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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.11 no.31 Lisboa set. 2020  Epub 30-Set-2020

 

Artigos Originais

Dar arte com pedaços de si. (Para o entendimento de obra de arte que vive com a presença do outro): uma reflexão sobre a obra de Raquel Ferreira

Give art with pieces of self. (For the understanding of a work of art that lives with the presence of the other): a Reflection About the Work of Raquel Ferreira

Cheila Raquel Estanqueiro Peças1 

1Portugal, Artista Visual. Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes (FBAUL), Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA), Largo da Academia Nacional de Belas Artes 4, 1249-058 Lisboa, Portugal. cheilapecas@gmail.com


Resumo

Este artigo pretende dar a conhecer a obra de Raquel Ferreira que na condição de artista plástica demonstra através do seu trabalho o seu ser, o seu método, e a forma como este interage com o público. Apresenta-se uma análise do seu fazer artístico, tentando compreendê-lo através de conceitos como: o Unheimlich, o duplo e a Autobiografia. Ao conhecer a obra da artista percebe-se a importância do eu da criadora e do eu do público para a existência e essência da mesma.

Palavras chave: Vivências; Criação; Esquisito; Pedaços

Abstract

This article aims to disclose the work of Raquel Ferreira that in the condition of artist shows through her work her being, her method, and how this interacts with the public. Presenting an analysis of your artistic making, trying to understand it through concepts like Unheimlich, or Double and the Autobiography. After knowing the work of the artist its perceptible the importance of the creator’s self and the I of the public for the existence and essence of herself.

Keywords: Experiences; Creation; Bizarre; Pieces

Introdução

O artista é muitas vezes impulsionado pelas suas vivências e necessidades na criação de um objeto de arte. (Gardner, 1997) É dentro deste tema que se apresenta a obra de Raquel Ferreira, onde estão implícitas as suas experiências. Sobre o seu trabalho pretende-se demonstrar os factores que levam à criação, dando especial enfoque ao seu projeto Goiva e à forma como leva a sua obra para o público e o que esta prática implica ou proporciona.

Raquel Ferreira nasceu em Lisboa, em 1989. É Licenciada em Artes Plásticas e Novos Media pela ESAD.CR e mestre em Filosofia na especialidade de Estética pela FCSH da Universidade de Lisboa. Atualmente faz parte do atelier Faca e Alguidar. Em 2018 criou o projeto Goiva onde elabora técnicas não tóxicas de gravura, T-shirts e cerâmica.

A obra de Raquel Ferreira surge da ânsia de poder dar vida e dar a conhecer o “ser” que cria. Estimulada por gravuras que “morriam” em gavetas, “sem chegarem alguma vez a ver a luz do sol”, como diz a artista, não se contentando, apenas, em mostrar a sua obra em exposições coletivas, decidiu criar a “Goiva”, onde os seus trabalhos podem ser trazidos para fora das gavetas.

Para a realização deste artigo foram realizadas entrevistas à artista e estudaram-se alguns conceitos que se acharam pertinentes para o entendimento da obra. O artigo divide-se em duas partes, “ A Goiva Projeto que exige de si)”, com o subcapítulo “ A Obra de Raquel Ferreira” e “Pedaços de Si no Fazer Artístico ( Para o entendimento das suas criações)”, com o subcapítulo “A Partilha dos eus (Conceitos Presentes na Obra da Artista)”.

1. A Goiva (O Projeto que Exige de Si)

Na Goiva está implícito o conceito de comercialização, é um projeto que torna possível a aparição de obras que permaneciam escondidas, sendo também uma forma de a Raquel manter vivo o seu fazer artístico, produzindo em maior quantidade, satisfazendo os desejos de compra dos seus clientes. Este projeto é um empurrão para a concretização e permanência da artista no meio artístico, que deste modo, vê um objetivo e um futuro para as suas obras. A artista não se sente obrigada a seguir uma linha dependente dos desejos dos seus clientes, ela sente-se livre e faz o que lhe apetece. A Goiva traz novos desafios e aprendizagens, dando a possibilidade de explorar novas técnicas e áreas diversificadas das artes visuais. Neste conceito, além de começar a mostrar as suas gravuras em papel, a artista transporta o seu desenho para um novo suporte, o tecido, nomeadamente para as T-shirts que levam o seu trabalho para a rua, onde qualquer pessoa pode usar o seu desenho. Raquel interessa-se pela interação da sua obra com o espetador gostando sempre de apresentar os seus trabalhos detalhadamente, explicando técnicas e pensamentos que surgiram ao longo da criação dos mesmos. Ela tenta criar uma relação entre a obra e o público, onde este experiencia as estórias dos desenhos levando-os para outros lugares. Este fazer artístico poderá caraterizar-se como uma galeria itinerante, quebrando com o conceito de galeria como espaço fechado, sendo que deste modo são levados pedaços da artista para o outro, com a possibilidade de ser construída uma nova história após a interação do público com a obra, onde ambos se tornam um só ser, formando uma outra coisa.

A artista fala do momento emocionante com que se depara quando um cliente veste a sua obra imediatamente após a sua aquisição, sentindo-se feliz e ansiosa com a possibilidade de um dia ir na rua e ver alguém passar com um dos seus desenhos. Desta forma percebe-se como a obra ganha vida própria assim que terminada, não passando muito tempo em repouso, aspirando a realização de um ser independente que consegue ter ou absorver uma vida, construindo a sua personalidade e a sua história, sendo um ser em movimento, onde a obra e o público vivem e influenciam-se.

1.1 A Obra de Raquel Ferreira

A obra “Pé na Boca 2”, gravura e t-shirt pode ter várias interpretações e significados opostos que podem ser representados na mesma forma, dependendo da perspetiva de cada um. Tanto podemos ver homens que se comem uns aos outros, ou homens que se vomitam ou que nascem uns dos outros. Esta obra, segundo a artista, remete para o nascimento e para a ganância, onde a artista ambiciona a transparência de um círculo de carne. Ver (Figura 1 e Figura 2).

Figura 1 “Pé na Boca 2”, Raquel Ferreira. Gravura, 2019. Fonte: Raquel Ferreira 

Figura 2 Raquel Ferreira, “Pé na Boca 2”. T-shirt, 2019. Fonte: Raquel Ferreira 

A obra “Caravaggio” é uma alusão a uma das pinturas de Caravaggio, nomeadamente a obra “ Davi e Golias”. Esta obra é apresentada em t-shirt e é das que causa mais impacto diante dos visitantes, clientes ou espetadores. “Caravaggio” apresenta a figura de Donald Trump sendo representado degolado como sendo o Golias da atualidade, que aterroriza o mundo inteiro. A artista afirma: “ Matei-o pelo desenho.”

Na condição de cidadã europeia a artista sente-se livre para brincar com esta questão, pois elabora a obra mediante a informação que lhe chega, e não é sobre o presidente do seu pais que está a colocar uma dose de “humor”, podendo libertar e dar o desenho à sociedade. A artista não se considera uma ativista política, nem deseja matar ninguém, age apenas por piada e sente-se bem a executar obras desta dimensão.

Nesta peça em particular a artista aprecia as reações que surgem nos espetadores que observam a obra, notando paixões à primeira vista, analisando os clientes mais discretos que levam a obra sem demonstrar reações e outros que levantam questões sobre diversos assuntos ao elaborarem perguntas sobre o desenho, percebendo que muitos nunca usariam o desenho com receio da ideologia politica implícita e apelo à violência. Ver (Figura 3).

Figura 3 Raquel Ferreira, “Caravaggio”. T-shirt, 2019. Fonte: Raquel Ferrreira 

2. Pedaços de Si no Fazer Artístico (Para o entendimento das suas criações)

A Criadora trabalha de modo obsessivo, criando muitas obras sobre cada tema ou técnica que executa, trabalhando sempre com gosto, “com o coração” como diz. A artista rege-se por impulsos e enaltece o gosto em fazer o que quiser. A partir de um momento da sua carreira a sua obsessão revelou-se na imagem de “homens decapitados”. Os decapitados não lhe saem da cabeça e esta ideia surgiu com a participação numa exposição nomeada de “Cadáver esquisito”, onde para a mesma elaborou uma série de 3 desenhos que representavam uma família: uma mulher, um homem e uma criança. Na altura a artista desenhou as personagens com cabeça, mas deparou-se com o facto de que o seu olhar se debruçava sobre as cabeças tirando a atenção do resto, consequentemente a artista decide remover as cabeças dando origem à ideia de que qualquer pessoa se podia identificar com aquele corpo. Esta obra foi intitulada de Sagrada Família. Ver (Figura 4, Figura 5 e Figura 6).

Figura 4 Raquel Ferreira, “Sagrada família” 1/3. Gravura sobre papel. 2016. Fonte: Raquel Ferreira 

Figura 5 Raquel Ferreira, “Sagrada família” 2/3. Gravura sobre papel. 2016. Fonte: Raquel Ferreira 

Figura 6 Raquel Ferreira, “Sagrada família” 3/3. Gravura sobre papel. 2016. Fonte: Raquel Ferreira 

Fascinada pelo que é esquisito, grotesco e perturbador, alegando também a existência de algum romance no seu trabalho, admite que com a criação das obras ela pode expulsar as coisas menos boas que detém dentro de si. Desta forma percebemos, e também referido pela própria, uma possibilidade de autobiografia implícita no fazer artístico, interessando-se pela junção de estórias, histórias e seres, nas suas obras. Neste fazer artístico está implícito o interesse pela violência para com o corpo humano: arrancando cabeças, juntando pedaços, refazendo corpos. Estas práticas aparentemente assustadoras são o que dão à obra um lado cómico, em que a própria artista admite sentir alguma piada em poder decapitar alguém através do desenho.

2.1 A Partilha dos eus (Conceitos Presentes na Obra da Artista)

O trabalho da Raquel tem como principal tema “o esquisito” e ao pensar em esquisito pensa-se de imediato no conceito de “Unheimlich” de Freud, um sentimento de inquietude e estranheza, algo que remete para o não-familiar, e o que deveria ter-se mantido oculto, resultante de Heimlich, familiar, algo que permanecia escondido e volta a surgir numa nova forma, possivelmente, assustadora. O inquietante surge de uma quebra da racionalidade, do esperado do quotidiano, surge na aparição de algo sobre o qual não se está habituado. (Freud, 2010) No trabalho da Raquel existe uma ação ou uma presença de algo que nos é familiar, mas que hoje em dia não é tão habitual e torna-se estranho, embora seja apenas um decapitado num desenho tem sempre um conteúdo inquietante e podemos afirmar que essa estranheza é que traz algo cómico aquando da observação das obras, pois o estranho não passa apenas por algo assustador. Estas obras transmitem uma sensação de incerteza intelectual, por terem uma conotação familiar e estranha ao mesmo tempo. (Freud, 2010)

Compreende-se que a obra da artista está relacionada com o conceito de autobiografia, esta coloca na obra os seus medos e inquietações e leva-os até aos outros. Essa doação, presente na venda da sua obra, é como uma tentativa de cura, onde a artista divide com o outro algo seu, e esta atitude de dádiva e cura traz à artista um reconhecimento. (Ferreira, 2014)

Através do seu fazer artístico ela faz uma busca sobre o seu próprio eu, liberta as inquietações, conhece-se, e para um conhecimento sobre si a artista tem de se desdobrar, fazendo nascer um duplo eu, onde, segundo Freud, se revê um Unheimlich, pois resulta numa criação de um outro que é um eu, assemelhando-se na sabedoria, nos sentimentos e nas vivências, onde se cria uma confusão entre ambos, onde são despertas dúvidas no sujeito que pensa sobre si, onde este se coloca no lugar de quem observa, elaborando uma autocrítica e auto-observação. Existe desta forma o eu artista e o eu que se demonstra através da obra, sendo o eu que cria e o eu que foi criado. A artista é uma investigadora sobre o seu eu verdadeiro , reorganiza-se e compreende-se criando o seu mundo. Para criar algo sobre si a artista deve olhar-se como num espelho, primeiro olhando-se como um objeto e só depois como sujeito. Para se ver precisa de se ver como os outros a olham, como um objeto. Desta forma o eu é objetificado, torna-se um outro e julga-se. Desta maneira forma-se um olhar que vê algo familiar, mas que causa estranheza. (Freud, 2010); (Rank, 2014)

Com esta investigação o eu depara-se com o inconsciente que lhe pertence, que é ele mesmo, desta forma cria-se uma dualidade entre o eu que pensava que era e o eu que quis conhecer. Ao exercer uma autobiografia a artista entra em conflito consigo mesma. Como criadora despertará sobre as suas memórias, personalidade e consciência, tentando chegar a uma verdade profunda. (Lejeune, 1975)

As vivências da artista são o material de conceção da obra, deve ver-se como outro ser, estuda-se e cria-se para o mundo, ao qual pretende dar-se e é por nunca se sentir totalmente satisfeita que trabalha obsessivamente. A criadora não tenciona que percebam o seu eu através das suas obras, mas é a partir dele que cria. É por necessidade e por gosto. (Ferreira, 2014)

Ao partilhar as obras com o público a artista vê o seu lado oculto, o seu duplo ser reconhecido ao ver a sua obra ser levada de um lado para o outro, crescendo numa outra vivência, gerando uma nova historia com quem se identificou com ela. A obra viverá e transparecerá ao outro algo diferente do que a artista vê e sente sobre a sua própria criação. A artista quer que a obra tenha uma determinada vivência mas essa obra pertence a quem adquira a peça, dando-lhe um novo ser, à sua maneira. Ver (Figura 7) (Ferreira, 2014); (Rank, 2014)

Figura 7 Raquel Ferreira, “T-shirt Tomadãoeste desenho deixou-se de capelas e só tem interesse por becos e bares com luzes duvidosas.” T-shirt. 2018. Fonte: Raquel Ferreira 

Conclusão

A obra de Raquel Ferreira é um exemplo de como a vida pode influenciar no fazer artístico. A obra revela-nos a sua própria viagem, desde o momento que sai do pensamento da artista, do seu inconsciente, até ao momento em que passa a pertencer a um outro. Conhecemos uma obra itinerante que precisa de um outro para existir. Percebemos a alteração da história de uma obra mediante o percurso que toma. Entendemos que o intuito é dar vida às obras, dar-lhes uma condição humana, onde a interpretação das mesmas varia consoante o momento em que o sujeito as experiencia, e de acordo com as suas próprias vivências.

Referências

Ferreira, R. (2014). O trabalho autobiográfico de Louise Bourgeois e o discurso autobiográfico filosófico. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova. [ Links ]

Freud, S. (2010). O Inquietante. Em S. Freud, História de uma Neurose Infantil (O Homem dos Lobos) Além do Prazer e Outros Textos( 1917-1920) (pp. 329-376). São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]

Gardner, H. (1997). As Artes e o Desenvolvimento Humano. São Paulo: Artes Médicas. [ Links ]

Lejeune, P. (1975). Le pacte autobiographique. Paris: Seuil. [ Links ]

Rank, O. (2014). O Duplo, um Estudo Psicanalítico. Belo Horizonte: Dublinense. [ Links ]

Recebido: 11 de Janeiro de 2020; Aceito: 21 de Janeiro de 2020

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