SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número32Isabel Valverde: habitar os Lugares Sentidos da performance digitalA Cidade dos Piratas: o reflexo de uma sociedade índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.11 no.32 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

 

Artigos Originais

Fernanda Gassen em foto-eventos: banquetes e convescotes entre literatura e pintura

Fernanda Gassen in photo-events: banquets and convescotes between literature and painting

Eduardo Vieira da Cunha1 

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Programa de Pós-Graduação em ArtesVisuais. Rua Senhor dos Passos, 248, Cep 90020-180, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: ppgav@ufrgs.br


Resumo

O artigo trata de um trabalho da brasileira Fernanda Gassen. O convite é feito a um grupo, para pequeniques e convescotes. São os foto-eventos. A instigação à reunião é a oportunidade encontrada para realizar as séries, onde ela estabelece um exercício sobre o gesto performativo na fotografia, e uma reflexão sobre o lugar da refeição como reunião, partilha e comunhão. O objetivo é discorrer sobre as relações do meio fotográfico com o ex-voto como promessa, e atitudes de introversão e extroversão.

Palavras chave: ex-voto; gênero; melancolia; vaidade

Abstract

The goal of this article is focuses a work by a Brazilian artist Fernanda Gassen. An invitation is done to a group, to do outdoor gatherings, the photo-events. The instigation to the meeting is an opportunity found to do the series, which establishes an exercise on performer gestures in photography, and a reflection about the place of the meal as meeting, sharing and communion. The objective is to discuss the relationship between the photo medium with the ex-voto,as a promise, introversion and extroversion.

Keywords: ex-voto; genre; melancholy; vanity

Introdução

Fernanda Gassen nasceu no Rio Grande do Sul, Brasil. O trabalho, tema do presente artigo, foi desenvolvido para seu doutorado em Artes Visuais. As referências estão nas imagens pictóricas de pequeniques e banquetes encontrados na história da arte, na pintura moderna francesa do século XIX, com Manet e Monet, e terminando na área da literatura, como Baudelaire em O Pintor de Vida Moderna (Baudelaire, 2011) em um paralelo com a fotografia de Jeff Wall. Aspectos da modernidade, como a instantaneidade, o transitório, o fugidio, o que resta, o jardim e seu cultivo, encontram um contraponto com a pausa para a refeção em conjunto, e a vaidade (Figura 1) refletida nas poses. O jardim torna-se uma extensão do atelier. O artista sai da pressão melancólica da criação no local privado e oxigena-se na convivência, em público e ao ar livre.Utiliza-se aqui de uma metodologia dialética, com intersecções e contatos entre as diferentes formas de expressão artística, e as condições que envolvem o proceesso de criação: o tempo da solidão e melancolia do atlier,o do recolhimento sofrido na criação literária, tendo como contrapontos necessários a extrovesão do compartilhamento e a vaidade dos encontros mundanos, traduzidos nos gestos performativo na fotografia. Uma busca pelo lugar onde a fotografia assumiria nos dias de hoje a função da pintura como crítica social da vida contemporânea, seguindo o pensamento de Thierry de Duve (de Duve, 2004), para quem a fotografia a substitui com mais eficiência nesta tarefa. Além disso, a fotografia representaria a possibilidade delogo cumprir uma promessa de felicidade estabelecida a priori pelo artista.

1. Os foto-eventos: melancolia x vaidade

A artista realizou dez foto-eventos seguindo certos princípios pré-estabelecidos, onde os trabalhos praticos se baseiam em Manet e Monet, com parâmetros específicos de pose, enquadramento e frontalidade da captação. Gassen segue uma metodologia em três etapas: a mise-en-scène, a mise-en-place e a mise-en-cadre, normas de procedimento, com a proposta de explorar as relações de convívio, o ócio dividido e a alimentação.

Neste tempo da minuciosa preparação, a pesquisa e a reflexão sobre esta série nos remete à solidão que enfrentamos nós, os artistas, no atelier, e o isolamento, comum àquele que se dedica à pesquisa, tanto o que escreve uma tese em artes visuais, como o escritor de ficção. Ora, as atividades da pintura e da escrita são introspectivas e melancólicas, com seus longos procedimentos de sobreposições de camadas temporais. Neste tempo convive-se constantemente com a possibilidade do fracasso e da perda iminente. As artes visuais em geral,

Fonte: acervo da artista

Figura 1 Fernanda Gassen: Convescote: barrancas de Belgrano. 2012 (80 x 80 cm 

fotografia em particular, tem um tempo de reflexão e projeto pré e pós realização, que se assemelham à tessitura de um capítulo de uma tese. Isso se reflete bem na fotografia dirigida, a de Gassen.

Tendo passado pela pintura, ela chega à fotografia. A pergunta que se põe aqui é sobre estas escolhas, para quem trabalha na intersecção entre dois meios, e sobre as diferentes fases no processo de construção: na pintura, embora melancólicos, os longos procedimentos poderiam ser vividos também como uma promessa de futura felicidade? Vou retomar aqui uma afirmação de Thierry de Duve em abismo, pois ele se refere a Jeff Wall e Stendhall. Ele lembra a frase de Stendhall : O belo não é senão a promessa de felicidade, que Baudelaire repercute. (Baudelaire, 2011). E pergunta o que significaria cumprir essa promessa de felicidade. Cumpri-la ou perpetua-la simplesmente como promessa? Lembro aqui a história de Sherazade em Mil e uma noites. Promessa de algo novo, de um estado de espírito diferente, depois de uma espera, uma latência? Ou a promessa de uma crítica mais eficiente da sociedade contemporânea?

A fotografia poderia decretar-nos livre dessa longa latênciada promessa, pela sua imediatez que se traduz em uma maneira mais eficiente de comunicar nossos pensamentos. Ou mesmo liberar de uma espera demorada como a da pintura. Hoje, não disporíamos mais deste tempo. A fotografia nos tornaria assim livre de uma promessa tão desesperante, melancólica porque aguardada em longos períodos de latência e de espera, sempre solitários? Os ensaios fotográficos de Gassen apontam para uma possível resposta.

Adorno (Adorno, 1992) já dizia que a arte é uma promessa de felicidade, mas uma promessa falsa, traidora. Uma entrevista de Jeff Wall publicada na revista Vanguard (Wall, 1983) trata da mesma questão: perguntado por Els Barents sobre certa contradição em suas fotos, que mostram um mal-estar, mas que retoma a iconografia de Manet, Jeff Wall responde:

A contradição que me interessa não é simples corrente artística, mas uma verdadeira cultura política. E já que sua política se fundamenta na possibilidade material de troca, a arte joga nisso um papel predominante. Isso porque oferece a idéia complexa de algo melhor. Perceber algo ‘diferente’ em arte é, como disse Stendhall, sentir uma promessa de felicidade. (Wall,2003:35).

E entrevistador questiona: Mas em suas imagens, onde estão tão presentes a alienação e o mal-estar atual, elas assim mesmo prometem felicidade? A que Jeff Wall responde: Eu sempre pensei em realizar imagens belas (Wall, 2003:36).

Falar em troca, em desejo, significa falar de ex-voto suscepto e em mal-estar que se instala. O ex-voto surge na dificuldade. Ao contrério do que parece em Wall, e nos ex-votos, não há este mal-estar nas imagens de Gassen. Quando pintora se converte em fotógrafa, retoma um programa iconográfico de Manet. Mas não no procedimento: estaria no longo tempo de latência e espera um motivo para que hoje os artistas escolhessem a fotografia?

Essa promessa de felicidade estaria, além desta imediatez do aparecimento da imagem, também no aspecto “possibilidade de reprodução” da fotografia, como aponta Thierry de Duve? A presença física do pigmento que testemunha a materialidade do ato pictórico não existe na fotografia. E já que ela é plana, demasiadamente sem corpo, de Duve diz que Jeff Wall acrescentaria seu ingrediente: uma transparência salvadora, que é a da caixa de luz, um quadro-janela, onde a textura da água relembra a onipresença do elemento líquido nos processos fotográficos anteriores à era digital. Morte da fotografia de prata, como a morte da pintura anunciada anos atrás (de Duve, 2004).

Voltando ao trabalho de Gassen: Diferentente de Wall, ela afirma que embora se influencie, infelizmente nunca teve a oportunidade de viajar para conhecer as obras destes artistas. Mas Gassem procura resgatar a idéia do jardim como extensão do atelier e da pintura, transformando os convescotes em algo absolutamente tátil. Piqueniques lembram sentar-se ao chão, sentir a grama com o corpo e as mãos, mesmo que alisando a toalha. Come-se também com as mãos, resgatando uma sensação háptica, talvez perdida. Eles são uma promessa de felicidade, pelo menos até o próximo mau tempo, em comparação com a melancolia de realizar um trabalho fechado em uma sala de atelier.

Manet é considerado o pintor da vida moderna. A artista se influenciou, como o fez Jeff Wall, que foi influenciado e a influencia. Influência é uma palavra que vem de influenza, a gripe espanhola, alguma coisa que se pega involuntariamente. Os modelos de Manet e Monet eram pessoas conhecidas dele, assim como os modelos de Gassen e provavelmeente de Jeff Wall. O quer haveria de moderno na pintura de Manet é que ela feita para uma audiência. O que acontece ali? É uma pintura de gente que posa para uma pintura. Assim como os tableaux fotografiques, os quadros de Gassen são uma fotografia de gente que posa para uma fotografia. Mas a pintura pertence a um mundo onde não se mede o tempo, um mundo sem impaciência onde a lentidão é uma aliada. Já na fotografia, há o tempo medido da pose, da exposição, e esse tempo é muito curto. Mesmo que em Gassen, como em Jeff Wall, esse tempo fotográfico seja estendido em atelier.

Procurei então pensar o trabalho da artista nessa óptica tendencialmente táctil, háptica, da nossa contemporaneidade, com base no que Deleuse(Deluse, 1997) considera a diferença entre visualidade háptica e a visualidade óptica. E o que seria essa visualidade háptica? A melhor forma de descrevê-la seria dizer que ela vê o mundo como se lhe tocasse, isso é, muito de perto, com envolvimento físico e perceptivo, sem distinção clara entre sujeito e objeto, desmaterializando-o. Claro que isso tem a ver com a tecnologia, mas tem uma conexão evidente com o jardim que se transforma em obra de arte. Afinal, a ideia do pintor moderno, como Monet, também era a do cultivo e da posterior desmaterialização do jardim, deixando na pintura somente as cores.

Jeff Wall, conforme de Duve, já falara nisso quando usou uma expressão própria para se referir a um “universo aquoso” de uma superfície da fotografia, a chamada “liquid intelligence”. Lembra o legado de Monet, que é a Land Art, as maneiras de mostrar o fugidio reflexo das águas, e da fuga renovadora ao jardim, buscando estas energias nos reflexos da superfície d’água. Entretanto, hoje a fotografia digital distanciou-se da água antes indispensável no processo de revelação. Não há mais líquidos, no máximo a tinta. Não se fala mais em revelação, mas em impressão de fotos. A consciência histórica do meio foi alterada, mas a fotografia ainda se refere, como motivo, à água, assim como ao jardim.

O fato é que vivemos uma era de profundas modificações. Na cultura digital, o humano e a vida natural estão sob questionamento, gerando novos tipos de sujeitos e de imagens, e a necessidade de uma crítica constante. A fotografia, com sua rapidez e possibilidade de multiplicação, responderia hoje este papel de crítica com mais eficiência que a pintura.

2. A pose e o jardim

Passemos agora para a pose, para o gesto performativo no jardim e para a relação do artista com a natureza, que se reflete no trabalho de Gassen. Em suas influências do século XIX, a artista aponta para a mudança de ponto de vista dos pintores (Gassen, 2016). Monet, por exemplo, criava um jardim com o olhar de artista. Era o lugar para onde ele fugia para renovar energias, e que se transformava também em motivo da pintura. Se os pintores impressionistas cultivavam com cuidado as flores, era para buscar um projeto da modernidade. Já Gassen e Wall buscam agora um projeto da pós-modernidade. Mas modernos e pós-modernos, pintores e fotógrafos, dividem a mesma ideia: a desmaterialização do jardim e da pose. O projeto do pintor impressionista era o de deixar somente o sentimento das cores na tela. O fotógrafo contemporâneo vai em busca de outro extremo: no limite do excesso da interpretação e da pose, procura a transparência total, e a transgressão das categorias de gênero, borrando fronteiras.

Michael Fried se refere a uma “antiteatralidade” na pose, que une Manet ao fotógrafo contemporâneo (Fried, 2007) até chegar no minimalismo, onde haveria um retorno da teatralidade, e as situações seriam construídas entre o espectador e o espaço. Mas os fotógrafos teriam substituidos, hoje, a questão do

Fonte: Arquivo da artista

Figura 2 Fernanda Gassen, Convescote parque los Andes 2012. Fotografia, 40 x 60 cm 

foco no olhar impressionista para falar de uma autonomia estética colocada em primeiro plano na prática artística. As rupturas sucessivas no seio da tradição moderna acabaria na fotografia, como marca da evolução, que se alimenta da tradição modernista. O gênero anterior da pintura impressionista, o cultivo do jardim, agora transforma-se em cultivo de atitudes performáticas, na pose.

3. Conclusão: a promessa cumprida, o ex-voto suscepto.

Voltemos à promessa de felicidade. O que é uma promessa? Um desejo. A promessa incluiria a sua plena realização? Para os impressionistas, suponho que a entrega da promessa seria uma pintura, com sua lenta latência, adquirida com a materialidade da acumulação dos pigmentos sobre a tela. Um ex-voto é uma promessa, um desejo que se cumpre com a realização de uma imagem material, que pode ser uma escultura, uma peça anatômica, ou mesmo uma cena pictórica. Um ex-voto é sempre suscepto, que significa a sequência do voto, da promessa, sua realização e materialização, com a oferta de um objeto. A promessa dos fotógrafos contemporâneos como Gassen (Figura 2), seria uma promessa desmaterializada, em ausência, e relacional como toda a imagem fotografica: sempre se referindo a algo. Esta ausência seria a imagem da promessa? A passagem, entretanto, continua aberta: a arte seria marcada pelo binômio pressão e oxigenação. Pressão melancólica do atelier solitário, o desejo e a melancolia e o ex-voto. E oxigênio na convivência no jardim, o suscepto, a vaidade. Tanto em flores como em poses, materializada na pintura ou desmaterializada na fotografia, mas sempre a promessa de algo melhor.

Referências

Adorno, W Theodor ( 1992) Teoria Estética. Madrid: TaurusEdiciones. ISBN: 978661202792. [ Links ]

Baudelaire, Charles(2011)O Pintor da Vida Moderna. Belo Horizonte: Autêntica. Trad.: Jérôme Dulfino e Thomas Tadeu. ISBN 9788575264867. [ Links ]

Deleuse, G. e Guatari, F. (1997) O liso e o estriado. Em: Mil Platôs. Sã Paulo: edit. 34 ISBN 9786613195531. [ Links ]

De Duve, Thierry. (2004) Jeff Wall: pintura y fotografia.Em:Laconfusión de los gêneros em fotografia. Barcelona, Gustavo Gilli. ISBN 9788425215483. [ Links ]

Fried, Michael (2007)Contrelathéâtralité. Paris: Gallimard 2007. ISBN 9782070775910. [ Links ]

Gassen, Fernanda(2016). Banquetes e convescotes: traços da pintura e da fotografia na proposição de foto-eventos. Porto Alegre: UFRGS. Tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. [ Links ]

Green, David (org) ( 2007) O que ha sido de lafotografía? Barcelona: Gustavo Gilli, 2007. ISBN 9788425221323. [ Links ]

Wall, Jeff (1983) The site ofculture, contradictions, totalityand avantgarde. Vanguard: Vancouver. ISBN: 9780802058560. [ Links ]

Wall, Jeff(2003) Unidad y fragmentacionen Manet, Ensayos y entrevistas. Salamanca: Centro de artes de Salamanca ISBN 9788416205103 [ Links ]

Recebido: 27 de Dezembro de 2019; Aceito: 21 de Janeiro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons