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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.11 no.32 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

 

Artigos Originais

A Cidade dos Piratas: o reflexo de uma sociedade

City of Pirates: the reflection of a society

Eliane Muniz Gordeeff1 

1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes (FBAUL), Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA), Largo da Academia Nacional de Belas Artes 4, 1249-058 Lisboa, Portugal. E-mail: gordeeff@quadrovermelho.com.br


Resumo

Este artigo apresenta a longa-metragem em animação, A Cidade dos Piratas (2018), do brasileiro Otto Guerra, como um resultado de um conjunto misto de dados de uma sociedade políticos, económicos, culturais e sociais. Algumas situações particulares e coletivas são apresentadas, assim como estas são representadas na obra. Nesse sentido, as análises foram feitas segundo os estudos de Jean Duvignaud, e através de informações do autor através de entrevistas, diretas e de comunicação social.

Palavras chave: Cinema de animação; Animação brasileira; Otto Guerra; Sociologia da arte

Abstract

This article presents the animated feature film City of Pirates (2018), by Brazilian Otto Guerra, as a result of a mixed set of data from a society political, economic, cultural and social. Some particular and collective situations are presented as they are represented in the work. In this sense, the analyses were made according to the studies of Jean Duvignaud, and through the author’s information through interviews, direct and social communication.

Keywords: Animation cinema; Brazilian animation; Otto Guerra; Sociology of art

Introdução

Este artigo analisa como um a imagem animada e a sua narrativa audiovisual são capazes de representar, diversos níveis de informação de uma sociedade. A obra analisada é a longa-metragem A Cidade dos Piratas (2018), de Otto Guerra. Cineasta de animação, Guerra é referência no Brasil, tendo fundado aos 22 anos de idade a sua produtora Otto Desenhos Animados, em 1978. Resistiu a todas as intemperes económicas e políticas que o cinema brasileiro sofreu ao longo do tempo, lançando a sua primeira longa-metragem em desenho animado em 1994, Rocky & Hudson: Os caubóis gays. Além de apresentar um tema “polémico”, o filme foi lançado após a extinção da Embrafilmes (pelo então presidente, Fernando Collor de Mello). Empresa de economia mista, tinha o controlo estatal e era a responsável pelo fomento do cinema nacional. Portanto, o lançamento de uma longa-metragem, em animação e com temática LGBT, indubitavelmente foi um sinal de resistência.

Durante os seus mais de 40 anos de trabalho, Guerra lançou diversas curtas, e mais outras duas longas-metragens. Sempre com temas bem particulares, e com estética e narrativas underground, declaradamente influenciada por Robert Crumb e Gilbert Shelton (Daehn, 2019).

A Cidade dos Piratas foi vencedora dos prémios de Melhor Roteiro e de Direção, no Festival de Cinema de Vitória (2018), recebeu Menção Honrosa no 46º Festival de Cinema de Gramado, e de Melhor Filme no Múmia 2018. Internacionalmente, foi reconhecido como o Melhor Filme no Anima Latina (Argentina), no Cinanima 2019 (Portugal), e no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano 2019 (Cuba), além de receber Menção Honrosa do Júri de Estudantes do Ojo Loco Festival de Cinéma Ibérique & Latino Américan (França).

O filme intercala imagem animada e real, de entrevistas de Laerte Coutinho, conhecida cartunista brasileira, falando sobre a sua decisão em assumir a sua personalidade feminina. A obra não apresenta um caráter documental somente pelo tema. Tal foco dramático já seria grande fonte de informações e reflexões a serem desenvolvidas. Porém, o filme fornece ao espetador mais quatro eixos narrativos.

As histórias do filme se desenvolvem através de factos da vida de Laerte, com suas personagens de banda desenhada (Piratas do Tietê), factos da produção do filme e da doença de Guerra, juntamente com a história de uma eleição - cujo candidato vencedor é um indivíduo branco e homofóbico. Qualquer semelhança não foi mera coincidência. É uma obra meta-linguística e de contexto social. As tramas apresentadas são aspetos da sociedade brasileira, onde assuntos de toda ordem são abordados, criando uma dinâmica e uma “anarquia narrativa” (Daehn, 2019), palavras de Laerte (que colaborou no guião), característica típica das suas bandas desenhadas.

1. A Cidade dos Piratas ou uma mesclagem de narrativas, em animação

Na ideia inicial do filme, seria uma história sobre os Os Piratas do Tietê (1983), de Laerte, banda desenhada publicada na revista Chiclete com Banana (Teixeira, 2018). Na história, depois de cinco séculos de arrendamento da área da cidade de São Paulo aos “Bandeirantes” (nome dado aos grupos de desbravadores do território colonial), esta deveria ser devolvida aos índios e aos piratas, que fizeram o negócio.

Porém, como toda produção audiovisual, e particularmente a animada brasileira que atravessa inúmeras dificuldades, a de Guerra não foi diferente. Com a primeira versão do guião de 2003, a obra atravessou 15 anos, até o seu lançamento. Durante esse período, não só ocorreram mudanças políticas radicais no Brasil, como também nas vidas do próprio realizador e da cartunista. Pois, após assumir-se de outro género, Laerte passou a criticar e renegar o comportamento machista de suas personagens. Nesse intervalo, Guerra foi diagnosticado com cancro “de cólon, com fígado, pulmão e cérebro afetados” (Daehn, 2019), tendo passando por cirurgia e quimioterapia.

Portanto, o filme sofreu e foi o resultado dessas metamorfoses, assimilando esses aspetos: personagens rejeitadas em crise (os piratas), personagem travestida (Hugo/Muriel), além do próprio Otto Guerra - seu tratamento médico e as crises da produção. A questão transgénero de Laerte, passou a ser o centro propulsor da narrativa, e não mais a trama da BD, que se manteve presente juntamente com parte da perseguição a Fernando Pessoa, o poeta português que na BD recita seus versos, e é considerado “boiola” (“fresco”/gay) pelos piratas. Os contextos sociais e políticos também somaram-se à história. A própria questão de assunção de género diverso do de nascença, chamou tal aspeto à baila. Pois, depois de alguns anos de uma visão mais igualitária em relação às minorias, as diretrizes governamentais mudaram radicalmente. Portanto, um candidato à presidência (Azevedo, também personagem de Laerte), homofóbico, inseguro e que guarda escondidos botijas de ódio, foi integrado a esse im-

bróglio narrativo.

E qual o melhor meio para representar todo esse conjunto de coisas, um universo confuso, mas nada desconexo? A Animação.

O uso do desenho animado como técnica de representação foi indiscutivelmente necessário e coerente. Necessário pois, era preciso representar situações muito díspares entre si: personagens de BD, factos passados, imagens e sonhos

Fonte: Divulgação

Figura 1 Cena em que Guerra (o realizador), em um bar, partilha a ação com as personagens de Piratas do Tietê, de Laerte 

Fonte: Otto Desenhos Animados

Figura 2 Still de Novela (1992) curta-metragem de Guerra, que satiriza as novelas brasileiras 

Fonte: Otto Desenhos Animados

Figura 3 Original de Rocky & Hudson: Os caubóis gays (1994), longa-metragem de Guerra que satiriza o “machismo gaucho” 

das personagens. Guerra pode desfrutar de toda a liberdade de se colocar numa mesa de bar, e beber com o Pirata e seu crocodilo (Figura 1), sem qualquer entrave de pedido de licença com a prefeitura, ou com dificuldades de criação de personagem tridimensional - se este fosse feito em 3D, real ou virtual -, que teria que manter conexão com a personagem bidimensional original. A coerência também se apresenta pela sua estética caricatural, presente tanto na obra de Laerte como na cinematografia de Guerra - como em Novela (1992) (Figura 2) e Rocky & Hudson: Os caubóis gays (1994) (Figura 3). Uma vez que os eixos principais da narrativa tratam de personagens de BD e de factos biográficos de um cartunista, o desenho animado é também a estética mais coerente dessas representações.

Vale destacar que os primeiros desenhos animados, se originaram em trabalhos de cartunistas de jornal, como Émile Cohl (1857-1938), Winsor McCay (1869-1934). Portanto há também uma coerência histórica.

Mesmo quando a longa se utiliza de imagem real de entrevistas, estas resultam na valorização da imagem desenhada, uma vez que deixam claro a diferença de emprego de ambas. A real, mostra Laerte, a personalidade. A imagem animada mostra todo o resto: as suas histórias, a sua sociedade, as suas crises, o seu imaginário criativo, e o de seu amigo (o próprio Guerra). E com toda a liberdade e acidez que possibilitam algumas linhas sobre papel.

2. Algumas Chaves Sobre o Reflexo Social

Como a obra de Guerra carrega um contexto sócio-político fundamental, os estudos de Jean Duvignaud (1921-2007) apresentam elementos úteis à sua análise.

Duvignaud propõe alguns “conceitos operatórios” (1970: 36) para a análise sociológica da arte, um deles é o “drama”, ou

conjunto dos comportamentos, emoções, atitudes, ideologias, ações, criações que ao nível do indivíduo criador, cristalizam a sociedade inteira e engajam a génese da obra na engrenagem das formas contraditórias que compõem avidacoletiva (1970: 36-37).

É onde se encontram

comportamentos reunidos em um todo em movimento, um processo que oferece os aspectos de uma exteriorização real, no decurso da qual desempenhamos um papel, lutamos contra um obstáculo, renunciamos, somos vencedores ou vencidos: é no interior deste esquema que as significações humanas [...], assumem a sua validade (Duvignaud, 1970: 36).

Através dos vários dramas que o filme apresenta, é possível perceber a dinâmica das relações e os contextos político-sócio-económicos. A obra resulta num instantâneo alargado da produção de si mesma, registando por metalinguagem, seus problemas de realização, juntamente com os de seus criadores.

Outros “conceitos operatórios” propostos por Duvignaud, “anomia” e “atipismo”, também servem à análise. O primeiro “designa o conjunto das festas de desagregamentos, resultando da mudança da estrutura social, [...]” (1970: 45). Devido a modificações de estruturas sociais ou coletivas, seja por dinamismo interno, guerras ou afrontamentos, formas estabelecidas são quebradas sem que outras tenham sido erguidas.

A vida psíquica individual ou coletiva, [...] não pode mais encontrar a sua expressão e o seu desenvolvimento no contexto de uma sociedade em vias de dissolução, acha o seu caminho para o imaginário e a invenção das formas (Duvignaud, 1970: 45).

O filme de Guerra representa perfeitamente este momento de rutura da estrutura brasileira. Um determinado modus operandi da sociedade não foi plenamente enraizado, enquanto outro já se apresenta, além de toda essa situação estar inserida em um macro contexto de interesses.

O “atipismo” conceito oposto ao anterior, também é pertinente, sendo “o mais limitado, encontra[ando] sentido em sociedades com sistema de valores únicos, homogéneos” (Duvignaud, 1970: 46). Quando ao indivíduo atípico “lhe é impossível integrar-se nos estereótipos comuns, [...], no ideal cultural que define a personalidade de base [...]” (1970: 47), este escapa de alguma forma - pela arte, como no caso de Laerte. Que se manteve “obscura”, atípica por muito tempo, pois a sociedade brasileira é “padronizada”.

Mas, a Arte “impõe uma reposição em questão das relações humanas, [...] geradora de relações inéditas e de reagrupamentos não-realizados” (1970: 48). Pode-se considerar tal afirmação como uma descrição atemporal, sobre o filme de Guerra, em que é possível identificar como atitude estética, uma “oposição ética à experiência cultural tradicional de uma sociedade e aos valores estabelecidos que ela criou” (Duvignaud, 1970: 70). Guerra expôs outras relações, conectando personagens, histórias reais e ficcionais, criando além de um simples desenho animado.

Conclusão

Como dizia Antônio Carlos Jobim (1927-1994): “O Brasil não é para principiantes” (Silva, 2014). Obra representativa da sociedade brasileira, A Cidade dos Piratas é quase um enigma para ser decifrado por iniciados na “brasilidade”.

Ela reflete pragmaticamente a complexidade do país, misturando concomitantemente elementos históricos, sociais, económicos, políticos e culturais. Apresenta realidade e ficção, crítica e reflexão. É o mais importante filme de Otto Guerra não somente pelo seu momento de vida - o filme representa a vitória pela própria vida -, mas também pelo facto de ser amplo o seu foco, integrando problemas e questões reais e atuais, de forma a criar um caos - situação real do país, refletida na forma do guião, onde “o mote é não ter mote” (Guerra apud Daehn, 2019). “Essa realidade atropelou mesmo a história, e como eu ia morrer mesmo, eu resolvi fazer o filme que eu queria fazer. Essa mistura tem a ver com ‘chutar o pau-da-barraca’” (Guerra, 2019).

Como identifica Duvignaud, é através de atitudes estéticas, que se procura “criar ‘sociedade”, onde através delas, “o imaginário cumpre a sua missão existencial na trama da vida social” (1970: 55).

Definitivamente a obra de Guerra é complexa, sendo difícil mesmo para os brasileiros compreender profundamente o que lhes é ofertado no ecrã. Porém, é exatamente essa complexidade que lhe garante uma caraterística única dentro da cinematografia, real e animada.

Referências

A Cidade dos Piratas (2018). Realização: Otto Guerra. Brasil: Otto Desenhos Animados. Digital, 80 min. [ Links ]

Daehn, Ricardo (2019) “Animação ‘A cidade dos piratas’ imprime perspectivas e valores de Laerte” Correio Brasiliense/ Diversão e Arte. [Consult. 2019-12-05] Disponível em URL: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2019/11/10/interna_diversao_arte,804952/animacaoa-cidade-dos-piratas-imprime-perspectivas-evalores-de-laer.shtmlLinks ]

Duvignaud, Jean (1970) Sociolagia da Arte. Traduzido do francês por Antônio Teles. São Paulo: Companhia Editor Forense. [ Links ]

Guerra, Otto (2019) Entrevista concedida à autora em arquivo de áudio (m4a, 11:12 min) em 19 dez 2019. [ Links ]

Silva, Deonísio da (2014). “De Onde Vem As Palavras”. Lexicon Editora Digital Ltda. ISBN-10: 8583000042. [ Links ]

Teixeira, Paulo César (2018) “O rei da animação: Otto Guerra finaliza novo longa e lança autobiografia” Jornal do Comércio. [Consult. 2019-1205] Disponível em URL: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/cultura/2018/06/630939-o-rei-daanimacao-otto-guerra-finaliza-novo-longa-elanca-autobiografia.htmlLinks ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2020; Aceito: 21 de Janeiro de 2020

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