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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.12 no.33 Lisboa mar. 2021  Epub 31-Mar-2021

 

Artigos originais

Paisagem traumatizada: a inscrição de eventos humanos traumáticos no território, na obra de Bleda y Rosa

Traumatized landscape: the inscription of traumatic human events in the territory, in the work of Bleda y Rosa

Domingos Loureiro1 

1 Faculdade de Belas Artes Universidade do Porto (FBAUP).i2ads, Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Avenida Rodrigues de Freitas, 265, 4049-021 Porto, Portugal.


Resumo

O artigo pretende avaliar a manifestação cultural na definição da terminologia paisagem, procurando compreender como aspetos de natureza externa e interna ao interlocutor promovem uma definição de paisagem-corpo. Pretende-se, ainda, através da análise de alguns artistas recentes perceber como o trauma se poderá manifestar como marca da natureza cultural associada à paisagem. Neste sentido, autores como Anselm Kiefer, Cai Guo-Qiang, Michael Heizer, Luc Tuymans, Augusto Alves da Silva, servem de compreensão dos fenómenos de influência cultural na definição da paisagem, analisando-se, por fim, duas séries de obras dos autores Bleda y Rosa, na caracterização de uma noção de paisagem traumatizada.

Palavras chave: Paisagem-corpo; Trauma; Paisagem cultural; Arte e realidade; Bleda y Rosa

Abstract

The article aims to evaluate the cultural manifestation in the definition of landscape terminology, seeking to understand how aspects of an external and internal nature to the interlocutor promote a definition of the landscape-body. It is also intended, through the analysis of some recent artists, to understand how trauma can manifest itself as a mark of the cultural character associated with the landscape. In this sense, authors such as Anselm Kiefer, Cai Guo-Qiang, Michael Heizer, Luc Tuymans, Augusto Alves da Silva, serve as an understanding of the phenomena of cultural influence in the definition of landscape, then finally the analysis of two series of works by the authors Bleda y Rosa, towards the characterization of the notion of "traumatized landscape."

Keywords: Landscape-body; Trauma; Cultural landscape; Art and reality; Bleda & Rosa

Hidden Histories and Landscape Enigmas

Nota introdutória: Dada a natureza do tema, toma-se a liberdade de apresentar este depoimento que pretende, não só, enquadrar o assunto, como evidenciar o modo como ele se manifestou a nível pessoal e levou a esta pesquisa. No início de 2001, durante uma estância, ao abrigo do Programa Erasmus, na cidade de Karlsruhe, na Alemanha, perante questão sobre as características dos edifícios, uns mais recentes do que outros, o meu guia respondeu de forma categórica apontando para os diversos edifícios da zona: - ‘Bomb, Bomb, No Bomb, Bomb, No Bomb, No Bomb, Bomb…’ O pragmatismo da estranha resposta foi desarmante, produzindo por um lado, a tomada de consciência da destruição provocada pela guerra e, por outro, a aparentemente normalidade como o meu colega respondera à minha questão. Meses depois, dois dos quatro aviões sequestrados chocam com o World Trade Center, assistindo em direto na televisão ao segundo embate e à consecutiva derrocada das torres do complexo World Trade Center, bem como à transformação da noções de território, que ali se iniciaram.

O território é um repositório de estratos que se vão sucedendo e camuflando as camadas anteriores, num processo contínuo e interminável. O espaço e o tempo atuam, de forma visível ou transcendental, como refere Kant, num continuum que altera a aparência do território e, consecutivamente, das definições de paisagem. O espaço físico é um atlas de eventos sucessivos e a sua inscrição no território resulta sobretudo da magnitude e características das ocorrências, sobretudo quando impõem alterações significativas: ambientais, físicas e químicas, podendo ser naturais ou humanas. Por sua vez, a inscrição de ocorrências de menor expressão, vai-se dissipando perante eventos de maior escala perdendo-se na memória das diferentes camadas, ou talvez não. Eventos como tumultos sociais ou bélicos, ocorridos em períodos, por vezes muito distantes e em que as marcas já se dissiparam, poderiam não ficar inscritos na caracterização do território. Contudo, estes espaços físicos, ficam quase sempre envoltos num processo de influência cultural que dificilmente se dissipará, o trauma. Apesar do espaço físico poder não evidenciar a presença daquele evento, a memória cultural parece induzir no espaço uma condição concreta de impossibilidade de esquecimento, produzida pela preservação de uma memória traumática associada ao território. Lugares como Auschwitz, Sarajevo, Guernica, Ruanda, Nova Iorque, Waterloo, Aljubarrota, entre tantos outros, parecem inscrever em si uma cicatriz de tal forma evidente que produz uma rotura na sucessão cumulativa de camadas de história, produzindo um rasgo, de tal forma profundo, que se equipara a eventos catastróficos capazes de alterar significativamente o espaço físico.

Recupera-se, como título para a introdução deste artigo, o texto da investigadora em fotografia britânica Liz Wells, publicado em 2019, no jornal Photographies, da Routledge, referindo-se ao trabalho de alguns fotógrafos que tratam a paisagem sob a influência de uma dimensão cultural, especificamente relacionada com eventos traumáticos associados à guerra. O artigo centra-se no modo como o espaço poderá revelar, de forma indireta, eventos traumáticos ocorridos naquele espaço num período distinto do que a imagem apresenta. Autores como Chloe Deve Clearing, David Farrell, Anthony Haughe, Bart Michiels, Bleda y Rosa, entre outros, são analisados como exemplo de ‘estratégias fotográficas destinadas a desenterrar e, mais particularmente, transmitir histórias ocultas relacionadas a batalhas ou episódios de execução’. [5](p.178) A autora avalia como o relato de determinados eventos ocorre de forma indireta a partir do registo do espaço natural, mas simultaneamente, como esses eventos atuam sobre a caracterização do espaço. Assumem-se então estratégias de natureza diversa como a arqueologia, o historiografia, a sociologia, a psicologia, para enumerar apenas uma pequena lista de processos metodológicos. Trata-se ainda de procurar perceber como se poderá proceder ao relato de eventos trágicos e violentos, associados à atrocidade humana, sem a dimensão explícita que seria mostrar os próprios eventos.

Se a dimensão histórica se refere, normalmente, ao que já ocorreu, poderíamos pensar que, em certas situações, poderá ser premonitória do que poderá vir a ocorrer. É exemplo desta ideia a série de fotografias de paisagem da ilha Terceira, nos Açores, realizadas por Augusto Alves da Silva no dia 16 de março de 2003, por ocasião da Cimeira das Lajes, que reuniu George Bush, Tony Blair, José Maria Aznar e Durão Barroso e determinou a Invasão do Iraque [4]. Esta série apresenta imagens da paisagem idílica dos Açores cortadas por pequenos vultos dos aviões oficiais dos diferentes chefes-de-estado presentes na Cimeira. Liz Wells não se refere nem ao autor nem a esta condição premonitória, mas promove relação com o ato do fazer de uma pintura, como um processo à posteriori como influência da obra de Bleda y Rosa [5](p.178), sendo que, no caso da pintura, o relato pode situar-se num antes e o evento traumático, de acordo com os interesses do artista que se manifesta posteriormente.

Refira-se a obra de Goya ‘Três de Maio de 1808’, de 1814, onde assistimos ao relato dos últimos segundos antes dos disparos dos militares napoleónicos serem escutados, fuzilando um grupo de resistentes espanhóis, na montanha do Príncipe Pio, em Madrid. Apesar de se verem corpos ensanguentados no solo, e de se perceber o que irá ocorrer ao grupo desarmado que está na linha de fogo, o fumo dos disparos ainda não é visível. Por sua vez, Manet, em 1868, em ‘A Execução de Maximiliano’, coloca os militares, também franceses, a disparar sobre republicanos, na cidade do México, embora sem corpos caídos ou ensanguentados. Se na obra de Goya está presente a marca da violência, na obra de Manet, uma aparente indiferença atravessa as expressões dos militares e do povo que assiste por cima do muro onde ocorre o massacre. As duas obras foram executadas à posteriori dos eventos, e construídas a partir de relato, não por observação. Estes processos, bem como os temas, serão retomados por Bleda y Rosa, como veremos.

Todavia, numa fotografia, sobretudo em eventos contemporâneos, seria possível realizar uma imagem que captasse o evento durante e de forma objetiva, como sucede nos registos dos repórteres fotográficos, sobretudo os que atuam em contexto de guerra, de que poderia ser exemplo o espanhol Perez-Reverte [9]. Mas nem sempre, a violência e atrocidade são captadas pelo registo das vitimas, das marcas e do sangue, mas indiretamente, pelo espaço, pelas cicatrizes, ou mesmo pela inexistência de marcas. Repare-se que um postal turístico de Nova Iorque, no pós-2001, manifesta a presença, pela ausência dos edifícios, dos eventos ocorridos no dia 11 de setembro de 2001. Simultaneamente, um postal turístico anterior ou numa das imagens de Guo-Qiang que apresenta ainda as Torres Gémeas do World Trade Center no horizonte de Manhattan, parece ignorar o que hoje sabemos que irá ocorrer, produzindo um sentimento duplo de premonição e nostalgia. (Figura 1.)

Figura 1 Cai Guo-Qiang, The Century with Mushroom Clouds: Project for the 20th Century, (1996) Coleção M+, Hong Kong. Gift of Ms Chen Ai-Gan, 2016 (https://collections.mplus.org.hk/en/objects/the-century-with-mushroom-clouds-project-for-the-20th-century-photo-documentation-2016689

As histórias escondidas manifestam-se pelo conhecimento cultural que está associado ao território, podendo interferir no modo como se projeta esse espaço na sua representação. Paralelamente, o desconhecimento da dimensão cultural pode não significar insensibilidade à presença de algo invisível ou transcendental que se sobrepõe àquele território. Veja-se o exemplo da obra de Luc Tuymans, ‘Still Life’, de 2002, que, sem representar os eventos ocorridos meses antes em Nova Iorque, remete histórica e culturalmente para essa ocorrência, evidenciando simultaneamente um relato do evento, pela magnitude da obra, e paradoxalmente, uma sensação de estranha indiferença que se assemelha ao sentimento que atravessa a obra de Manet, já referenciada.

Obviamente que as marcas da história estão presentes um pouco por toda a paisagem, em lugares como a Alemanha, Bósnia-Herzegovina, Inglaterra, Hungria, Espanha, Bélgica, Portugal, Croácia, Polónia, Sérvia, Montenegro, Grécia, Turquia, apenas para enumerar a Europa, entre tantos outros, mas, simultaneamente a presença quotidiana das marcas da tragédia parecem estar num território complexo entre o visível e o invisível, entre o quotidiano e o traumático, entre o normal e a anomalia. Nesse sentido, avalia-se o modo como o fenómeno cultural, sobretudo associado a eventos de natureza traumática, podem ser referidos de modo menos óbvio visualmente, em projetos e práticas artísticos, ao longo das últimas décadas. Destaca-se as séries de Cai Guo-Qiang, ‘Century with mushroom clouds: Project for the 20th Century’ (1996), Anselm Kiefer, ‘Occupations’ (1969), que servem como introdução à obra de Bleda y Rosa, nomeadamente as séries Campos de Batalla’ (1994-2016) e ‘Notas en torno de la Guerra y la Revolución’ (2011-2013). Pretende-se com estes autores avaliar o modo como a história e cultura influenciam a noção de paisagem, bem como quais as estratégias que utilizam para tratar a atrocidade humana e o trauma, sem a referência visual direta aos relatos. Avalia-se ainda a designação da paisagem, terminologia inicialmente cunhada pelos artistas, procurando perceber como estes eventos culturais podem determinar maior abrangência fenomenológica e intelectual da evolução da terminologia.

Paisagem-corpo

O título deste capítulo recorda a série ‘O ecrã no peito’ [10] realizada por João Queiroz, e que apresenta 60 desenhos de experiências de paisagens, em que as imagens não são apenas captadas pelo olhar, mas pelo corpo na sua totalidade, remetendo para as noções de paisagem e universo da filosofia orientais. Queiroz pretende assumir uma proximidade vivencial que ultrapassa o visual e, simultaneamente, tratar o dispositivo, o corpo, e não, exclusivamente, o assunto observado. O dispositivo envolve mais do que a lente ocular. O corpo é o dispositivo mediador, entre emissor e receptor, sendo o emissor a experiência com o espaço e o receptor, a produção artística. A condição invocada por autores como Queiroz, Alberto Carneiro, Richard Long, Pedro Vaz, Fernando Maselli, Marina Abramović, entre outros, propõe uma ação combinatória entre ver, sentir e pensar, que se coaduna com a ideia de corpo como dispositivo. O dispositivo é ferramenta e matéria em simultâneo que atua como agente receptor e emissor, como mensagem e mensageiro, como ação e produção. A este propósito, observe-se que a definição de ‘paisagem’, aquela que a Pintura cunhou por volta do século XVI, pressupõe não o espaço observado, mas o espaço selecionado por um determinado observador em determinado momento. A paisagem é, por isso, representação. A paisagem é produção resultante da atuação de um interlocutor, que é simultaneamente aquele que identifica e determina. Por isso, a paisagem é corpo, mais do que ser território. A paisagem-corpo é a combinação que se refere ao corpo como dispositivo que produz reflexão sobre o território e é, em certa medida, uma terminologia que pretende recuperar a noção primordial do que a paisagem designava para os artistas. A Paisagem-corpo é assumidamente fenomenologia, onde atuam processos sensoriais e intelectuais, numa condição de troca entre o território e o seu interlocutor. A condição de uma paisagem influenciada por um evento cultural remete para uma posição de observador e interlocutores condicionados pelo conhecimento das dimensões culturais associadas ao território e à sua história. O trauma poderia estar no território, como Chernobyl ou Fukushima, mas é nos seus interlocutores que é confirmada a condição de paisagem traumatizada, pelas implicações culturais a ele associadas.

Memória cultural do território

Recordando as ‘negative sculptures’ de Michael Heizer, obras de referência de um dos preconizadores do movimento Land Art, realizadas no deserto do Nevada, local onde ainda continua a construção da obra ‘City’ (desde 1972), teremos de ter em consideração as funções anteriores do espaço. As obras de Heizer, associadas a conceitos como Natureza, Ecologia, Primitivismo, poderiam ser analisadas como um processo de conexão humana com o território, mas quando se conhece a história do local, amplificam-se as possíveis interligações para contextos práticos e conceptuais muito divergentes. Algumas das obras de Heizer foram implantadas em territórios desabitados onde ocorreram testes de armas nucleares, posteriormente utilizadas em Hiroshima, Nagasaki, ou sob o seu efeito, ao longo do decurso da Guerra-Fria. Neste sentido, e procurando evocar este aspeto nem sempre considerado, quando referida a obra de Heizer, Cai Guo-Qiang, viaja até ao local onde as obras se encontram e realiza uma das suas performances/fotografias da série ‘Century with Mushroom Clouds: Project for the 20th Century’, uma sequência de imagens em que Guo-Qiang aparece a lançar um foguete perante uma paisagem. Esta série, inicialmente prevista para ser realizada nos países com armamento nuclear, acabou por se concentrar unicamente nos EUA, por se considerar esta a Era dos Estados Unidos da América [6]. Uma das imagens é realizada junto à obra ‘Double Negative’ de Michael Heizer, duas enormes escavações que revolveram uma massa de solo com a dimensão do Empire State Building, remetendo para a magnitude da produção humana e simultaneamente para a sua iminência de fatalidade.

Recorda-se ainda a série de Anselm Kiefer ‘Occupations’, de 1969, quando o artista alemão realiza uma série de performances/fotografias reproduzindo o gesto que caracterizou o nazismo, perante territórios que haviam sido ocupados pelas forças do terceiro Reich.

Heizer, Guo-Qiang, Kiefer, procuram um diálogo com o território através da evocação da memória cultural do espaço, sendo que, tanto no caso de Guo-Qiang como de Kiefer, o espaço não reflete, à partida, a presença visual de qualquer elemento que possa ser identificado como traumático ou relacionado com o trauma. Se em Heizer, o espaço físico é transformado pela ação do artista, em Guo-Qiang e Kiefer, é a consciência da história do lugar que promove a transformação do território por ação da memória. Kiefer refere que a série ‘Occupations’ pretende promover o exorcizar da memória coletiva do nazismo, já que a sociedade alemã tentou recalcar a sua própria história, promovendo o apagamento durante décadas, no sistema educativo alemão, do período da Alemanha nazi.[11] (Figura 2)

Figura 2 Anselm Kiefer, Série Occupations. Fotografia da performance onde Anselm Kiefer realiza a saudação nazi perante paisagens anteriormente ocupadas pelos Nazis, 1969 

Paisagem traumatizada

Na condição descrita de paisagem-corpo, de lugar intermediado pelo interlocutor, a circunstância cultural torna-se mais evidente para a identificação da terminologia paisagem traumatizada. Dado o papel do interlocutor, enquanto condição do dispositivo de recepção, a paisagem-corpo assume-se como uma dimensão meta-cognitiva que envolve diferentes dados, diretos e indiretos, externos e internos. Entre os dados diretos podemos incluir aspetos formais e sensoriais produzidos pelo relacionamento com o território, como a observação, os aromas, ou a temperatura. Sobre os elementos indiretos, obviamente a memória, o estado de consciência e a cultura são dos mais evidentes, sendo que se tratam de aspetos que podem ser de natureza interna, construídos pelo interlocutor, ou externa, com origem em dados culturais, sociais, políticos, ou outros. Neste campo de elementos traumáticos, de natureza cultural, inscrevem-se eventos como guerras, batalhas, massacres, ou acidentes, ocorridos próximo ou distante no tempo. Assim, nem sempre será óbvia a presença destas marcas relacionadas com o trauma, mas podem manifestar-se de forma indireta, pela memória por exemplo, actuando de forma igualmente traumática.

Para a compreensão de alguns destes fenómenos, será importante o conhecimento dos eventos conectados com a dimensão de trauma, para dispor de um diálogo informado com o outro, espectador, interlocutor ou não. Repare-se que o gesto performático de Kiefer, ao saudar o território é mais ou menos impactante conforme o nível de informação que tanto o autor como o espectador possuirem, tal como o desconhecimento da dimensão traumática do advento nazi, poderá produzir uma dimensão desarticulada com o que o autor pretende. Ao mesmo tempo, a própria reação ao gesto que caracterizou o período nazi, poderá originar reações contrárias às que o artista se propunha, quer por afinidade ideológica com o nazismo, quer por repúdio a qualquer manifestação que retome o período nazi.

Nesse âmbito, a paisagem traumatizada consiste numa dimensão de informação, significação, comunicação, podendo, todavia, acionar resultados diferenciados, já que o espectador é também participante na afinidade ou repulsa do evento. Desta forma, a noção envolve ainda aspetos de incompreensão que se associam a estados de experiência sublime, tanto pelo prisma da dificuldade de entendimento dos eventos, quer pela magnitude do impacto emocional e transformador.

Figura 3 Bleda y Rosa, Alrededores de Waterloo, 18 de junio de 1815. Waterloo, 2011. Cortesia dos artistas. 

Campos de Batalla

No percurso artístico da dupla espanhola Bleda y Rosa, as dimensões de trauma associado à paisagem têm sido tratadas em diversos momentos. Todavia, destaca-se as séries ‘Campos de Batalla’ (1994-2016) e ‘Notas en torno de la Guerra y la Revolución’ (2011-2013), pelas implicações diretas com este assunto. As séries resultam de um processo de pesquisa histórica sobre diferentes eventos ocorridos em determinados lugares em diferentes territórios do planeta. Centram-se sobretudo em espaço onde se formaram as bases da história da Espanha e da Europa, havendo obviamente uma condição ultramarina neste espaço quase global.

Figura. 4 Bleda y Rosa, Notas en torno de la Guerra y la Revolución (2011-13). Cortesia dos artistas 

As fotografias de Bleda y Rosa são construídas sobre uma investigação de natureza arqueológica, histórica e arquivista, mas também geográfica e visual, já que pretende combinar tanto marcas dos eventos ocorridos no passado, como as ações humanas posteriores, numa combinação transtemporal de memória comunitária. Os autores procuram identificar espaços onde decorreram eventos que provocaram a morte de grande numero de pessoas, focando a atenção sobre o espaço na busca de marcas dessa presença. Num trabalho de arqueologia concreta, e depois de selecionados os eventos e os locais, Bleda y Rosa registam os territórios de forma sistemática, em imagens duplas, que se parecem complementar numa panorâmica vista por uma par de lentes, por dois olhos, dois tempos. Em ‘Campos de Batalla’, [2] espaços agrícolas, montanhas verdejantes ou enseadas desérticas aparecem determinadas pela horizontalidade da cena e pela divisão da panorâmica em dois. Uma legenda complementa a situação, emprestando um local, uma batalha e uma data. O paradoxo ocorre quando é confrontado o espaço presente, na sua passividade visual e formal, e o evento ocorrido dezenas, centenas ou milhares de anos atrás.

Em ‘Notas en torno de la Guerra y la Revolución’ [12], um conjunto de 5 arquivos compostos por 9 fotografias cada e um texto, procuram retratar espaços e locais ligados à ideia de revolução e de independência espanhola, ocorrida no período 1805 e 1814, em Espanha e nas regiões ultramarinas. São imagens de espaços naturais e arquitectónicos, marcados por uma composição orientada para o detalhe ou para o condicionamento espacial, num registo quase documental do exato local onde ocorreu um evento específico relacionado com os ideais de liberdade e independência. Um recanto de um edifício, uma esquina, um muro, uma escada, uma árvore, um rochedo no mar, uma praia, entre outros espaços identificados com uma legenda, um local onde ocorreu um evento: um desembarque, um fuzilamento, um ataque, uma invasão, o fim de um ideal. Todas as imagens são realizadas sob uma luz homogénea, quase sem sombras, em enquadramentos simples e composições estáticas e inexpressivas. A normalidade aparente dos espaços entra em conflito com a possibilidade histórica que ali é convocada.

Conclusão

Retomo, uma vez mais, o relato pessoal e recordo a experiência em Karlsruhe, onde se destacam os espaços culturais ZKM, Zentrum für Kunst und Medien Karlsruhe, a Städtische Galerie Karlsruhe e a Staatliche Hochschule für Gestaltung Karlsruhe. Os dois primeiros são espaços museológicos, o último é uma das duas escolas de Arte e Design da pequena cidade alemã e estão contíguos num mesmo edifício, num diálogo quase perfeito para a promoção da arte, permitindo aos estudantes e investigadores cruzarem livremente entre as instituições. Porém, este lugar idílico para a arte está instalado num enorme edifício onde durante décadas serviu o fabrico de munições comercializadas com as forças armadas da Prússia e da Alemanha [8], entre outros. Surge então a inquietude: - Que papel desempenha um museu de arte contemporânea, uma escola de arte, ou uma galeria museológica dedicada aos grandes mestres da Arte Moderna, quando ocupam os mesmos espaços onde, em tempos, trabalhadores escravos judeus e franceses [7], produziam as munições que eram utilizadas para fuzilar os seus compatriotas?, e, - Como pode um espectador dedicar-se naturalmente a contemplar os dilemas que a arte propõe, quando esta está exposta num lugar que, desde meados do século XIX e até aos nos 70 do século XX, albergou uma empresa que comercializava munições.

As questões que aqui apresento parecem inscrever-se na dimensão cultural e fenomenológica que os autores aqui apresentados procuram. Que papel assumir perante a consciência de uma história trágica a e violenta que se vai dissipando, ou encobrindo, com o passar do tempo e das camadas impostas pelas ações humanas? Bleda y Rosa evidenciam a preocupação pela condição cultural da paisagem, pela importância do envolvimento com as diferentes camadas sociais e humanas que se foram sucedendo no território, procurando, mais do que arqueólogos, atuar como psicanalista que remexe no profundo sombrio da memória comunitária. Bleda y Rosa cruzam, a partir de estratégias de mapeamento do lugar, promover uma dimensão visual e histórica do território, destacando a brutalidade de eventos capazes de serem entendidos como trauma em contexto cultural. Devolvendo-os com a aparência inofensiva de passividade e inexpressividade, as suas imagens absorvem o elemento histórico identificado, induzindo intensa experiência física e intelectual no espectador. O inofensivo converte-se em turbulento pela ação cultural do trauma.

Bleda y Rosa, com a aparente simplicidade e empatia do terapeuta vão remexendo na psique de um povo, de um território, de uma civilização, propondo, através de um aparente olhar passivo, enumerar e relatar o que de mais atroz o ser humano tem sido capaz de produzir.

Referências

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Recebido: 15 de Fevereiro de 2021; Aceito: 01 de Março de 2021

1 Domingos Loureiro é Professor Auxiliar no Departamento de Artes Plásticas da FBAUP. E-mail: dloureiro@fba.up.pt

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