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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.12 no.33 Lisboa mar. 2021  Epub 31-Mar-2021

 

Artigos originais

Eduardo Berliner: a pintura como processo para a (re)construção de um imaginário

Eduardo Berliner: painting as a process for the (re)construction of an imaginary

Cecília Andrade Corujo1 

1 Universidade de Lisboa; Faculdade de Belas-Artes; Centro de Investigação em Belas Artes. Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.


Resumo

Elegendo-se o trabalho pictórico de Eduardo Berliner como objeto de estudo, observa-se, neste texto, como o processo de trabalho deste artista protagoniza uma forma contemporânea de abordar a prática tradicional da pintura. Seguindo o ethos subjacente ao conceito de colagem e as possibilidades do fragmento, analisa-se, através das imagens e palavras do Pintor, o modo como este dá vida a um estranho imaginário agregador, que mistura planos “socialmente opostos” como o quotidiano e o imaginado, o insólito e o banal ou morte e infância.

Palavras chave: pintura; imaginário; processo criativo; colagem; metamorfose

Abstract

This text reflects on the work of Eduardo Berliner and analyses how his work process leads to a contemporary way of approaching the traditional practice of painting. Through the images and words of Berliner, this study, following the concept of collage and the possibilities inherent to the fragment, shows how the Artist gives life to a strange imaginary, which mixes "socially opposed" states such as: the everyday and the imagined, the unusual and the banal or death and childhood.

Keywords: painting; imaginary; creative process; collage; metamorphose

Introdução

Eduardo Berliner faz parte de uma nova geração de artistas plásticos brasileiros que, renunciando a uma noção coletiva de vanguarda e refletindo uma lógica pós-modernista, procuraram expressar, através de metodologias distintas, poéticas altamente individuais (Diegues; Coelho, 2011). Berliner, definindo-se primordialmente como artista bidimensional, elege a pintura e o desenho, sob suporte tradicional, para expressar um imaginário - o seu imaginário contemporâneo. Patenteando um desejo de existir através da materialidade e imprevisibilidade da produção manual, o trabalho do Artista explora, usando imagens do seu quotidiano, experiências que são, simultaneamente, estranhas e banais, insólitas e triviais. Edificando-se nesta disputa de valores e construindo um universo temático, aparentemente incompatível, o trabalho de Berliner debruça-se sobre este tipo de relações inusitadas que surgem sobre as pequenas coisas do dia-a-dia.

Misturando elementos fotográficos e imaginários num plano quase onírico, as telas do pintor parecem projetar uma realidade alternativa, uma realidade que é livremente alterada e distorcida também pelo próprio processo da pintura. De certa forma, é esta amplitude processual, a capacidade da obra, originalmente pensada, se deixar transformar através do desenho intuitivo e imaginação do seu autor que define a estética do seu trabalho. Como alude o artista o processo é “co-autor” do seu trabalho, já que cada obra é reinventada durante a sua produção, pelas sugestões imagéticas que vão resultando da própria ação gráfica e pictórica do pintor (Berliner apud Instituto Tomie Ohtake, 2015). É este processo de permeabilidade, de jogo de ação e reação perante a causalidade da própria pintura que nos interessa explorar no trabalho de Eduardo Berliner.

1. A descoberta da pintura e o reconhecimento de um olhar pessoal

Eduardo Berliner nasceu no Rio de Janeiro, em 1978, cidade onde vive e mantém o seu atelier. Se, hoje, o artista carioca é conhecido como pintor, Berliner deu início à sua formação visual, no final dos anos 90, ao ingressar no curso de Desenho Industrial/Comunicação Visual na PUC-Rio (Instituto de Formação Superior), seguindo, posteriormente, uma especialização em tipografia, no Reino Unido. Apesar dos seus estudos mais técnicos, o Pintor clarifica que a prática do desenho como forma de captar e dar sentido ao seu universo visual e imaginário nunca o deixou de acompanhar. Uma relação com a simplicidade, imediatez e portabilidade da prática diarística que continua a ser vital para a ativação do olhar atento do artista e para o desenvolvimento do seu projeto plástico (ex: Figura 1, Figura 2, Figura 3). Sublinhando esta relação, dependência positiva, Berliner afirma, de forma descomplicada, que “se não desenho, o meu olho vai ficando mole” (apudMedeiros, 2018, p.26) e “quando, por algum motivo, preciso passar alguns dias sem pintar ou desenhar, sinto como se eu andasse com esponjas sob os meus pés. Diminui minha sensação de atrito com meu entorno, como se eu não conseguisse tocar (e ver) de fato as coisas (…)” (Berliner; Leite Neto, 2009).

Figura 1 Acompanhante, Eduardo Berliner, 2020. Grafite s/ papel, 76 x 56 cm. Casa Triangulo, São Paulo. Fonte: https://www.artsy.net/artwork/eduardo-berliner-acompanhante-accompanying

Figura 2 Casa, Eduardo Berliner, 2020. Grafite s/ papel, 217 x 263 cm. Casa Triangulo, São Paulo. Fonte: https://www.artsy.net/artwork/eduardo-berliner-casa-house

Figura 3 Chifrinho, Eduardo Berliner, 2020. Grafite s/ papel, 217 x 263 cm. Casa Triangulo,.São Paulo Fonte: https://www.premiopipa.com/wp-content/uploads/2010/06/chifrinho.png  

Ao ser interrogado sobre a influência dos seus estudos no seu trabalho pictórico, o artista reflete sobre a forma como a diversidade de ferramentas utilizadas e o encorajamento de se explorar vários modos de fazer, várias maneiras de resolver um problema, beneficiaram a sua atitude perante o seu projeto plástico (Berliner; Leite Neto, 2009). Uma observação que permite desvendar, um pouco, a sua ética de trabalho, a sua abertura e liberdade experimental face à projeção das suas telas, a diversidade de referências e multiplicidade de construções imagéticas, cénicas e escultóricas que faz para lhes dar forma. Uma transversalidade de meios que, à primeira vista, pode surpreender mas que é um dos elementos essenciais para a conquista dos resultados que o espectador

conhece, as grandes telas, com figuras e cenas estranhas e inquietantes, pintadas a óleo, que se tornaram sinónimo do nome do Pintor brasileiro.

Mas quando Eduardo Berliner chegou à pintura ou por que razão acabou por focar a sua atenção nesta prática milenar? Como indica Berliner, em várias entrevistas, a sua curiosidade por este meio de expressão surgiu e cresceu a partir do momento em que começou a participar num grupo de discussão e partilha de trabalho plástico, liderado pelo Professor Charles Watson (Vicalvi, 2012). Uma orientação pessoal que marcou e estimulou o artista carioca de forma definitiva e que o direcionou para uma investigação artística, sem receios, de questões e temáticas mais pessoais. Tendo começado por desenhar e produzir objetos e esculturas, é através de um exercício, proposto por Lúcia Laguna, que Berliner toma contacto com a experiência da pintura a óleo, que o cativa pela imprevisibilidade ou maleabilidade do processo e pelo envolvimento e entrega necessários à aprendizagem desta técnica e expressão. Uma experiência que o agarrou pelo próprio facto, parafraseando o autor, “de entrar num processo sem estar preparado, sem saber, sem perceber o que se está fazendo, qual o destino final” (Instituto Tomie Ohtake, 2015). Uma atitude aventurosa e descomplexada, que se esquiva ao peso da tradição, do que é considerado “boa” ou “má pintura”, que continua a estar presente em toda a obra do Pintor carioca, que continua a diversificar e desenvolver-se formal e tematicamente.

2. Estado de alerta, à procura de um encontro

Após esta breve reflexão sobre o percurso inicial e motivações que levaram Eduardo Berliner a criar uma obra pictórica, importa aproximarmo-nos desta prática e explorar de que forma é que esta é desenvolvida. De que forma é que Berliner engendra o imaginário inusitado, misterioso e singular patente nas suas telas, quais os dispositivos, técnicos e referenciais, por si utilizados e o que é que estes revelam sobre os seus trabalhos finais.

Enfaticamente, mesmo que cada obra exija uma abordagem distinta, não replicável, é possível discernir, seguindo as palavras do artista, que o seu processo de construção imagética passa por duas fases, uma antes e outra durante a execução da pintura. A primeira fase, como uma tentativa de projetar uma imagem mental que despertou o interesse do artista, e a segunda, durante a execução dessa projeção, a alteração desse planeamento feita pelas sugestões formais do próprio comportamento da tinta sobre a superfície da tela.

Sobre este primeiro estágio, Eduardo Berliner sublinha:

Mesmo partindo de uma imagem mental, procuro algo no mundo que ajude a visualizá-la. Nessa tentativa de criar um modelo no mundo para algo que imaginei, manipulo objetos, faço desenhos, crio colagens e tiro fotos. Para mim, pintar começa muito antes de tocar a superfície da tela (Berliner; Leite Neto, 2009).

Existe, portanto, uma viagem exploratória de montagem através do exercício de busca, apropriação e colagem de elementos do foro escultórico, fotográfico, cénico e gráfico que alterados e recriados servem como ponto de referência para a prática pictórica. Este exercício de recolha, que exalta a necessidade de manter um olhar atento para com a realidade, é feito de forma instintiva pelo Autor no seu quotidiano não-extraordinário (no trajeto de sua casa ao estúdio, em reuniões familiares, etc).

Procurando exemplificar a natureza trivial destes registos observa-se a obra “Enterro” (2009) (Figura 5) que surgiu após a passagem do artista por um monte de areia, num local em obras, uma saliência que despertou a curiosidade de Berliner e que o fez parar. Ao decidir capturar uma fotografia do que via, o autor deparou-se com um pequeno rapaz que tentava escalar o monte de areia e que foi, rapidamente, agarrado pela mãe. Este momento fugaz foi gravado pelo pintor carioca e motivou-o, ainda sem um pensamento concreto, a construir uma nova pintura. A partir deste fragmento o autor foi, posteriormente, fortalecendo a sua narrativa imaginária através da adição de outras personagens e elementos que podem ser vistos na tela como o imobilizador de pernas partidas de sua mãe e uma figura com cabeça de lobo, uma máscara que construiu em Xaxim. Como relata de forma perspicaz Alcino Leite, após repetidas visitas ao atelier de Eduardo Berliner, fazendo lembrar as composições cénicas do estúdio de Paula Rego (ex. Figura 4):

passei a suspeitar que pouca coisa que estava ali, por mais comum que fosse o objeto, atendia à demanda de um uso prático e habitual […] Ao contrário do que eu esperava, o ateliê não era apenas um ambiente adaptado para o ofício da pintura e centrado na construção da tela, mas servia como um espaço de arquivamento e manipulação de instrumentos variados e estranhos, uma oficina de produção de objetos e "cenários", um laboratório de metamorfoses das coisas. (Leite Neto, 2011).

Figura 4 Vista do Estúdio Eduardo Berliner, 2020. Rio de Janeiro. Fonte: https://casatriangulo.viewingrooms.com/viewing-room/14-eduardo-berliner/  

Figura 5 Enterro, Eduardo Berliner, 2009. Óleo s/ tela, 230 x 250 cm. Casa Triangulo, São Paulo. Fonte: https://www.wikiart.org/en/eduardo-berliner/burial-2009  

A nomeação “um laboratório de metamorfoses” é, deveras, sedutora e concomitante com o que há de mais distintivo, essencial e profundo na pintura do Pintor. A potência ou permanente possibilidade de se poder transformar o formato e sentido das coisas que nos rodeiam, através da recontextualização ocorridas na imaginação e na produção artística individual. O que se persegue neste artigo é a forma como o trabalho de Berliner parece recuperar a maleabilidade do pensamento infantil perante o que, de outra forma, seria banal. Como se fosse possível recuar a um des-aprendimento e olhar e significar as coisas pela primeira vez. Uma ingenuidade, ou alheamento a regras e moralidade, que está presente tanto na doçura como na violência que os quadros do autor exultam. Talvez esteja patente, aqui, alguma afinidade com cineastas que influenciam o Pintor como Bergman e Tarkovsky que trabalharam nos seus filmes esta característica misteriosa, elemento reorganizador do plano onírico que mistura realidade e ficção, quotidiano e imaginação.

3. Estado de abstração, a reclusão do olhar na tela

Continuando, se a primeira fase de uma obra exige um estado de alerta permanente por parte do seu Autor, uma atenção redobrada ao que o rodeia, procurando encontros com objetos e visões catalisadoras, a segunda fase define-se um pouco como o oposto. Quando Berliner decide avançar para a execução prática de uma imagem que até aí alimentou, este procura isolar-se, abstrair-se do mundo que abandona ao entrar no atelier. Agora só a superfície da tela interessa, o acontecimento da expressão pictórica, a reação da tinta aos gestos do pintor, as ínfimas e permanentes decisões (instintivas ou racionais) que cada pincelada carrega. Mesmo a imagem que Berliner projetou e que, de certa forma, procura traduzir, torna-se secundária e está sujeita ao que está a passar-se no momento, ao que está a acontecer na tela. Como é possível ouvir o autor explicar, ao olhar para a colagem-referência que deu origem à pintura:

em determinado momento do trabalho, o processo começa a trabalhar como uma espécie de co-autor, já não é mais só as minhas ideias e ensaios, eu vou fazendo associações e o processo vai contando uma história em paralelo, não uma história linear sobre algo específico, é uma pintura… (apud Ribeiro, 2010).

Mas esta transformação ou liberdade de seguir o inesperado, o não programado, como o Artista desvenda só é possível quando, após algumas horas de trabalho, as preocupações cessam de dialogar na sua cabeça e as ações começam a fluir de uma maneira diferente. E segundo Berliner é aqui que a pintura “acontece”, quando o que tinha previsto acaba e começa, de forma instintiva, a improvisar. Nas palavras do próprio “é aí que começa o festival de destruir o que já tinha feito” (Ribeiro, 2010).

Este espírito ousado, de grande imersão e concentração, é claramente visível nas suas grandes telas de dois metros onde é possível observar o tempo de execução, as camadas que se sobrepõem umas às outras, que tapam, rasuram, alteram ou adicionam informação. Se atentarmos na pintura “Banco de trás” (2009) (Figura 6), mesmo não tendo acesso à montagem original, é possível deduzir várias fases da pintura através das diferentes e muito diversas linguagens gráficas e pictóricas que habitam o espaço da obra (desde um desenho esquemático de cabeça a uma pintura mais demorada e pormenorizada). O que é surpreendente é a naturalidade como, no fim do processo, todos estes elementos, à partida díspares, parecem pertencer e trabalhar para uma mesma história. Observa-se, então, que o conceito de colagem e a permanente edição parecem prevalecer em todos os momentos da obra do Artista brasileiro, seja na ampla recolha de material, na projeção ou planeamento de uma imagem ou na própria tela, onde camadas aparentemente díspares são conjugadas. Mas esta polinização não parece provocar a criação serial de obras, cada pintura é desenvolvida, por Eduardo Berliner, de forma independente até existir uma harmonia, temática e estética, singular, que acaba por funcionar apenas naquela pintura específica: cada pintura parece conter um universo próprio, parece ser um fragmento subtraído de uma narrativa maior, uma narrativa que é deixada ao espectador depois imaginar.

Obviamente é importante contextualizar a obra e o método de Berliner que, como todos os pintores, é influenciado por uma grande tradição que o antecede e rodeia. É possível observar no seu trabalho afinidades com uma grande diversidade de artistas plásticos, artistas como Eric Fischl, Neo Rauch, Peter Doig, Paula Rego, Soutine ou Ensor, entre outros. Mas de forma positiva a prática pictórica aqui analisada, apesar de consciente do seu parentesco com alguns destes nomes, desde cedo, procurou adensar e investigar uma linguagem e imaginário extremamente pessoais.

Figura 6 Banco de trás, Eduardo Berliner. 2009. Óleo s/ tela, 200 x 200 cm.. Casa Triangulo, São Paulo. Fonte: http://www.canalcontemporaneo.art.br/saloesepremios/archives/002074.htm  

2. Universo onírico e a hibridização corporal

Aproximando-nos mais das narrativas singulares patenteadas pelo Pintor, é necessário sublinhar alguns dos eixos temáticos das suas pinturas. Deu-se primazia à elaboração processual do Artista e, tal como este, talvez esta reflexão se tenha esquivado um pouco a perscrutar o campo psicológico que imana do seu trabalho. Pensa-se que estes tipos de reflexões são características da leitura individual de cada espectador, mas penso ser importante descrever a atracão e motivação que levaram à realização deste texto.

A primeira impressão deu-se pela forma como este trabalho, que se abandona ao ritmo único, demorado e insular da própria Pintura, produz um imaginário simultaneamente misterioso e familiar, que não deixa de se associar à infância. Como algumas das pinturas de Berliner vão ao encontro e ativam um elemento comum mas tantas vezes esquecido pelo espectador adulto - a eterna liberdade de, como uma criança, se poder imaginar e brincar com os objetos e histórias do próprio quotidiano.

Uma liberdade que, análoga ao universo onírico não controlável do sonho, foge às regras moralistas e preconcebidas que restringem a imaginação/pensamento do ser humano que, inevitavelmente, se vai socializando e adaptando. Este é um processo natural que obviamente tem uma função estabilizadora, de ajustar o adulto ao seu meio ambiente, mas que produz, inevitavelmente, uma perda no pensamento criativo (Vanderbilt, 2021). Por isso, pensa-se que não se pode deixar de encarar a expressão artística, no geral, como uma necessidade, um dos únicos dispositivos que tem o poder de colmatar essa perda ou limitação indeclinável.

De maneira análoga, num segundo momento, é possível observar nas figuras engendradas pelo Autor uma característica fabular onde as personagens com corpo humano e corpo de animal convivem e misturam atributos físicos. Esta hibridização corporal que parece estar patente em quase toda a sua obra, seja por adição, troca ou perda de elementos corporais é uma das componentes que mais causam um sentimento de inquietude e estranhamento no espectador. No entanto, através da leitura do material crítico sobre esta característica do universo de Berliner, percebeu-se haver uma falta de certeza sobre se este aspeto fabular, tem como as próprias fábulas, um objetivo crítico ou mesmo moralizante…. Serão estas pinturas também, para além de retratos de uma interioridade opaca, uma reflexão sobre assuntos sociais ou políticos? Esta é uma questão que não é respondida pelo Pintor.

Salientando a duplicidade de valores que constroem o conceito de inquietante (ou Das Unheimliche), aquilo que distorce a normalidade ou que sai fora do expectável, sublinha-se a violência física e emocional que também participa na experiência destas pinturas. Se se atendar a pinturas como “Enterro” (Figura 5) ou “Tambor” (Figura 8): existe um desconforto inalienável provocado pela união do que, por um lado, se associa a crueldade mais aterradora (como a morte ou desmembramento) com o que, por outro, se associa ao que há de mais terno e inocente (como a figura de uma criança). Curiosamente se se recordar as peripécias das fábulas universalmente contadas estas duas instâncias parecem nunca deixar de estar presentes e interconectadas (a metamorfose do corpo como punição ou feitiço) (Figura 7).

Figura 7 Cão, Eduardo Berliner, 2019. Óleo s/ tela, 220 x 190 cm. Casa Trinagulo, São Paulo. Fonte: https://wsimag.com/art/55999-eduardo-berliner  

Notas conclusivas, uma hipótese

Transversalmente, a pintura de Eduardo Berliner parece exteriorizar repetidamente o eterno receio, parte do inconsciente humano, do corpo imobilizado, não-animado, tornado paralítico, preso por uma insuficiência - ausência de forças, agilidade, rapidez ou ar (ex. Figura 7).

Por fim, não se podendo obviamente resgatar ou racionalizar quais os motivos concretos que instigam e empurram o Pintor para esta problemática específica, pensa-se que as suas imagens vivem, acima de tudo, de uma afronta ao mundo moderno, de uma permanente tensão entre aquilo que existe de interior e frágil no individuo e o que vem para corromper, automatizar e perfurar essa interioridade.

Sem uma resposta certa, pergunta-se: é este conjunto de trabalhos também uma expressão ou analogia da posição do Pintor na contemporaneidade, o patentear da exposição emocional e vulnerabilidade inerente ao sujeito que procura, com toda a sinceridade e foco, dedicar-se à prática da Pintura? Romando contra a corrente, calando as demandas do nosso mundo moderno, são estas imagens a exposição daquele que se dedica à construção de um imaginário (castelo de cartas, sem o atalho “ctrl + z”), através da prática manual, imprevisível, isolada e introspetiva da pintura? Como lembra Eduardo Berliner: “É difícil mentir pintando.” (apud Fradkin, 2019).

Referências

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Vicalvi, Cacá (2012, Novembro). Curta Artes: Eduardo Berliner [Aquivo de vídeo}. [consulta 26/02/2021] disponível em https://www.youtube.com/watch?v=y_tydV-S0Jw&t=22sLinks ]

Recebido: 15 de Fevereiro de 2020; Aceito: 01 de Janeiro de 2021

1 Cecilia Corujo é estudante de doutoramento na Faculdade de Belas Artes da Universidade de lisboa, onde também é professora. E-mail: ceciliacorujo4@gmail.com

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