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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.11 no.32 Lisboa dez. 2020  Epub 31-Dez-2020

 

Artigos Originais

Cores de pele: o projeto Humanae de Angélica Dass

Skin Colors: The Angélica Dass Humanae project

Marcos Rizolli1 

Leslye Revely dos Santos Arguello1 

1 Universidade Presbiteriana Mackenzie; Programa de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura; Grupo de Pesquisa Arte e Linguagens Contemporâneas - aTempo, CNPq. R. da Consolação, 896-916 Consolação, São Paulo SP, 01302-000, Brasil. E-mail: marcos.rizolli@mackenzie.br; leslye.revely@gmail.com


Resumo

O presente estudo tem como intuito descrever e refletir sobre a obra da artista fotógrafa brasileira Angélica Dass, nascida em 1979, no Rio de janeiro. No primeiro momento será necessário contextualizar seu percurso no cenário artístico. Depois será feito uma descrição de sua metodologia para desenvolver o projeto Humana e que aborda principalmente a questão das cores de pele. A obra estudada impacta sobre a expressão artística rica em diversidades de cores a partir da nossa pele, como também sobre o reflexo do tema na educação a respeito da diversidade e inclusão social.

Palavras chave: Humanae; Angélica Dass; Arte Contemporânea; Work in Progress

Abstract

This present study aims to describe and reflect about the job of Brazilian photographer Angélica Dass, she was born in 1979, in Rio de Janeiro. At first it will need to contextualize her journey in the artistic scene. After that description will be given of its methodology for developing the Humanae project that mainly approach the issue of skin colors. The work studied impacts on the artistic expression rich in color diversity from our skin, as well as on the reflection of the theme in education about diversity and social inclusion.

Keywords: Humanae / Angelica Dass / Contemporary Art / Work in Progress

Introdução

A Arte Contemporânea tomou corpo no Brasil a partir dos anos de 1960. Nesse percurso reconheceu, na década anterior, um processo de internacionalização propiciado pelas Bienais de Arte de São Paulo. Artistas desejavam a vanguarda! Exemplos: a Exposição Rupturas (MAM-SP, 1952), a exposição do Grupo Frente (Galeria do IBEU, 1954) e a já legendária I Exposição Nacional de Arte Concreta - que propôs a conexão artística RJ-SP. Esses acontecimentos geraram um debate produtivo e importante para a arte brasileira ao mobilizar artistas e associações de arte e cultura.

Com a implantação do governo militar em 1964 a comunidade artística viveu momentos de resistência à censura, às perseguições aos intelectuais e às limitações expressivas impostas pelo regime.

Nesse contexto, algum elementos merecem destaque: as novas ideias sobre arte solicitam a participação do público, a criatividade é compartilhada através do surgimento dos coletivos artísticos e a adoção de algumas questões de arte até hoje irreversíveis: abordagem de temas políticos, sociais, éticos, valorização de raízes populares da cultura e do seu entorno social - e na dimensão procedimental, a linguagem fotográfica como plataforma para construção de novas poéticas visuais.

1. A presença de Angélica Dass

A artista Angélica Dass, fotógrafa dessa nova geração, insere-se nesse contexto. Suas obras têm como tema central o humano. Desde sua primeira exposição solo até o atual momento, todas possuem caráter híbrido de abordagem com diferentes linguagens e formatos. Mas a fotografia é sua maior ferramenta para

a expressão.

A fotografia vem ocupando espaços cada vez mais significativos no contexto da contemporaneidade. Os novos suportes, tais como o metacrilato, e as novas tecnologias digitais têm contribuído decisivamente para este boom, não apenas como produção qualitativa mas também como resultado quantitativo (Sacramento, 2012:16).

Angélica Dass nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1979, se formou em Artes na UFRJ em 2006, depois fez Mestrado em Fotografia na EFTI na Espanha em 2011. Como fotógrafa trabalhou em Revistas como Glamour, GQ e Marie Clarie, principalmente com a pauta moda utilizando muito da pós-produção em suas fotos. Após um período trabalhando como fotógrafa desses veículos, sentiu a necessidade de estudar mais sobre arte e seus significados. A partir daí, fez o mestrado em Fotografia onde se dedicou mais profundamente à Arte Contemporânea.

Entendo a fotografia como um diálogo do pessoal ao global; como um jogo em que os códigos pessoais e sociais são colocados em jogo para serem reinventados, um fluxo contínuo entre o fotógrafo e o fotografado, uma ponte entre máscaras e identidades. Por esse motivo, levanto meu trabalho como uma ferramenta de exploração, questionamento e busca de identidade, para cada um e os outros (Dass, site da artista).

As obras da artista são possíveis de serem acompanhadas através de seu site que já tem como frase de abertura: Ativador mais do que ativista. Essa sentença já demonstra seu posicionamento e postura como uma artista que além das opções estéticas, visuais e sensoriais, a preocupação de temas que a inspiram de modo geral como questões relacionadas a transformação da realidade. E mais do que isso, o estímulo e incentivo para essas mudanças. Dessa forma, conforme Giorgio Agamben, a artista está no perfil do artista contemporâneo pois tenta responder com suas obras inquietações do seu tempo.

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo (Agamben, 2007:58-9).

Sua primeira exposição foi em 2013 em Madrid, local que ela atualmente reside. Depois disso, já fez exposições em todos os continentes. De maneira geral, suas obras possuem viés ativista e focado no ser humano, nas suas histórias, realidades e pontos de vista. Por exemplo: #yosoysomos (apresenta fotos e narrativas de mulheres imigrantes); 280 chibatadas (expôs painel com comentários racistas extraídos da internet); Desenredo (vídeo arte com uma menina negra desembaraçando seu cabelo crespo); De pies a cabeza (fotografias de cabeças e pés de pessoas); Vecinas (coautoria de fotos e histórias de mulheres que nasceram em Mali e são imigrantes na Espanha); Kilda (fotos com objetos e cenários que pertenciam a sua vó matriarcal brasileira); Só vim te ver pra lembrar quem eu sou (foto de uma pessoa pisando num sítio arqueológico do Cais do Valongo, na Praça do Jornal do Comério, RJ, construído em 1811 para facilitar o embarque de escravos).

Contudo, a obra objeto deste estudo é o projeto Humanae que teve impactante repercussão de crítica, público e mídia.

2. O projeto Humanae

O projeto intitulado Humanae nasceu em 2012 de uma angústia da artista em observar a necessidade humana de classificação pela cor de pele restritas a branco, negro, amarelo e vermelho. A artista afirma que sua família sempre foi multicolorida, ou seja, muitas cores passeavam sob seus olhos desde a infância. Peles de chocolate, baunilha, avelã, porcelana, cor canela ou mel. Dentro de sua casa nunca percebeu uma distinção ou classificação por cor. Fora dela, observava que carregava uma mochila invisível sobre o estereótipo de sua cor: na sala de aula, quando a professora primária incentivava a escolha da cor de pele para pintar seres humanos - então, percebeu uma distinção com relação a cor de pele e opiniões sociais e culturais; no Brasil, ao levar um sobrinho para escola, ficou vista como a babá; ao ajudar amigos na cozinha numa festa, foi chamada de empregada; ao andar junto de amigos europeus numa praia, foi considerada prostituta; ao visitar amigos de classe média, não pôde usar o elevador social. Daí percebeu, devido a cor da sua pele, que alguns lugares não eram para ela:

Temos que vigiar quando tratamos outros seres humanos como menos humanos, quanto a gênero, opção sexual, capacidades, nacionalidades (Dass, site da artista).

Então, seu caráter ativador despertou para esse Projeto que tem seu início com dois autorretratos, fotos tamanho 11 pixels. Ao enquadrar apenas seu rosto (Figura 1) conforme a artista, é devido ao fato que nossa expressão facial muda de cor conforme a luz - mas também quando temos gripe ou ficamos bêbados, quando mudam as estações ou até mesmo quando envelhecemos. Ou seja, o rosto é o reflexo que a nossa cor não é fixa e nem se reduz a uma só.

Depois das fotos autorais, amigos e famílias são retratados. A artista não faz nenhum tipo de pós-produção na imagem, apenas modifica o fundo branco e seleciona um quadrante a partir do nariz e pinta o fundo com essa cor. Depois, busca na paleta de cores industrial da Pantone e coloca o número de referência da cor abaixo da imagem.

Ato contínuo, a artista faz um pedido pelas redes sociais para que voluntários se prontifiquem a serem registrados para o projeto. A ideia da obra é de conceito aberto, um convite a todos que queiram participar sem distinção ou seleção - de modo que, as imagens disponíveis na internet, possam ser compartilhadas através de um mosaico global humano de cores de pele.

A ideia do Pantone, o código alfanumérico de cores, surgiu das referências de branco preto - nenhum fotografado até o momento possui essa numeração. Além do mais a escala Pantone é horizontal sem hierarquia ou poder. E esse trabalho pretende mostrar os milhões de tipos de diferentes cores de pele. Afirma a artista:

Humanae é um trabalho em andamento, que pretende implantar uma gama cromática das diferentes cores da pele humana. Aqueles que posam são voluntários que conhecem o projeto e decidem participar. Não há seleção prévia de participantes

Fonte: site da artista

Figura 1 Angélica Dass. Autorretrato, 2012, para o Projeto Humanae. Fotografia 

Fonte: site da artista

Figura 2 Angélica Dass. Parte do mosaico global de retratos do Projeto Humanae 

e não há classificações relacionadas à nacionalidade, sexo, idade, raça, classe social ou religião. Também não há uma intenção explícita de finalizá-lo em uma data específica. É aberto em todos os sentidos e incluirá todos aqueles que desejam fazer parte desse colossal mosaico global. O único limite seria alcançado completando toda a população do mundo (Dass, site da artista).

Dass já fotografou mais de 3.700 pessoas, de 18 diferentes paises - recém-nascidos, crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos - anônimos ou personalidades. O projeto tornou-se um Work In Progress, continuamente ativado, pois enquanto houver pessoas a fotografar, o mosaico vai se ampliando (figura 2).

Além da criação de um site, para registro e compartilhamento dos retratos, a obra reconheceu uma série de desdobramentos: se fez útil para diversas áreas de conhecimento. Como a própria ciência que refuta o conceito de raça determinante e específica, o que existe é o humano. Estudantes de arte usam como estudos para desenho de rostos; na antropologia é usado como estudo de etnias; na física, a optofisiologia; na neurociência como reconhecimento facial; na medicina para o mal de Alzheimer, por exemplo.

Constantemente, a artista recebe mensagens apontando para os seus diferentes usos. Mas o uso mais importante, segundo a artista, é quando professores utilizam o projeto para levar na sala de aula a reflexão sobre cor de pele. A própria artista vem realizando intervenções nas escolas com palestras e workshops. Nas oficinas, convida as crianças a pintarem seus próprios retratos (Figura 3), através de um espelho. A vivência acarreta um processo de conscientização identitária e de autorreconhecimento - através da realização de pinturas, colagens e máscaras e da exposição em painéis e varais coletivos.

O projeto Humanae já foi exibido em galerias, museus e em ruas e espaços públicos; já foi publicado em revistas especialidas; já alcançou mais de 2 milhões de visualizações na web (Figura 4).

3. Uma Análise Crítica

Humanae questiona rótulos e estereótipos ligados a cor. Afinal, seria injustiça reduzir a cor de pele a quatro instâncias: branco, negro, amarelo e vermelho. Claro que, essa redução está completamente ligada a um histórico das formas de poder e esquemas hierárquicos predominantes em nosso sistema.

No Brasil, a questão de raça precisa ser muito trabalhada com políticas públicas e educação de base para extinguir a discriminação que tanto reduz consciência coletiva. A arte não tem obrigação nenhuma de tocar nesses temas e de mudar cenários culturais. Porém, como expressão de um tempo, a arte modela nossas linguagens e nos estimula para discussões que podem nos levar a muitos níveis de evolução e novas formas de pensar.

Fonte: site da artista

Figura 3 Desdobramentos do Projeto em oficinas de arte para crianças 

Fonte: site da artista

Figura 4 Desdobramentos do Projeto em exposições de arte e arte pública 

A arte é aprova viva e concreta de que o homem é capaz de restabelecer, conscientemente e, portanto, no plano do significado, a união entre sentido, necessidade, impulso e ação que é característica do ser vivo. A intervenção da consciência acrescenta a regulação, a capacidade de seleção e a reordenação. Por isso, diversifica as artes de maneiras infindáveis. Mas sua intervenção também leva, com o tempo, à ideia da arte como ideia consciente - a maior realização intelectual na história da humanidade (Dewey, 2010: 93).

Em essência, entre o analógico e o digital, os retratos fotográficos referenciados na escala Pantone do projeto Humanae nos apresentam um surpreendente conceito de reprodução crítica e política de uma imagem. Walter Benjamin, no seu texto de 1936, A obrade arte na era da reprodução técnica, já percebia a potência da fotografia para a produção/reprodução de imagens implicadas com causas políticas e sociais tão pertinentes ao nosso tempo.

(...) a técnica pode levar a reprodução de situações, onde o próprio original jamais seria encontrado. Sob a forma de foto ou de disco permite sobretudo a maior aproximação da obra ao espectador e ao ouvinte. (...) Da chapa fotográfica pode-se tirar um grande número de provas, seria absurdo indagar que delas é a autêntica. Mas, desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda função de arte fica subvertida. Em lugar de ser basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma outra forma de práxis, a política (Benjamin, 1936:17).

Colocados lado a lado, os retratos em grande quantidade, nos permite mergulhar numa infinita possibilidade da diversidade, da diferença, que é inerente ao humano e ultrapassa as barreiras de cor, nacionalidade, idioma, cultura ou extrato social. Esses retratos nos fazem repensar a forma como vemos uns aos outros. Quando a ciência moderna questiona o conceito de raça, o que significa para nós ser negro, branco, amarelo ou vermelho? (Dass, site da artista).

Conclusão

O projeto Humanae, hoje, conta com o Instituto Humanae - com foco em práticas educacionais. O mosaico global de cores de pele estará em constante produção, que, conforme a artista, “planta” sementes na consciência das pessoas sobre a maneira que vemos as cores de pele das pessoas e os rótulos culturais a elas impregnados.

Como trata-se de uma obra aberta, o seu estudo - e crítica - torna-se também infinito uma vez que o projeto está embarcando em novas áreas de conhecimento e reflexão devido à urgência de discussão do tema. Assim, nosso olhar pretende acompanhar essa trajetória.

Referências

Agamben, Giorgio (2007) Profanações. Rio de janeiro: Boitempo. ISBN 9788575590935 [ Links ]

Benjamin, Walter (2010) A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Duarte, R. (Org.) O Belo autônomo. São Paulo: Autêntica. ISBN: 9788582170441Links ]

Dass, Angélica. (2020). Site da Artista. Disponível em https://www.angelicadass.com. Acesso em 05/01/2020 [ Links ]

Dewey, John (2010) Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes. ISBN 9788561635541 [ Links ]

Sacramento, Enock (2012) Para entender a arte contemporânea. Registro impresso do Workshop ministrado na Caixa Cultural em 2012 [ Links ]

Recebido: 05 de Janeiro de 2020; Aceito: 21 de Janeiro de 2020

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