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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.11 no.31 Lisboa set. 2020  Epub 30-Set-2020

 

Artigos Originais

Lúcia Gomes: uma artista na Amazônia

Lúcia Gomes: an artist in Amazonia

Orlando Maneschy1 

Maria Christina Barbosa2 

1 Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará (PPGARTES/ICA/UFPA). Rua Augusto Corrêa, 01, Guamá. CEP 66075, Belém, Pará, Brasil. orlandomaneschy@gmail.com

2 Especialista em Comunicação Científica na Amazônia pelo Programa Internacional de Formação de Especialistas em Desenvolvimento de Áreas Amazônicas (XXVIII FIPAM) vinculado ao Programa de Pós-Graduação Lato Sensu do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará. Brasil.


Resumo

Este artigo aborda a produção visual da artista paraense Lúcia Gomes e as relações entre política, arte e vida nas proposições e ações realizadas.

Palavras chave: Arte brasileira contemporânea; arte e política; arte na Amazônia; performance

Abstract

This article is about the visual production of paraense artist Lúcia Gomes and the relationship between politic, art and life in the proposes and actions done.

Keywords: Contemporary brazilian art; art and politic; art in Amazônia; performance

Lúcia Gomes é uma artista cuja produção concentra-se em ações nas quais arte, vida e posicionamento político mesclam-se em operações como performances e intervenções que, não raras vezes, o outro é convidado a participar, e se estabelecem, certa medida, entre arte, política e sociedade, em que práticas artísticas são realizadas a partir de uma percepção crítica da realidade e que, por meio da arte constituem estratégias efetivas voltadas à transformação da vida. Articulando sobre esta forma de posicionamento no campo da arte, o cientista social e professor Miguel Chaia irá considerar:

O artista ativista situa-se no interior de uma relação social, isto é, engendra uma esfera relacional fundada no desejo de luta, na responsabilidade ou na vocação social que reconhece a existência de conflitos a serem enfrentados de imediato. Portanto, torna-se fundamental no artivismo o reconhecimento do outro e também a crítica das condições que produzem a contemporaneidade. Neste forte envolvimento social, tem-se, assim, reduzida a autonomia da arte e, em contrapartida, amplia-se a relação entre ética e estética. (Chaia, 2007:10).

O artista visual e pesquisador português Rui Mourão reflete sobre o estreito vínculo entre arte e política e evidencia que:

Mesmo abordando o tema de forma menos relativista, verifica-se facilmente que a criação artística e a ação política se movem em campos que não estão estanques entre si. É possível detetar zonas de convergência. Afinal, na sua génese, arte e ativismo possuem um forte elo comum: ambos se posicionam no mundo sonhando mundos. [...]. Algumas dessas reverberações, pela assumida interseção artística/ativista, são já chamadas de “artivistas”. (Mourão, 2015:54)

Ao longo de sua carreira, Gomes implementa performances, proposições coletivas e “interferências artísticas”, forma como a artista denomina algumas das ações que mesmo sutis realizam-se em relação com o outro e propiciam reflexões sobre nosso papel como cidadãos. Algumas obras foram concebidas para serem empreendidas em lugares específicos, mas que se desdobram em outras rearticulações, muitas vezes estruturadas em gestos lúdicos, como na obra Pipaz, na qual a população é convidada a brincar no centenário mercado do Ver-o-Peso, empinando pipas que trazem as letras P. A. Z. em separado, ação executada no salão Arte Pará 2006, sinalizada em dois textos do catálogo daquela exposição:

Conclamando a população a ocupar o espaço público numa manhã de domingo, dentro de uma perspectiva lúdica e política, é que se configura a performance de Lúcia Gomes intitulada Pipaz. (…). É no jogo que se estabelece a obra. Da corriqueira disputa entre garotos ao empinarem suas pipas - nossos tradicionais papagaios e gandulas - no céu, tentando derrubar uns aos outros, preparando a linha com cola e pó de vidro, a artista fala das disputas de adultos, não menos infantis, na política em que o mundo se inscreve, imerso em guerras.

Com sua performance, Gomes nos coloca no papel de agentes. Se não participamos, nada acontece. Está em nossas mãos a decisão de como se dá o jogo, sua construção, e é isto o que nos oferece com sua proposição conceitual, utilizando um ato tão corriqueiro da infância e deslocando-o para falar de política no espaço da arte. (Maneschy, 2006:56).

Segundo o curador do salão, Paulo Herkenhoff (2006:159): “O estado de inocência, indicado nas pipas, escreve a palavra como desejo utópico da sociedade do abandono social, da imobilidade de classes e das diferenças regionais”. São pequenos gestos simbólicos que Lúcia Gomes emprega no seu fazer artístico, mesclando-os com ações que trazem carga contundente, articulada na perspectiva da liberdade e da democracia para discutir a violência. Assim revelam questões pulsantes acerca dos problemas que envolvem a condição humana.

Talvez esta seja uma particularidade na obra da artista que a difere de outros que operam na chave do artivismo, território no qual a artista não se reconhece. Isso é possível em função da conduta aliada ao respeito à diferença e à não-violência que dão a tônica para suas propostas calcadas no brado pela democracia e no humanismo, que a leva a dizer “não sou artivista! Sou apenas uma mulher artista da Amazônia!” (Gomes, 2019).

A compreensão do outro e de sua condição chama a artista a desenvolver proposições nas quais o processo de uma educação pela arte é também mecanismo de transformação social, de forma lúdica, ocupando os espaços institucionais, como fez no projeto Arte Pará 2019, quando, para além das obras presentes nas exposições, dentre outras atividades e conversas, realizou diversas ações como: Resistência Guerra de Travesseiros, em homenagem à Resistência da II Guerra Mundial; O Pesadelo do Trabalho Infantil de Todos os Tempos, que se refere à violência na qual, mesmo no compartilhar de um sorvete sustentado pelo cone de uma estátua, alude ao trabalho infantil; Pacífico, em que pessoas são convidadas a compartilhar um espaço gerador de afetos e mediação.

Essas ações, por vezes calcadas em pequenos gestos, marcam a carreira da artista, cujo fluxo de trabalho mistura-se com sua vida e suas observações acerca de questões da história, da violência e da política; são eventos produzidos em bases colaborativas, solidárias e humanistas. Em sua carreira há ações que são refeitas, motivadas por novas condições ora locais, ora globais, sendo ainda visibilizadas e reativadas na conta pessoal do instagram, plataforma muito utilizada por Gomes como veículo de difusão das tantas atividades. A delicadeza e a positividade dá o tom em vários projetos, como em Típico de Humanos, performance em que ela corta corações em roupas penduradas no varal, realizada em Zurique, Suíça, em 2009, e no bairro do Guamá, em Belém do Pará, em 2019, dentro da residência artística Na Casa do Artista na vila de Icoaraci olarias da vila de Icoaraci. Afetividade, alegria, liberdade, confiança e compartilhamento de sentimentos estão no cerne desses processos artísticos, quando a alteridade e o reconhecimento da subjetividade do outro produzem arte (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4, Figura 5).

Figura 1 Lúcia Gomes, Pipaz, 2006. Interferência artística. Arte Pará 2006, (página do catálogo), Belém. Fonte: http:// www.frmaiorana.org.br/?page_id=2698  

Figura 2 Lúcia Gomes. Resistência Guerra de Travesseiros, 2019. Happening. Arte Pará 2019, (post instagram), Belém. Fonte: https://www.instagram.com/p/B4-qTRaB5vz/  

Figura 3 Lúcia Gomes, O Pesadelo do Trabalho Infantil de Todos os Tempos, 2019. Ação interativa. Arte Pará 2019, (post instagram), Belém. Fonte: https://www.instagram.com/p/B5QSsiBBFbu/  

Figura 4 Lúcia Gomes, Pacífico, 2019. Ação interativa. Arte Pará 2019, (post instagram), Belém. Fonte: https://www.instagram. com/p/B5Tbv5XhMY8/  

Figura 5 Lúcia Gomes, Típico de Humanos, 2009. Performance, (post instagram), Zurique. Fonte: https://www.instagram.com/p/B5Tbv5XhMY8/  

Em outras propostas o viés político é manifestado com mais intensidade, como em Ditadura Nunca Mais - AI 5 NÃO, de 2019, intervenção artística realizada em vasos cerâmicos típicos produzidos em olarias de Icoaraci, durante a permanência Na Casa do Artista e ainda no X Fórum Bienal de Pesquisa em Artes do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará, dentro de sua programação artística. Gomes intervém no design durante a manufatura do objeto utilitário, qual seja um copo, com a inserção da frase “AI 5 NÃO”, uma crítica à sugestão feita pelo filho do presidente do Brasil que insinuou o desejo pela volta do Ato Institucional nº 5, dispositivo coercitivo utilizado pela ditadura brasileira em 1968, como forma de repressão e supressão de direitos civis, e que serviu como instrumento legal para encobrir um grande número de atrocidades contra o cidadão, terminando em inúmeros mortos e desaparecidos (Figura 6).

Figura 6 Ditadura Nunca Mais - AI 5 NÃO, 2019. Intervenção artística, (fotografia), Belém. Fonte: Suely Nascimento. 

Durante o X Fórum Bienal de Pesquisa em Artes Gomes realiza a intervenção, dialoga com os marujos e marujas do evento, e oferta seu copo. Entre as pessoas presentes estão a professora emérita Zélia Amador de Deus, artista, humanista e ativista que vem trabalhando, ao longo de sua carreira em prol do movimento pela inclusão das chamadas minorias na academia negro no Pará, pela inclusão das chamadas minorias na academia, e Rosana Paulino, artista, educadora e curadora, cuja produção artística aborda questões sociais, de etnia que dizem respeito à mulher negra na sociedade brasileira, racismo estrutural e a violência dirigida à população negra. Nesse agrupamento, a violência do estado propiciou uma reflexão crítica sobre vida do brasileiro, num encontro de artistas que usam suas vozes para dar visibilidade aos processos de exclusão que são operados na sociedade.

Ora objetivamos dar visibilidade a uma produção que já possui reconhecimento por parte do circuito de arte nacional. No entanto, e a despeito de ter participado de projetos importantes, Gomes ainda é pouco conhecida, apesar da densidade das questões abordadas, da maturidade da discussão provocada por ela, e de sua trajetória para fora das fronteiras amazônicas.

Neste contexto nos concentraremos em propostas em que as intervenções, ações e performances constituem um poderoso espaço relacional, nas quais o papel de expectador é subvertido e ocupa destaque fundamental para a existência da arte, evidenciando a sua mutação em participante, em sujeito que transforma e é transformado pelo processo artístico. Em certa medida suas proposições operam naquilo que Paulo Herkenhoff irá chamar de digramas de alteridade, conceito que apresenta como modo propositivo de “ações incidentes no plano da economia simbólica com resultados positivos reais para a vida das pessoas. [...] se constituem como processo num campo de relações de diferenças e de incertezas.” (Herkenhoff, 2019:2013).

Militante política durante um período expressivo no final dos anos 1980, vem daí seu posicionamento crítico diante da sociedade e dos processos de violência simbólica e econômica propiciados pelas gestões ancoradas em projetos colonialistas e neoliberais: seu posicionamento humanista passa a questionar a violência perpetrada pela ditadura militar brasileira com o golpe de 1964.

Nesse contexto podemos pontuar sua recente performance, captada em vídeo e em fotografia, chamada Pelo julgamento dos golpistas de 64 e torturadores, de 2019, obra comissionada pela curadoria do 38o Arte Pará, maior projeto de arte do norte do Brasil, que congrega exposições e ações em museus, na cidade de Belém do Pará, na Amazônia (Figura 7).

Figura 7 Lúcia Gomes. Pelo julgamento dos golpistas de 64 e torturadores Performance, (fotografia), 2019. Fonte: própria. 

Na obra a artista elabora uma roupa utilizada em uma tradicional manifestação cultural de Quatipuru, localidade onde sua família habita no interior do Pará, na zona do Salgado: a Marujada, festa na qual os participantes usam vestes feitas nas cores branco e vermelho, mas Gomes produz uma roupa totalmente negra. Se na Marujada os participantes dançam horas em celebração ao santo padroeiro, São Benedito, santo negro descendente de escravos capturados e protetor dos pobres, a artista performatiza silenciosa, caminhando pelos espaços, sejam naturais, sejam urbanos, numa ação densa de significado.

No Arte Pará a artista exibe um vídeo na exposição dedicada a artistas mulheres - As Amazonas do Pará, bem como em Deslendário Amazônico - 80 Anos de Paes Loureiro, mostra que articula a epistemologia do referido autor, poeta e ensaísta que evidencia um modo de existir na região norte do Brasil, processos de subjetivação e relações ambientais, históricas e culturais. Na performance a artista atravessa espaços, ambientes nos quais a presença humana se dá em maior ou menor presença, percorrendo os lugares silenciosamente, com aquela roupa - que deveria ser festiva e colorida, de vermelho e branco - em luto negro. Pelo julgamento dos golpistas de 64 e torturadores é uma ação poderosa, por meio do qual a artista aponta o silêncio do estado, que não olha os seus crimes, e absorve torturadores no processo de Anistia. Podemos ver na imagem a seguir, fotografia exibida em Deslendário Amazônico, que na beira do rio, com barcos de pesca em bandeiras negras, arruinadas pelo vento, paira um urubu, o abutre típico das cidades do Brasil como que rondando a artista.

Amaivos, Mênstruo Monstro Mostra Mostarda, Pacífico, Resistência são alguns dos projetos desenvolvidos ao longo dos últimos vinte anos, sendo diversos reativados ao longo de sua carreira. Empregando muitas vezes a arte como motor para a reflexão acerca da realidade, Lúcia Gomes, focada em diversos reativados éticos, busca nos pequenos gestos, envolver as pessoas com as quais atua: de cidadãos simples, invisibilizados, até pessoas familiarizadas com a arte, por meio de agenciamentos que fomentam um compromisso com o outro, ampliando o território das suas intervenções artísticas, conclamando aquele que seria um expectador-participante a refletir sobre seu papel enquanto cidadão no mundo e a constituir territórios mais humanos. Sua poderosa obra, a obra desta mulher artista da Amazônia, que está para além de si mesma e do seu trabalho, nos convoca para o essencial necessário aos tempos sombrios que se apresentam.

Referências

Chaia, Miguel (2007). Artivismo: Política e Arte Hoje, Aurora 1. São Paulo: PUC - SP [ Links ]

Freire, Cristina. (1999). Poéticas do processo. São Paulo: MAC/Iluminuras, [ Links ]

Freire, Cristina (2006). Arte conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores [ Links ]

Herkenhoff, Paulo (2006). Arte Pará 2006. Belém: Fundação Romulo Maiorana, [ Links ]

Herkenhoff, Paulo (2019). Rio XXI. Vertentes Contemporâneas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, [ Links ]

Jacques, Paola Bereinstein (2001). Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, [ Links ]

Maneschy, Orlando (2006) Notas Sobre Experiências Incorporadas. In: Herkenhoff, Paulo. Arte Pará 2006. Belém: Fundação Romulo Maiorana , p. 51 - 62. [ Links ]

Maneschy, Orlando, Sobral, Keyla (coord.). (2019).Deslendário Amazônico: 80 Anos de Paes Loureiro. Belém: Arte Pará 2019 - Malhas Afetivas. [ Links ]

Mourão, Rui (2015). Performances Artivistas: Incorporação Duma Estética de Dissenção Numa Ética de Resistência. Cadernos de Arte e Antropologia, Vol 4, ne 2. [ Links ]

Matos, Nina (Coord). (2019). As Amazonas do Pará. Arte Pará- Malhas Afetivas. Belém, 2019. [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2020; Aceito: 21 de Janeiro de 2020

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