório técnico da artista.

O primeiro passo é o contato com a costura eletrônica - linha condutiva, diodos emissores de luz (leds) e placa Arduino Lilypad (Figura 2). Evidencia-se Revista Estúdio, artistas sobre outras obras. ISSN 1647-6158 e-ISSN 1647-7316. 10, (28), outubro-dezembro. 73-82.78a dificuldade prática já na utilização dos materiais básicos para a produção. Alinha de costura condutiva não se comporta como um fio regular; sua textura e fragilidade tornam o trabalho de confecção mais complicado e limitam as possibilidades de bordado. O que poderia ser uma costura pautada apenas por necessidade estrutural ou estética agora é submetida à lógica da eletricidade, buscando evitar curtos-circuitos e reforçar pontos de contato.

Fonte:Acervo de Kennia Passos

Figura 2 Experimento de costura com linhacondutiva e leds torcidos em tela de pintura 

Percebe-se também a necessidade de adaptação de técnicas para o contexto local. Muitas obras de referência em eletrônica vestível utilizam leds específicos para a aplicação em tecido - pequenos, próprios para costura e laváveis. No entanto, estes não estão disponíveis prontamente no mercado brasileiro. A solução proposta foi a utilização de leds tradicionais, torcendo seus terminais comum a pinça. Estes são muito mais frágeis e mais volumosos. O conceito provocado passa do discreto brilho oculto sob o tecido ao elemento ornamental - do natural ao artifício. Passos começa a apresentar soluções que incluem paetês, contas e volumes que dialogam com os leds enquanto objetos.

O segundo experimento (Figura 3) consiste no toque como elemento interativo. O sensor de toque por capacitância pode ser usado com diferentes níveis de aproximação do interator; mas quando instalado na vestimenta, a proximidade força a necessidade de contato com a pele do interator. Isso quer dizer que o sujeito precisaria tocar no corpo da artista para acionar o sensor, hipótese rejeitada por Passos durante os experimentos. Como solução, a artista divergiu para o uso de um sensor de luz (LDR), que falseia o toque através da reação à sombra provocada pela aproximação do outro. Assim, Passos tem um toque sem toque, que permite uma intimidade controlada com os interatores.

Fonte:Acervo de Kennia Passos

Figura 3 Experimento com sensor de toqueem bastidor e Arduino Lilypad 

No último ciclo relatado de experimentos, Passos repensa a dobradura abre--e-fecha da hipótese, agora como um elemento móvel. No processo, percebe que o uso de motores implica outras adaptações estéticas, como a adição demais uma placa, volumosos suportes de bateria, e trilhos para evitar a fricção dos fios controladores. Os aspectos artificiais entram novamente em conflito com o ideal de leveza e organicidade anterior.

Durante os experimentos, a artista se permite explorar a técnica, tomando contato com as limitações e provocações que isto traz ao projeto. Cada objeto técnico (sensor, atuador, placa, fio) é um ator na rede de criação de Souke.A costura dialoga com o posicionamento dos elementos; o led torcido levanta a tridimensionalidade; o sensor de luz reage na zona de conforto do corpo; omotor é corpo. Como atores não-humanos, eles não só representam um sentido, nem são inertes, mas dialogam com o humano em equivalência. Latour(2012) aponta que a dicotomia entre humanos e objetos técnicos não faz sentido dentro da perspectiva da teoria ator-rede (TAR); pelo contrário, deve-se ter emconta os diferentes modos de ação dos objetos.

(...) se insistirmos na decisão de partir das controvérsias sobre atores e atos, qualquer coisa que modifique uma situação fazendo diferença é um ator - ou, caso ainda não tenha figuração, um actante. (...) Além de “determinar” e servir de “pano de fundo” para a ação humana, as coisas precisam autorizar, permitir, conceder, estimular, ensejar, sugerir, influenciar, interromper, possibilitar, proibir etc. (Latour, 2012:108-9)

Provocar atores não-humanos através de experimentos implica observar as transformações e os diálogos ensejados pela presença de cada objeto técnico. Ao se propor a tomar contato com a técnica, Passos entrou em relação dialógica com esta e escancarou a arbitrariedade da linha que a separa da arte. Dissolvendo rupturas, ao fim, Souke acaba por incorporar reflexivamente o próprio método como parte da estrutura estética da obra.

3. Fetiche, feitiço, coisa-feita: de dentro para fora

A fase de experimentos leva Passos longe; para que Souke se concretize é necessário um movimento de parada a fim de que o diálogo se arranje em discurso artístico. Nesta fase, a hipótese se transforma em diálogo com a experiência: vê-se que as estruturas móveis e de luz não estão mais ocultas sob o tecido, mas passam a ser instaladas em aberturas compostas de camadas de costura, visí-veis e integradas (Figura 4).

Fonte: Acervo de Kennia Passos

Figura 4 Protótipo da versão final de Souke 

Essas aberturas incorporam a Souke um elemento simbólico que se repeteno tecido failete (usado em forros) e na transparência estrutural: em lugar separar o que é de dentro e o que é de fora, escancara-se o esqueleto, vestindo--o. Sobre e entre as camadas de tecido, Passos revela os percursos dos fios que puxam as estruturas móveis, deixa ver as ligações elétricas, expõe as costuras e as emendas.

Na versão final (Figura 5 e Figura 6), irrompem tridimensionalidades em flores de tecido que dialogam com os leds torcidos. Reforçando a imprevisibilidade, ela utiliza leds RGB automáticos, o que provoca um comportamento errático das luzes. Agitadas, “respiram” e piscam, trocam de cor e apagam como quem deseja e teme o contato com o outro, percebido pelo LDR. Nas outras aberturas, as dobraduras se movem puxadas por fios visíveis, como um títere de si mesmas, atravessando a superfície do corpo até a placa e motores visíveis nas costas da roupa. A tração faz com que os motores, no limite, estalem e deslizem, em movimentos suaves e bruscos.

Fonte: Acervo de Rafael Benaion e Kennia Passos

Figura 5 Detalhe da versão final de Souke 

Disponível em: https://vimeo.com/302787958

Figura 6 Versão final de Souke (frame de vídeo de divulgação). Fonte: Acervo de RafaelBenaion e Kennia Passos 

A caixa-preta é virada do avesso. Fetiche, feitiço, coisa-feita: como os povos Lesnovski, Ana Flávia Merino (2019) “Souke, de Kennia Passos: a arte como pesquisa e o método como criação.”81africanos que fazem seus próprios deuses, a artista-técnica produz sentido ao fabricar o objeto. Haveria neste conflito a revelação de um modo de ser no mundo? A visão do engenho desvenda a mágica ou remagiciza? O deslocamento entre o europeu e o africano em relação ao fetiche nos serve de metáfora ao a pontar o paradoxo:

O anti-fetichista sempre dormente em nós não pode aguentar o descaramento de tais afirmações. Oculte o processo de construção, a arte, o fazer para que não possamos ver! Como você pode de forma tão hipócrita admitir que você tem de fazer, fabricar, assentar, situar, construir essas divindades que o agarram e ainda assim permanecem fora de alcance? (Latour, 2011:46, tradução da autora)

Desvendar mecanismos ao mesmo tempo em que permanece ciente das limitações técnicas permite que se mantenha em diálogo com os significados do atode fazer. É porque o fiz que é divino; porque me escapa é diálogo. “A ideia de mediação técnica presente em toda relação homem-máquina funciona como o movimento de dois astros em órbita mútua, em que o movimento de um é causa e consequência do movimento do outro” (Santaella; Tarcísio, 2015:183). Nem a artista domina a técnica nem a técnica domina a artista, mas um se define pelo outro.

Conclusão: marujos ao mar

Não podemos acreditar ingenuamente que o método descrito não ofereça riscos. Um dos pontos críticos é justamente o momento de parada, em que o conceito proposto na hipótese se atualiza. No meio do caminho, o canto da sereia encanta o artista para cada vez mais longe. Mas dissemos que experimentar é lançar-se ao perigo. É possível que, durante a fase de experimentos, à deriva, o artista nunca mais encontre o caminho de volta. Também é possível que encontre um novo território.

Ao fim, o que se produz não é um sujeito que substitua o engenheiro ou o programador, mas que é artista, com sua bagagem, sua visão de mundo e sua relação particular com o fazer artístico. Souke é o resultado de um processo de aprendizado, uma obra de arte, e a expressão de um método em construção. Deixa entrever em suas estruturas não apenas os fios que a compõem, mas as linhas de sentido que a atravessam. Se para Passos as questões de dentro/fora, natural/artificial, abertura/fechamento são fundantes, é na visão geral de Souke como obra reflexiva e resultado de um método poético que podemos vislumbrar caminhos dialógicos entre artista e técnica.

Referências

Baio, Cesar (2012) “O artista e o aparato técnico: entre os processos artísticos e os métodos da tecnologia.” In: Encontro Anual da Compós, 2012, Juiz de Fora/MG. [ Links ]

Benaion, Rafael;Passos, Kennia (2018)SOUKE [video]. Disponível em <Disponível em https://vimeo.com/302787958 >. Acesso em: 20 dez. 2018. [ Links ]

Coessens, Kathleen (2014) “A arte da pesquisa em artes: traçando práxis e reflexão.” ARJ - Art Research Journal, [S.l.], v. 1,n. 2, p. 1-20, ago. 2014. ISSN 2357-9978. Disponível em: <Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/5423 >. Acesso em: 27 set. 2016. [ Links ]

Flüsser, Vilém (1985) Filosofia da caixa preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec. [ Links ]

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Lemos, André (2002) Cibercultura. Tecnologiae Vida Social na Cultura Contemporânea. Porto Alegre: Sulina. [ Links ]

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Santaella, Lúcia; Cardoso, Tarcísio (2015)“O desconcertante conceito de mediação técnica em Bruno Latour.” Matrizes, vol. 9,núm. 1, enero-junio, 2015, pp. 167-185São Paulo: Universidade de São Paulo. [ Links ]

Simondon, Gilbert (1969) Du mode d’existencedes objets téchniques. Paris: Aubier [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2019; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

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