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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.11 no.31 Lisboa set. 2020  Epub 30-Set-2020

 

Artigos Originais

Curiosidade e inquietude: a ponte entre a ditadura e a liberdade na obra de João Nunes

Curiosity and unquietness: the bridge between dictatorship and freedom in the work of João Nunes

Eliana Penedos-Santiago1 

Nuno Duarte Martins2 

1Portugal, Designer. ID+, Universidade do Porto. Av. de Rodrigues de Freitas 265, 4000-421 Porto, Portugal. elianapenedossantiago@gmail.com

2Portugal, designer. IPCA/ID+. Vila Frescaínha S. Martinho, 4750-810 Barcelos, Portugal.


Resumo

Este artigo decorre da análise da vida e obra do designer João Nunes que se desenrolou a partir de uma entrevista realizada na primeira pessoa, em Serra de Arga, em janeiro de 2019. Procuramos encontrar pontos transversais entre a sua obra e o contexto social e político da sua formação pessoal e profissional e em que medida a sua experiência como designer no exército, durante um regime de ditadura e a sua formação académica num período pós revolução se refletem na personalidade ativista e socialmente responsável que conhecemos hoje.

Palavras chave: João Nunes; Design Activism; Craft Design; História de Vida

Abstract

This article stems from the analysis of the life and work of the designer João Nunes developed out of an interview conducted at his home and studio in Serra de Arga, in January 2019. We aim to find cross points between his work and the social and political context of his personal and professional background and to what extent his experience as a designer in the army, during a period of dictatorship and his academic graduation in a post revolution period, do reflect the activist and socially responsible personality we know today.

Keywords: João Nunes; Design Activism; Craft Design; Life Story

Introdução

João Nunes nasceu em 1951, em Vila Nova de Gaia. A descoberta do tira-linhas, do afiar da mina do lápis ou da destreza da passagem de um desenho a tinta da china deu-se muito cedo no atelier do seu pai, o arquitecto Tavares Nunes.

Iniciou a sua atividade profissional como fotógrafo e artista gráfico em Angola, realizando alguns trabalhos de índole política para o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), contrariando então a posição política do regime. Regressado a Portugal em 1976, estudou Design Gráfico na Escola Superior de Belas Artes do Porto. Fundou dois estúdios na área das artes gráficas, em 1978 e em 1983. Em 1989 criou um estúdio próprio, onde passou a desenvolver a sua atividade profissional, na área do design de comunicação. Na década de noventa, idealizou e produziu a comunicação visual do Teatro Nacional S. João. Foi professor convidado na Universidade de Aveiro de 2004-2017 onde desenvolveu projetos que ligam o craft+design, a natureza, e a identidade portuguesa. A investigação e o projecto, dimensão crítica e social, sempre revestiram o seu trabalho de sentido ético e pedagógico, desenvolvendo, com as Aldeias de Xisto, um importante trabalho no âmbito do design social. João Nunes abriu as portas do design desenhando novos caminhos que permitem aceder às vontades, e aos preconceitos, e a novas e melhores formas de fazer. Aproximar as comunidades e recuperar heranças culturais de inestimável valor. Investigador atento e experimentador nato, adaptou-se ao seu contexto sem nunca abandonar a dissonância, a irreverência e a experimentação (Bártolo, 2016).

Neste artigo, é analisado um conjunto de trabalhos produzidos durante o período em que o autor colaborou com o Departamento de Comunicação do Exército em Angola como designer gráfico como um ponto de partida, os primeiros passos na materialização de uma inquietude através do design. A oposição de João Nunes à Ditadura portuguesa que o levaria a colaborar, durante a guerra colonial, com o Departamento de Informação e Propaganda do MPLA, a sua experiência como aluno do curso de Artes Gráficas na Escola Superior de Belas Artes do Porto em 1976, são alguns dos fatores que nos ajudam a compreender a dimensão crítica e social que sempre revestiram o trabalho do autor ao longo de quase cinco décadas.

Recorrendo ao método de entrevista (Quivy & Campenhoudt, 2008), realizada ao autor na manhã do dia 29 de janeiro de 2019, em Serra de Arga, e ao método de observação direta (Banks & Zeitlyn, 2015) tivemos oportunidade de conhecer a passagem de João Nunes pela Escola de Belas Artes do Porto: conhecer e contactar com algumas peças gráficas fruto da sua experiência como designer durante a guerra colonial, enquanto cumpria o serviço militar; terminando com a

partilha do Projecto ÍRIS DARGA, a concretização de um lugar criativo, dedicado ao Craft Design. Neste processo, foram fotografados materiais gráficos e maquetes de trabalho do autor, permitindo a criação de ferramentas de auxílio à memória (Tinkler, 2013) e uma melhor documentação da investigação em curso.

A presente análise está integrada num estudo que visa a inscrição e legitimação do conhecimento individual e experiência de um grupo de artistas, professores e investigadores, licenciados pela Escola Superior de Belas Artes do Porto, nos anos sessenta e setenta, coincidente com o período pré e pós da revolução social e política de 25 de Abril de 1974.

1. João Nunes: fotógrafo e artista gráfico do exército em Angola no cumprimento do serviço militar

João Nunes iniciou a sua atividade profissional como fotógrafo e artista gráfico em Angola, no exército e enquanto cumpria o serviço militar. Ao abrigo do serviço militar obrigatório o autor é expedido para Luanda no início dos anos 70 onde viria a integrar o Departamento de Comunicação e de Foto-Cine do Exército. O Destacamento de Fotografia e Cinema da Região Militar de Angola era um posto avançado ao nível da produção e transmissão audiovisual (Bártolo, 2016). Nele, colaboraram importantes figuras da história da comunicação portuguesa. João Nunes esteve ligado ao design e à produção gráfica, desenvolvendo cartazes, ações de propaganda, desde a conceção, processo gráfico e fotográfico, até à impressão.

João Nunes auto refere-se, neste período, como um “agente duplo” que atuava em ambas as margens do eixo político, mas ideologicamente ao lado do MPLA. Mantendo sempre uma posição firme contra a Ditadura portuguesa, colaborou diversas vezes com o Departamento de Informação e Propaganda do MPLA. (Figura 1 e Figura 2).

Figura 1 João Nunes com a maqueta do cartaz de 1974 para o MPLA “O Povo no Poder” e a “Vitória é Certa” desenvolvida pelo autor no período em que cumpriu serviço militar no Departamento de Comunicação do Exército em Angola. Arquivo João Nunes. Fonte: própria. 

Figura 2 Maqueta do cartaz de 1974 para o MPLA “LO MPLA EYOVO LIOCILI” e “LO MPLA OWIÑI KU SOMA” nas línguas Tchokwe e Umbundo. Arquivo João Nunes. Fonte: própria. 

O Departamento de Comunicação e de Foto-Cine do Exército estava ligado ao comando chefe das forças armadas. No setor de design, fotografia e impressão trabalhavam cerca de sete pessoas com coordenação estratégica de um General e de um Coronel, que não eram operativos gráficos. João Nunes considera esta experiência como uma grande oportunidade de formação profissional, contudo confessa ter tido grandes dificuldades na gestão da veia política, procurando sempre nas suas ferramentas como designer, caminhos para as vozes da liberdade. (Figura 3, Figura 4 e Figura 5).

Figura 3 João Nunes com a maqueta do cartaz de “Liberdade Alegria” desenvolvida pelo autor, no período em que cumpriu serviço militar no Departamento de Comunicação do Exército em Angola. Arquivo João Nunes. Fonte: própria. 

Figura 4 Maqueta do cartaz de “Unir Construir” desenvolvida por João Nunes, no período em que cumpriu serviço militar no Departamento de Comunicação do Exército em Angola. Arquivo João Nunes. Fonte: própria. 

Figura 5 O autor com a maqueta do cartaz de “Unir Construir” e Susana Barreto em Serra de Arga. Fonte: própria. 

2. Aluno do primeiro curso de Artes Gráficas na ESBAP: 1976 o ano das grandes mudanças sociais e políticas

Aluno ao abrigo da lei militar, João Nunes regressou a Portugal em 1976, ano em que ingressou no ano inaugural da licenciatura em Design de Comunicação - Arte Gráfica na Escola Superior de Belas Artes do Porto.

Segundo João Nunes, quando ingressou na ESBAP em 1976, o curso de design dava os primeiros passos. Sem grande equipamento, com professores que migravam do curso de pintura, escultura e arquitetura, o autor refere o seu descontentamento e desilusão ao perceber que a presença do design era muito pontual.

A escola vivia neste período uma fase de grande turbulência e sucessivas transformações. Diferentes facções políticas com múltiplas assembleias gerais, tudo se discutia, tudo se questionava: a escola, o sistema de ensino, os professores… O percurso de João Nunes como aluno é particular. Dado o seu estatuto militar, foi-lhe permitido integrar um regime especial que permitia as avaliações por exame (trimestrais) sem exigência de cumprimento dos períodos letivos obrigatórios. Segundo o autor, este modelo transformou a sua frequência do curso de Design numa experiência interpessoal com as diferentes individualidades da época, como Calvet de Magalhães, José Rodrigues, Dario Alves, João Machado, Amândio Silva ou Álvaro Lapa, longe da relação professor/aluno.

A grande abrangência intelectual e a formação ampla e transversal destes professores ajudaram João Nunes a definir e estruturar a personalidade que conhecemos hoje.

3. O ciclo do design gráfico dá lugar ao ciclo da natureza

João Nunes considera que a partir do momento em que deixou o atelier no Porto, fechou o ciclo do design de comunicação e entrou no ciclo do conhecimento da natureza (Nunes, 2019). É sua intenção hoje, ligar o design ao ciclo da natureza e às tecnologias tradicionais, como por exemplo a madeira e o ferro. Vive neste momento no local onde há trinta anos reunia com os amigos e “carregava baterias”. Foi intenção do autor, abrir portas e assim permitir o contacto e a aproximação de curiosos com o entorno da sua esfera pessoal e aí experimentarem ferramentas adequadas à produção de uma série de peças em ferro e madeira. João Nunes iniciou esta experiência com atividades em família usando a técnica do papier maché. Abriu as portas de sua casa como alojamento local para famílias nacionais e estrangeiras, convida pais e filhos a participarem nas oficinas convertendo estes momentos numa espécie de laboratório de investigação.

Lança temas relacionados com a natureza, como a ornitologia, transportando-os por meio destas experiências, para uma memória citadina. João Nunes manifesta o seu interesse pelas questões ambientais ligadas à questão do fazer. É importante para o autor olhar para uma árvore, retirar um pedaço dessa árvore e perceber que uma parte deste elemento da natureza será preservado no objeto. Docente, investigador, curador, e designer gráfico, João Nunes promoveu, ao longo da sua carreira, uma forte ligação entre o design e o artesanato. O caminho percorrido entre o DESIGN87 (Design Artesanal) e as Aldeias do Xisto (Figura 6), (projeto no qual se integra o Craft Design e o pensamento multidisciplinar, ambos fundamentais ao desenvolvimento do interior do país) permitiram que João Nunes crescesse como designer intervencionista, estratégico e ambientalista.

Figura 6 Publicação AgriCultura Lusitana 2015, Aldeias do Xisto. Arquivo João Nunes. Fonte: própria. 

Para o autor, o design não esgota a sua área de atuação. Bom design é o design de grande humildade. Design com responsabilidade social, design activismo, design relacional ou design estratégico assentam na humildade, receptividade e respeito pelo conhecimento de todos os profissionais envolvidos. (Nunes, 2016). Numa visita a Amesterdão, na década de 80, tomou contacto com a forma como os holandeses pensavam o Craft Design. Em Cerveira o artesanato foi sempre significativo. Inspirado por esta visita, organizou em 1985, e em cerca de dois meses juntamente com José Rodrigues, uma exposição/concurso intitulada “Vila Nova de Cerveira: Design Artesanal”. Composta por um júri e personalidades ligadas à etnologia como Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira, abriu-se assim o caminho de ligação entre o desenho, o projeto, o saber fazer e as tecnologias. Uma mais valia em termos económicos e em termos de relacionamento e estabilidade entre as pessoas.

Mais tarde, em 2012, num congresso sobre Craft Design no Porto, tomou contacto com a associação ADXTUR e consequentemente com as Aldeias do Xisto. Os três últimos projetos que desenvolveu, a partir de então, em colaboração com esta entidade, deram a João Nunes a oportunidade de pensar as ligações entre o saber fazer manual, a área do projeto e o design. Água Musa, L4Craft, Agricultura Lusitana, foram apresentados no mês de dezembro de 2018 em Lisboa, num seminário que permitiu a reflexão sobre o futuro das Aldeias do Xisto integrando o Craft Design e o pensamento multidisciplinar, ambos fundamentais ao desenvolvimento do interior do país.

Conclusão

Segundo o próprio João Nunes, um privilegiado no que toca às suas origens familiares, fonte de literacia cultural e artística que guardará para a vida, foi desde cedo compreendido, estimulado e apoiado na construção e orientação do pensamento e posteriormente no caminho percorrido.

O inconformismo e a vontade de contribuir para um mundo melhor, desenhado de acordo com ideologias de forte cariz humano, por meio de relações sociais e culturais, são o combustível desta chama ativista que move o autor desde muito cedo.

Encontrou no design não apenas uma voz mas também uma poderosa ferramenta de (re)construção social e cultural. Para o João Nunes o design não esgota a sua área de atuação, e a humildade é a chave do “bom design”.

Estar atento e receptivo, observar e ouvir as necessidades do mundo são o segredo da vitalidade artística do autor. João Nunes não se vê como um tradutor, procura antes interpretar a mensagem na esperança de que essa voz possa estimular, dinamizar e criar novos pensamentos.

Designer intervencionista, estratégico e ambientalista, como se auto intitula, faz tanto pelo mundo como pela sua arte, numa relação de reciprocidade, esclarecendo a sociedade sobre a importância de uma força ideológica que neste caso em particular se difunde pelo design.

Referências

Banks, M., & Zeitlyn, D. (2015). “Visual Methods in Social Research.” SAGE Publications. [ Links ]

Barreto, S; Lima, C.; Penedos, E. (2019) Conversa com João Nunes, 29 de Janeiro. [ Links ]

Bártolo, José & Barbosa, Helena (2016). “Coleção Designers Portugueses: João Nunes”. Matosinhos: Cardume Editores. nº9 pp. 9-25. [ Links ]

Prossner, Jon 1998, ImageBased Research: A Sourcebook for Qualitative Researchers. Falmer Press, London. [ Links ]

Quivy, R., & Campenhoudt, L. V. (2008). “Manual de Investigação em Ciências Sociais.” Lisboa: Gradiva. [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2020; Aceito: 21 de Janeiro de 2020

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