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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.11 no.31 Lisboa set. 2020  Epub 30-Set-2020

 

Artigos Originais

A obra escultórica de Maria Palmela

The sculptural work of Maria Palmela

Luísa Perienes1 

1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes (FBAUL), Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA), Largo da Academia Nacional de Belas Artes 4, 1249-058 Lisboa, Portugal. luisaperienes@gmail.com


Resumo

Esta reflexão sobre a obra escultórica de Maria Palmela, Duquesa de Palmela, artista e benemérita do século XIX, pretende analisar os processos de execução utilizados pela escultora. Na sua escultura é explícita a escolha pela representação humana e as matérias que utiliza, o mármore e o bronze. Investigamos nesta abordagem, diferentes maneiras de trabalhar a pedra: o talhe indireto e o talhe direto. Apresentaremos ainda outras soluções plásticas, na modalidade de retrato, resultantes dos processos utilizados.

Palavras chave: escultura; representação; corpo humano; modelação; talhe; pedra

Abstract

This reflection on the scultural work of Maria Palmela, Duchess of Palmela, artist and meritorious of the XIX century, aims to analyse the processes of execution used by the sculptor. In her sculpture are explicit the choice for human representation and the materials she uses, marble and bronze. We investigate in this approach, diferent ways of working the stone: the indiret carving and the diret carving.We will also present other plastic solutions in portrait mode,resulting from the processes used.

Keywords: sculpture; representation; human body /modeling; carving; stone

Introdução

Maria Palmela foi o nome escolhido pela terceira duquesa de Palmela (1841-1909), Maria Luíza de Souza e Holstein, para assinar as suas obras de escultura. Aristocrata que era e desde cedo curiosa pelo mundo das artes, Maria Luíza viajava e não lhe foram certamente indiferentes os contatos que teve com François Rude, Eugène Guillaume ou Carpeaux, escultores reconhecidos em França, considerada como era na altura, capital da cultura.

Tendo como mestre Anatole Calmels, escultor francês, residente em Portugal, Maria Luíza começa a modelar em argila ou em cera os modelos que deseja representar para serem posteriormente passados a pedra ou a bronze.

Herdando do seu mestre as bases de uma representação clássica podemos afirmar que aliada a uma estética de pendor clássico e romântico que ainda se sente nalgumas obras, as suas esculturas exibem um gosto pela atitude, pela escolha das personagens e pela utilização de adereços que ajudam na caracterização de um crescente naturalismo e teatralidade. “A escolha temática das obras realizadas indicia igualmente algum entendimento personalizado e uma escolha orientada para preocupações genuínas de dimensão social” (Pereira, 2005: 436) O enfoque desta comunicação será nas esculturas de menores dimensões, os retratos, porque também esse é o caminho da escultora e na sua matéria final a pedra, matéria da nossa eleição. As esculturas de maior escala serão também objeto de análise. Paralelamente falaremos das técnicas utilizadas na época e pela escultora. Iremos comparar ainda obras escultóricas dos séculos XIX e XX, na tipologia de retrato cujo resultado é a marca do processo utilizado.

A sua primeira obra apresentada foi Pescador de (1870), em 1874, na 10ª Exposição da Sociedade Promotora de Belas Artes. Este busto, em mármore branco representando um jovem pescador, é delicado e fino e contraria de algum modo a profissão dura. Está representado com o rosto ligeiramente voltado de lado o que evidencia a delicadeza dos traços. Os adereços, o barrete e o lenço procuram caracterizar a profissão.

Na época, a representação de figuras populares era temática comum e não seriam estranhas a Maria Luíza as esculturas do Pescador Napolitano, de 1863, um busto de Jean-Baptiste Carpeaux, (1827-1875) e a escultura Pescador com uma concha, de 1857 do mesmo escultor.

Para a realização deste busto Pescador e os outros que exemplificaremos, Maria Luíza modelava em argila. A modelação em cera seria provavelmente para esbocetos. Em ambas matérias Maria Luíza estudava e trabalhava minuciosamente conferindo a cada rosto dos seus retratos o carácter que desejava.

No caso da pedra, partindo de um modelo em argila, tamanho natural, tiravam-se moldes em gesso, para ser este o modelo a transladar para a pedra, através de um sistema de cópia por pontos (Figura 1).

Figura 1 Maria Palmela, Escultura em mármore, 1870. Fonte: Revista da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. N.º 18, Ano X, 2007 

Para o bronze os modelos para a fundição seriam também em gesso.

Busto de menino de 1877, foi outra interpretação, desta vez mais dinâmica da escultora (Figura 2).

Figura 2 Maria Palmela, Busto de menino, Escultura em mármore, 1877. Fonte: A arte em Portugal no século XIX José Augusto França 

Este menino está representado com o rosto voltado de lado e para cima, focando o movimento da figura como se naquele instante olhasse alguém com surpresa. A boca entreaberta e os olhos com as sobrancelhas levantadas revelam algum espanto. O cabelo bastante elaborado tal como o do pescador e outros pormenores anatómicos precisos denotam a utilização do trépano (Figura 3).

Figura 3 Soares dos Reis, Flôr Agreste, Escultura em mármore, 1878. Fonte: https://antoniosoaresdosreis.wordpress.com/tag/flor-agreste/  

No panorama português temos como exemplo Flôr Agreste de Soares dos Reis, de 1878 e exposta na 1 Exposição Bazar de Belas-Artes e de Artes Industriais no Palácio de Cristal, no Porto. Um rosto delicado esboçando um leve sorriso e enquadrado por roupas simples. É comum nestes escultores a exaltação da beleza em jovens do povo dando a ver através da forma do busto, das diversas expressões do rosto, dos olhos e da boca, e da moldura do cabelo, as características pretendidas.

Na obra da escultora, não podemos deixar de mencionar Diógenes, em bronze, executado em 1883 e exposto no Salon de Paris em 1884, por ser uma obra marcante no seu percurso pelo reconhecimento público que suscitou.

Em Negra de (1885) originariamente executada em mármore e exposta no Salon de Paris em 1886, a ligeira torção do rosto cria o movimento daquele momento em que Jéjé, o modelo que Maria Luíza bem conhecia por ser filha dos cozinheiros de seus pais, sorri de um modo gracioso. Representada com grande pormenor, o excecional tratamento do cabelo, dos lábios, dos dentes e os adereços, colar e argolas, contribuem para a expressividade deste retrato (Figura 4).

Figura 4 Maria Palmela, Negra, Escultura em bronze, 1885. Fonte: http://catalogue.gazette-drouot.com/ref/lot-ventes-aux-encheres. jsp?id=1050827  

A utilização do trépano que não difere muito do arco de pua e que serve como na medicina para furar, neste caso a pedra, é visível na definição dos olhos, criando orifícios nas pupilas, no nariz e nas orelhas quer neste retrato, quer no firme e íntegro busto de Sá da Bandeira, denunciando já o realismo que Maria Palmela procurava nas suas esculturas. Esta obra, exposta em 1880 na Sociedade Promotora de Belas Artes, encontra-se atualmente no Museu Militar de Lisboa (Figura 5). Neste busto de militar de braço amputado, está explícita na pose a atitude militar digna, o rosto de olhos franzidos que reflete introspeção. Está trajado com as insígnias que lhe pertencem pois mais uma vez o traje ajuda a caracterizar a personagem.

Figura 5 Maria Palmela, Marquês Sá da Bandeira, Escultura em mármore, 1883.Fonte: http://www.geira.pt/Mmilitar/Actividades/ esquerda.html  

Quanto aos processos técnicos, a cópia por pontos (Figura 6, Figura 7) era conhecida desde a antiguidade. Segundo Wittkower: “Uma geração antiga de arqueólogos acreditava que a técnica mecânica para o traslado do modelo para mármore só foi desenvolvida no séc. I d.C. por Pasíteles. Atualmente, porém, acredita-se que os gregos haviam desenvolvido um método semelhante há muito mais tempo. Este método, geralmente chamado de ponteado, consistia em estabelecer, com maior precisão possível, uma série de pontos paralelos no modelo e no mármore.”

Figura 6 Máquina de pontear. Fonte: Escultura, Rudolf Wittkower. 

Figura 7 Engenhos artesanais para furar a pedra. Fonte: Escultura, Rudolf Wittkower. 

Desenvolveram-se posteriormente uma série de processos e métodos para o talhe indireto desde a caixa de varas de Leonardo da Vinci ao uso da moldura graduada, fios de prumo e compasso, utilizado por António Canova até à cruzeta ou máquina de pontear, usada no século XIX, como ainda o é nos nossos dias. Quanto à utilização da pua, engenho para furar a pedra, foi muito utilizada desde a antiguidade para elaborar pormenores anatómicos que requeriam minúcia e trabalho de furação a diversas profundidades na pedra.

Numa folha com desenhos e anotações de Miguel Ângelo, existente no Louvre está escrito: “Davicte cholla fromba/ e io chollarcho/Michelangelo”, ou seja, “David com a sua funda/ e eu com o meu arco, Michelangelo”.

Segundo Wittkower, à pergunta: Michelangelo utilizou uma pua para esculpir o seu gigantesco David? A resposta é um enfático “sim”. Os orifícios que este instrumento produz são facilmente identificáveis, em especial no cabelo. As pupilas circulares dos olhos também são orifícios feitos pela pua. (Wittkower, 2001: 104) Este engenho utilizado até ao século XIX inclusive, assim como o trépano, também para furar, é substituído pelos berbequins mecânicos e elétricos no século XX, que permitem furar a pedra com muito mais rapidez a diversas profundidades.

É exemplo de Maria Palmela que, em Santa Teresa, (de 1900), em mármore, o êxtase da figura é dado movimento do rosto emoldurado pelo panejamento e pela direção do olhar, fundo e distante acentuado pelo uso do trépano.

Fiat Lux representa alegoricamente o Génio do Progresso da Medicina, em que serviu de modelo para a sua execução o jovem Luciano Moreira, de 13 anos, e que se pensa que terá posado outras vezes para a Duquesa de Palmela.

As primeiras versões desta obra serão de 1892 em bronze.

Fiat lux executado em mármore de Carrara em 1900 é a escultura que Maria Palmela apresenta para ser proposta como académica de mérito da Academia Real de Lisboa. Em 1903 é designada académica pelas suas criações artísticas tornando-se assim a primeira mulher com essa distinção (Figura 8).

Figura 8 Maria Palmela, Fiat Lux, escultura em mármore, 1900. Fonte: Dicionário e Escultura portuguesa, José Fernandes Pereira. 

Tendo dado a ver e conhecer, em torno da obra de Maria Palmela, as técnicas aplicadas na escultura em pedra, apresento ainda retratos do século XX, em que as escolhas dos processos determinam a plasticidade e contribuem para o conceito da obra.

No princípio do século XX, anos 20 Brancusi, escultor romeno, apresenta a sua escultura em pedra de formas simples, reduzidas à sua essência, esculpidas por ele mesmo. “quase metade da sua produção envolveu o entalhamento direto da pedra ou da madeira, fazendo da tarefa de transformar a matéria bruta um trabalho árduo e paciente” (Krauss, 2001:104)

Em 1930 Henry Moore publica um pequeno manifesto em que diz:” truth to material; direct carving; the rightness of hardness; full three-dimensionality; making masses work in opposition; energy pente-up in static forms; asymetry; organic growth; the variety of nature; the autonomous vitality of the work of art; preference for power over beauty; the irrelevance of the classical and the Renaissance.” (Sylvester, 1968:54)

Segundo o seu testemunho: “esculpir é um processo simples de trabalhar material duro desbastando-o e escassilhando-o. As ferramentas que agora há para a escultura em pedra começam com o que se chama o pico ou escacilhador, com o qual se escassilham os cantos. Todas as pedras tendem a ter uma direcção em que quebram mais facilmente em virtude da formação do grão. Depois vem o ponteiro, e com ele se trabalha a toda a volta, o que nos permite retirar grandes pedaços de uma só vez. Depois vem o ferro de dentes que é na verdade uma série de ponteiros numa só ferramenta. Quando usado na pedra deixa uma série de sulcos paralelos. Foi uma das ferramentas favoritas de Miguel Ângelo. Depois vem o cinzel, que é plano. Miguel Ângelo usava o mármore logo depois de extraído, porque isso torna a pedra dura muito mais fácil de esculpir.

Em Portugal, nos anos 80, João Cutileiro introduz o talhe direto com máquinas industriais autonomizando o trabalho do escultor. (Figura 9, Figura 10)

Figura 9 João Cutileiro, Florbela, Escultura em pedra/rochas várias, 1994. Fonte: Catálogo, Grupo Pro-Évora, Edições. 

Figura 10 Barry X Ball, Torture prevalence compels victim-aswounded-yet-resolute-iconoclasm-survivor, portrait, 2000-2006, Mexicain Onyx. Fonte: Stone A Legacy and Inspiration for Art, London, UK 2011. 

O retrato de Florbela Espanca foi executado com máquinas de corte a seco, por talhe direto. Esculpido com várias rochas, numa construção com encaixes, criando um real efeito de claro escuro. O registo das máquinas é parte intrínseca da expressividade plástica deste retrato. A pupila é furada criando vivacidade e espanto no olhar. Nas palavras do escultor “vivo da força exclusiva do meu trabalho, assim, da pedra e da máquina que a mão interliga, humanizando-as…tão facilmente como quem desenha ou quem escreve” numa entrevista de Maria João Avillez para o semanário “Expresso” em 1983.

A escolha da pedra para este retrato, o ónix e as suas marcas naturais fazem parte da formalidade da obra e explicitam o conceito do escultor.

Na modalidade de retrato, estas são algumas de entre outras soluções plásticas, resultantes dos diversos processos utilizados.

Referências

Pereira, José Fernandes (2005) Dicionário de Escultura Portuguesa, Editorial Caminho Lisboa, ISBN: 972-32-1723-8 [ Links ]

Krauss Rosalind E. (2001) Caminhos da Escultura Moderna, Martins Fontes, São Paulo ISBN: 85-336-0958-2 [ Links ]

Sylvester, David, (1968) Henry Moore, Great Britain, Percy Lund, Humphries & Co.Ltd, London and Bradford Russoli, Franco. [ Links ]

Mitchinson, David (1981) Henry Moore, Ediciones Polígrafa, Barcelona ISBN: 84343-0331-1 [ Links ]

Wittkower, Rudolf (2001) Escultura Martins Fontes, São Paulo ISBN 85-336-1390-3 [ Links ]

Recebido: 10 de Janeiro de 2020; Aceito: 21 de Janeiro de 2020

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