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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.11 no.30 Lisboa June 2020  Epub June 30, 2020

 

Artigos Originais

O princípio da arte de Marinês Busetti

The principle of Marinês Busetti's art

Paulo César Ribeiro Gomes1 

1Brasil, artista visual. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais. R. Sr. dos Passos, 248 Centro Histórico, Porto Alegre RS, 90020-180, Brasil.


Resumo

Marinês Busetti (Farroupilha, RS, 1958), integra a longa tradição da gravura abstrata no Rio Grande do Sul. Sua obra, de matriz óptica, priorizar o ver em detrimento do olhar. São xilogravuras construídas a partir de módulos simples que chegam, após muito trabalho, às composições complexas. Recorrendo à colagem, e mesmo à pintura, sua obra mantêm o princípio fundador na gravação, alimentada pelos princípios construtivos e mantendo uma inequívoca fidelidade ao meio.

Palavras chave: Marinês Busetti; xilogravura; gravura; arte no Rio Grande do Sul

Abstract

Marinês Busetti (Farroupilha, RS, 1958), integrates the long tradition of abstract engraving in Rio Grande do Sul. His work, of an optical matrix, prioritizes seeing at the expense of looking. His woodcuts are constructed from simple modules that, after much work, reach complex compositions. Using collage, and even painting, his works maintains the founding principle in engraving, nurtured by constructive principles and maintaining an unequivocal fidelity to the medium.

Keywords: Marinês Busetti; wookcut; engraving; art in Rio Grande do Sul

A obra de Marinês Busetti (Farroupilha, RS, 1958) está inscrita na longa tradição de qualidade da gravura no Rio Grande do Sul, iniciada nos anos 1940. Participando do que intitulo de corrente abstracionista ou “Abstrações” (GOMES, 2018), é uma produção que surge nos anos 1960, de matriz abstracionista geométrica, de pouca tradição entre nós, com obras fundadas no apreço pela geometria (Concretismo) e na percepção visual (Gestalt).

Marinês Busetti iniciou sua trajetória nos anos 1980, após graduar-se em Educação Artística na Universidade FEEVALE (RS). Sua atividade dividiu-se, desde então, entre o ensino informal de arte e a produção artística. Sua primeira mostra individual ocorreu em 1987 e passa, a partir de então a participar de salões de arte, mostras coletivas em espaços institucionais e galerias em Porto Alegre (RS), em São Paulo (SP), Rio de janeiro (RJ) e no exterior. Dentre essas apresentações destacam-se a “Gráfica Gaúcha”, em 2008 (Centro Cultural CEEE, Porto Alegre, RS), o “Consórcio de Gravuras”, edição 2010 (Museu do Trabalho de Porto Alegre), a “SP Estampa”, em 2014 (Galeria Gravura Brasileira, SP), a “I Bienal Latino Americana de Gravura e Arte Impressa Rio-Córdoba” (Rio de Janeiro/Córdoba), a “3ª Global Print 2017” (Portugal), a “9ª Bienal Internacional de Gravura do Douro”, em 2018 (Douro, Portugal), em 2019, a mostra “Sincronias Invisíveis” (Fondation Taylor, Paris; Pinacoteca FEEVALE, Novo Hamburgo; Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, UFRGS, Porto Alegre). Em novembro de 2019 a artista realizou uma residência artística no PRALAC - Programa de Residências Artísticas, no Laboratório de Actividades Criativas, LAC (Lagos, Portugal).

A gravura no Rio Grande do Sul tem, a par da marca distintiva da qualidade, algumas características formais destacadas. A primeira delas é a da impositiva permanência do que denominamos de corrente realista, ou seja, a produção figurativa, resultado da escola fundada nos anos 1940 pelos gravados do Grupo de Bagé e do Clube de Gravura. Nesta predominam a crítica social e, na contemporaneidade, as questões de gênero, as manifestações de afetos e relações e as imbricadas relações entre literatura e imagem. Neste universo os nomes de referências são os clássicos Danúbio Gonçalves (1925-2019), Zoravia Bettiol (1935), Paulo Peres (1935-2013), Henrique Léo Fuhro (1938-2006) e Armando Almeida (1939-2013), com a participação contemporânea de artistas como Anico Herskovits (1948), Cava (Wilson Cavalcanti) (1950), Maristela Salvatori (1960), Fábio Zimbres (1960), Nara Amélia (1982), Rafael Pagatini (1985) e Gustavo Freitas (1988). Uma segunda corrente é aquela que denomino de corrente conceitualista, que privilegia as elaborações intelectuais e a absorção dos discursos contemporâneos, principalmente a partir dos anos 1960 e 1970, como a Semiótica, a Lingüística, a Comunicação, a Publicidade etc. Fundadores neste grupo foram Carlos Scliar (1920-2001), Regina Silveira (1939), Romanita Disconzi (1940), com desenvolvimento na obra de Diana Domingues (1947), Liana Timm (1947) e OTA Otacílio Camilo (1959-1989), chegando à contemporaneidade na obra de Carlos Asp (1949), Mário Röhnelt (1950-2019), Miriam Tolpolar (1960), Hélio Fervenza (1963) e Jander Rama (1978). A terceira via desse processo é o que intitulo de corrente abstracionista, surgida nos anos 1960 e que teve sua plena floração nas décadas seguintes. São obras fundadas no apreço pela geometria (Concretismo), a percepção visual (Gestalt), conforme já citado, mas também nas manifestações líricas da abstração. Desse grupo fazem parte o trabalho fundador de Iberê Camargo (1914-1994), Vera Chaves Barcellos (1938), Eduardo Cruz (1943) e José Carlos Moura (1944). Na contemporaneidade destacam-se Maria Lúcia Cattani (1958-2015), Cris Rocha (1967), Helena Kanaan (1961) e Marinês Busetti.

Foram poucos os artistas locais que se dedicaram as formas geométricas e perceptuais na criação de suas obras. Criado em 1971, o álbum Visão multidirecional é composto por serigrafias sobre papel de Rose Lutzenberger (1929), Rubens Costa Cabral (1928-1989) e Luiz Fernando Barth (1941-2017). Resultado da pesquisa intitulada “Expressão em Superfície e Movimento”, desenvolvida no âmbito acadêmico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde os três artistas eram professores, ele propunha a “eleição de uma forma geométrica plana (hexágono) que através de cortes possibilitasse a criação de um espaço ambíguo e o remanejamento de suas partes com o objetivo de obter a criação de formas estéticas” (LUTZENBERGER, 1971). O arrojo das características formais e conceituais deste álbum de referência para a arte no Rio Grande do Sul, e de grande importância para a obra posterior de Rose Lutzenberger, conforme relatamos em “Vozes Dissonantes: a abstração geométrica de Rose Lutzenberger” (GOMES, 2018:168-76), não alcançou, entretanto, maior repercussão no meio artístico local, razão pela qual não podermos afirmar que a obra de Marinês seja tributária desse trabalho e de seus autores. Talvez nisso esteja o maior estranhamento da obra em questão: qual a origem desse apreço pelas imagens geométricas? Trata-se, portanto, de uma experiência solitária e de exceção, o que lhe dá um lugar de destaque dentre os valiosos gravadores contemporâneos. Então, de onde vem sua obra? Podemos aventar algumas possibilidades: da abstração geométrica brasileira, mormente da corrente construtivista, desenvolvida a partir do final dos anos 1940 com seu apogeu nos anos 1960. Neste universo são referências os artistas Franz Weissmann (1911-2005), Lothar Charoux (1912-1987), Amilcar de Castro (1920-2002), Lygia Clark (1920-1988), Geraldo de Barros (1923-1998) Waldemar Cordeiro (1925-1973) e Lygia Pape (1927-2004), entre outros. Da tradição internacional do geometrismo a principal referência é a Op Art, de amplíssima difusão pública no Brasil, principalmente nos anos 1960, com destaques para a obra popularíssima de Victor Vassarely (1906-1997) e, menos conhecida, a de Jesus Rafael Soto (1923-2005). Outro nome que não pode faltar nesse rol de possibilidades, mesmo que tematicamente não tenha afinidade com o trabalho da nossa artista, é o do artista gráfico holandês M.C. Escher (18981972), gravador cuja obra inundou o imaginário de toda uma geração nacional, principalmente nos anos 1970 através de ampla difusão na cultura popular.

A obra de Marinês Busetti articula-se dentro de um universo de possibilidades visuais por meio dos recursos gráficos dos quais ela lança mão. É um trabalho fundado no ver, em detrimento do olhar. Trata-se aqui de um ver inquisitivo, voluntário, dirigido, preciso, certeiro, ao contrário do olhar, que é superficial, mero registro de existência das formas. Explicitando melhor essa colocação podemos dizer que ver “es mucho más que mirar. La visión es algo más que um simple registro mecánico, no es pasiva. El ver implica observar captando las diferencias visibles, salir al encontro de los objetos, explorarlos activamente y saber apropriarse de las características fundamentales que hacen el objeto” (CRESPI & FERRARIO, 1971:104). Se o olhar é automático e involuntário, o ver é programático e demanda envolvimento.

A técnica utilizada pela artista é, prioritariamente, a xilogravura. Um meio de recursos aparentemente limitados mas, que em mãos hábeis, alcança alturas insuspeitadas. Sobre essa elementaridade da xilogravura, Anico Herskovits (1986:12) explica que ela “é o corte de uma imagem sobre madeira e o resultado de sua estampagem sobre papel ou outro material”. Trata-se de uma definição precisa e direta e, isso dito, podemos ir adiante e tratar das xilogravuras de Marinês. São imagens limpas, sem deixar visível de modo ostensivo a marca da matriz (Figura 1, Figura 2). Do ponto de vista da construção das imagens, a artista trabalha prioritariamente por módulos, da mesma forma que suas contemporâneas Maria Lucia Cattani, na gravura em metal, e Liana Timm, nas imagens digitais. Os seus módulos são como protoformas, que podem ser associadas a outras idênticas (pois são oriundas da mesma matriz), em montagens que chegam ao limite do improvável em se tratando de gravuras. O jogo de composições praticado torna possível o dinamismo e a sugestão de movimento óptico que ela alcança.

Figura 1 Marinês Busetti. Estrela - variação 1, 2006. Xilogravura sobre papel wenzou, 0,26 mx 026 m. Coleção da artista. Fonte: https://www.marinesbusetti.com/  

Figura 2 Marinês Busetti. Fractal, Variação 1, 2009. Desenho sobre xilogravura impressa sobre papel camurça preto, 2,40m X 0,80m. Coleção da artista. https://www.marinesbusetti.com/  

Esse apreço pelo módulo fundador, que se desdobra no gosto pelas grandes formas, eleva a unidade como parte intrínseca da totalidade. Não por acaso, os títulos de seus trabalhos indicam esse fascínio pela repetição articulada, em referências aos princípios do origami (como o cisne), do fractal ou do caleidoscópio, modelos modulares que se configuram como ponto de partida para experimentos de intensa vibração visual. Naturalmente isso nos leva a pensar nos tradicionais azulejos, sequências compostas por unidades idênticas. No entanto, Marinês parte da unidade autônoma, que não tem em si a característica modular do azulejo, pois não depende da peça ao seu lado para compor padrões. A artista cria suas imagens por composição, isto é, partindo de uma unidade que, associada à outra, igual ou assemelhada, constitui um novo elemento, conforme podemos ver em obras de grande formato, como Fractal, Variação I, composta a partir da união de 12 cópias da matriz fractal.

Perguntamo-nos: “ainda é gravura o que vemos?”. Se o princípio da gravura é a multiplicidade, inicialmente com vistas à difusão e reprodução de imagens, ela tem, entretanto, qualidades distintivas. Ao falarmos sobre gravuras, é impositivo que consideremos que ela esta fundada na matriz, o que lhe dá a uma característica irredutível frente às outras técnicas. Se formos partir do princípio canônico, acima exposto, a produção de Marinês Busetti não pode ser considerada gravura. Entretanto, se tomarmos o princípio da reprodutibilidade, ou seja, “todos os procedimentos manuais, mecânicos e eletrônicos de multiplicação ou cópia de um modelo como, também, a obra produzida por meio de reprodução” (JANSEN, 2018:18), então sim, temos a matriz gravada e, consequentemente, a gravura. Para além da reprodutibilidade, e da conseqüente perda da aura de obra única, como escreveu Emmanuel Pernoud (1992:9), a gravura é

um procedimento de reprodução contra a reprodução banalizada, pois ao contrário das obras únicas (desenhos, pinturas) ela assume sua própria reprodução, um modo de reprodução sem equivalente, eminentemente superior em qualidade, pois não é tocada pela marca da uniformização foto mecânica e permanecendo uma impressão de humanismo

A artista usa a matriz como ponto de partida para chegar às composições complexas e articuladas. Para melhor compreendermos, é necessário acatar o princípio da persistência, seu modo de manter-se fiel a um modo de operar e a um modelo de construir, trabalhando com o mínimo (uma matriz, uma cor, uma orientação formal) para alcançar a potência máxima da forma (Figura 3). Dessa forma, sendo adepta de uma técnica - a xilogravura -, sem ceder à tentação de variar, perguntamo-nos: “por que não ceder à facilidade proporcionada pelos recursos digitais?” Pois, sujar as mãos, sacrificar o conforto muscular e persistir no modo primevo é distintivo de sua obra.

Figura 3 Marinês Busetti. Estrela Cor 5, 2014. Colagem sobre xilogravura, 0,55m X 0,55m. Coleção da artista. Fonte: https://www.marinesbusetti.com/  

Estamos frente a um caso complexo, uma artista coerente e, ao mesmo tempo, contraditória. Suas grandes composições (chamo-as assim por falta de melhor denominação) são gravuras, mesmo que sejam gravuras só na unidade, pois, nos desdobramentos, a artista recorre à colagem, ao desenho e mesmo à pintura. É a gravura expandida ou como ponto de partida (e não de chegada). Uma criadora que parte do domínio da técnica e investe em recursos de individualização particulares, tais como a ênfase na cópia única, a pintura e o desenho, os acréscimos de elementos díspares, a colagem de materiais, a eliminação parcial dos aparatos de exposição (passe-partout e molduras), a impressão sobre suportes diversos (jornais e revistas), etc. Um universo ímpar fundado no domínio técnico do meio e na excelência da invenção. Não há uma ruptura com o conceito de gravura que nos deixe desconfortável em continuar chamando-as dessa forma, pois o princípio da arte de Marinês Busetti é a gravura, seja pelo pensamento fundador, pelos princípios construtivos, pela multiplicidade ou mesmo pela rigorosa fidelidade ao meio.

Referências

Crespi, Irene; Ferrario, Jorge (1971). Léxico Técnico de las Artes Plásticas. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires. [ Links ]

Gomes, Paulo César Ribeiro (2018). Aspectos da Produção Gráfica no Rio Grande do Sul/Aspekte Der Grafik-Produktion in Rio Grande do Sul. In: O Poder da Multiplicação - Arte reprodutível na América do Sul e na Alemanha: do prédigital ao pós-digital ou da gravura, passando pelo xerox, até o 3D. São Paulo/Berlim: Estação Liberdade & Kerbe. ISBN: 978-85-7448-298-9. Disponível também em: Disponível também em: https://www.goethe.de/ins/ br/pt/kul/sup/art/esy/21185845.html . Acesso em: 14/09/2019. [ Links ]

Gomes, Paulo César Ribeiro (2018). Vozes Dissonantes: a abstração geométrica de Rose Lutzenberger . In: Revista Estúdio, artistas sobre outras obras . ( 24 ), outubrodezembro, 2018. ISSN 1647-6158 e ISSN 1647-7316.Links ]

Herskovits, Anico (2000). Xilogravura Arte e Técnica. Porto Alegre: Tchê! Editora Limitada. ISBN13: 978-8599354063 [ Links ]

Jansen, Gregor (2018). O poder aurático da recíproca multiplicação na América do Sul e na Europa. Arte reprodutível: do pré-digital ao pós-digital ou da gravura, passando pelo Xerox, até a realidade virtual. In: O Poder da Multiplicação - Arte reprodutível na América do Sul e na Alemanha: do pré-digital ao pós-digital ou da gravura, passando pelo xerox, até o 3D. São Paulo/Berlim:Estação Liberdade &Kerbe, ISBN: 978-85-7448-298-9 [ Links ]

Lutzenberger, Rosa Maria Kroeff (1971). Relatório para o 1º Semestre de 1971. Instituto de Artes - Departamento de Artes Visuais. AHIA - Arquivo Histórico do Instituto de Artes. [ Links ]

Pernoud, Emmanuel (1992). L’estampe au XXe siècle: Synthèse et expérimentation. In De Bonnard à Baselitz: dix ans d’enrichissements du Cabinet des Estampes 1978-1988. Paris: Bibliothèque nationale. ISBN 13: 9782717718546 [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2020; Aceito: 21 de Janeiro de 2020

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