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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.12 no.33 Lisboa mar. 2021  Epub 31-Mar-2021

 

Artigos originais

Perceção Visual em Realidade Virtual nas obras de Vier Nev

Visual Perception in Virtual Reality in the works of Vier Nev

1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Departamento de Arte e Multimédia, Endereço postal com ZIP ou CEP ou Código Postal, Lisboa, Portugal


Resumo

Neste artigo reflete-se sobre a perceção visual na narrativa animada em Realidade Virtual através da observação das experiências “A Mãe de Sangue”, “Dar Cria” e “Lucido” do Artista multidisciplinar Vier Nev. Vier Nev constrói uma narrativa animada em Realidade Virtual e brinca graficamente com a perceção visual. Este artigo analisa como esse trabalho é feito e de como o uso de uma falsa janela dentro da Realidade Virtual pode trazer uma maior imersão e sensação de presença para o observador.

Palavras-chave: Realidade Virtual; Janela-ecrã; Agência; Paradoxo Narrativo; Perceção Visual

Abstract

This article reflects on the visual perception in the animated narrative in Virtual Reality through the observation of the experiences “A Mãe de Sangue”, “Dar Cria” and “Lucido” by the multidisciplinary artist Vier Nev. Vier Nev builds an animated narrative in Virtual Reality and plays graphically with visual perception. This article analyzes how this work is done and how the use of a false window within Virtual Reality can bring greater immersion and a sense of presence to the observer.

Keywords: Virtual Reality; Window-Screen; Agency; Narrative Paradox; Visual Perception

1. Introdução

A humanidade tem vindo a desenvolver a imagem, de modo a criar sensações e sentimentos ao observador. Desde a pintura até aos dispositivos de Realidade Virtual (RV), sempre com o intuito de criar uma maior imersividade no observador.

Antigamente, as pessoas viviam num mundo em que as imagens não se mexiam e, por isso, ver uma imagem em movimento era algo impensável. Da mesma forma, que o hábito às narrativas enquadradas num espaço-ecrã delineado deixa um certo espanto quando a Realidade Virtual remove essa moldura de uma maneira que até só era possível fazer-se através da imaginação. Da mesma forma, a habituação a narrativas lineares, com apenas uma direção, dificulta a criação de capacidades para explorar outros tipos de narrativas. Contudo, quando há a possibilidade de termos várias narrativas a acontecerem ao mesmo tempo e quando o mundo real e o digital podem interagir entre eles, "um novo paradigma precisa surgir para se ajustarem às novas capacidades” (Riggs, 2019:34). A grande dificuldade em contar histórias em experiências de RV vem do facto de existir um grande conflito entre o ato de contar e o de experienciar, porque o computador não foi criado para se contarem histórias, mas antes para se criarem interações sensoriais entre máquinas e pessoas, ao contrário dos meios clássicos (livros, teatro, etc.).

Vier Nev no seu trabalho trabalha as narrativas bifurcas e paralelas criando uma sensação de imersão ao guiar o olhar do espetador usando uma janela digital num ambiente virtual que não a tem.

"A Mãe de Sangue" ou o seu título homófono em inglês "A Mind Sang" é uma curta de animação que precede a experiência de Realidade Virtual - “Dar Cria” - ambras sobre perceção, renascimento e transformação. Segundo o autor afirma que há sempre duas maneiras de interpretar uma imagem e esta curta de animação é o culminar da sua investigação sobre narrativas simultâneas. As formas em constante mutação onde desvendam perceções diferentes do seu conteúdo consoante a perspetiva com que são mostradas cria um ambiente intenso, profundo e intrigante.

O Artista Vier Nev já ganhou vários prémios e reconhecimentos com este trabalho tendo sido o vencedor do Vimeo Staff Pick Award no festival de animação de Annecy o ano passado.

Neste artigo irá ser analisado várias narrativas animadas bifurcadas, paralelas e com duplo sentido e como a animação em Realidade Virtual se distingue da animação convencional.

2. “A Mother Sang / A Mãe de Sangue”

“A Mãe de Sangue” é uma curta-metragem de animação mista (2D e 3D) que se tenta aproximar o máximo possível do aspeto gráfico 2D, através das suas formas com um preenchimento lisas.

Esta narrativa animada tem continuamente presente umas das Teorias de Gestault "Figura/Fundo" e apesar de ser feita em 3D tenta aproximar-se o máximo possível da bidimensionalidade. Esta curta está recheada de um simbolismo gráfico que pode despoletar emoções ao espetador. As formas em constante mutação onde desvendam perceções diferentes do seu conteúdo consoante a perspetiva com que são mostradas cria um ambiente intenso, profundo e intrigante.

Pode observar-se a história de uma cientista grávida, de um casal de rapazes e de um gato obcecado com borboletas que lidam com a sua transformação ao longo da narrativa. A dupla interpretação que coabita na própria imagem de cada uma destas personagens e momentos representam as memórias de cada um. Estas formas e sombras são trabalhadas para que se possa desvendar oportunamente uma segunda imagem que só se consegue percecionar quando a câmara ou a própria imagem roda no ecrã.

Vier, nesta curta, brinca com a perceção visual apoiando-se no fenómeno psicológico - pareidolia - que é um tipo de apofenia, ou seja, uma perceção visual em que há uma ilusão de ótica e o ser humano é levado a crer que vê algo mais para além daquilo que é. Um bom exemplo é quando olhamos paras as nuvens e reconhecemos formas. É daí que vem este desejo de tentar criar histórias onde consiga misturar várias personagens nas mesmas sombras e formas.

“Mãe de Sangue” usa uma paleta limitada de cores - preto, branco, duas tonalidades de roxo e vermelho.

No início é-nos apresentada uma cientista que escreve e mergulha na sua investigação através dos seus tubos de ensaio, contudo, esta imagem, depressa se revela ser um homem deitado numa cama. Esta transição é feita através de um movimento de câmara a três dimensões e é a primeira vez que passamos do 2D para o 3D. Logo de seguida, é-nos apresentado um gato que olha incessantemente para borboletas esvoaçantes e a imagem geral dá-nos a sensação de que há algo mais de cabeça para baixo. Uma nova cara aparece e aqui há uma nova imagem com duplo sentido, bem clara, uma cara que também é uma mulher grávida. Uma pessoa aproxima-se para ir tomar banho e um pouco da forma da banheira não passa da ponta de um lápis. Seguem-se uma data de transformações da imagem ora para um corpo inteiro da figura humana ora apenas para uma cara e quando atingimos um terço do filme a velocidade de transformações aumenta.

O autor procura sempre mostrar metaforicamente o desabrochar e transformação interior de cada uma das personagens usando a figura das borboletas e de um bebé para o representar. A meio da curta há uma nova mistura entre o 2D com o 3D onde se pode ver uma cara a preto e branco que através de uma rotação de câmara se desvenda um corpo de mulher em posição de parto. Apenas muito pontualmente o autor usa a cor vermelha que, segundo ele, serve para simbolizar sangue ou um nascimento. Neste primeiro caso dois homens têm uma vela acesa entre eles que se transmuta para o corpo de uma mulher que tem uma chama a arder na zona do coração e essa chama prolonga-se até aos seus cabelos, parecendo cabelos que esvoaçam ao vento. E num segundo momento quando um homem caí na água transformando-se num coração.

Apesar desta curta não ser em realidade virtual, Vier Nev inspirado pela experiência que tinha feito anteriormente - “Dar Cria” - dá continuidade à exploração das imagens com duplo sentido e o jogo entre figura vs. Fundo que tinha vindo a trabalhar até aqui (Figura 1).

Figura 1: Vier Nev, Mãe de Sangue, 2020. Fotoframas do filme. Fonte: https://vimeo.com/430690235  

2. Dar Cria

“Dar Cria” é uma obra que antecede a anterior, mas que é pertinente apenas falar-se dela em segundo lugar devido à sua complexidade narrativa. Esta obra tem uma grande dualidade narrativa e partilha o tema do nascimento e da perceção visual com a obra que foi referida anteriormente. Aqui, o autor, também, brinca com a perceção visual dos espetadores nesta experiência de Realidade Virtual onde cada imagem tem um duplo sentido. A diferença desta obra para a anterior é que nesta há necessariamente uma maior imersividade, pois o próprio media já o proporciona inevitavelmente. Contudo sofre uma abordagem de criação diferente. Em vez das imagens terem inerentemente um duplo sentido que é desvendado aquando da movimentação da câmara, a narrativa é contada de outra forma - através de uma janela-ecrã.

O uso de uma janela digital ou portal traz exatamente o oposto proporcionado por este media que é a ausência de uma janela, de um enquadramento, que até agora existia em qualquer ecrã de televisão, cinema, telemóvel tablet ou computador e a Realidade Virtual tira-nos essa moldura criando um universo sem limites que pode ser programável, podendo submergir-se o espetador numa espécie de sonho lucido. Contudo, esta experiência traz de volta o enquadramento perdido que é algo a autora Stephanie Riggs no seu livro “The End of Storytelling (2019:66) denota como umas das três grandes preocupações (sendo as outras a sensação de presença e a programação responsiva) guiando-se, assim, o olhar do observador com maior facilidade, durante a narrativa.

Vier Nev teve de programar e criar esta tecnologia que simulasse uma janela virtual dentro da experiência e que os observadores pudessem controlar com as mãos ou através do controlador do dispositivo de Realidade Virtual que estivessem a usar (HMD - Head-Mounted Display). Com o uso dessa janela os observadores podem espreitar por ela e ver uma nova realidade que sempre esteve presente naquele lugar, contudo esta só é visível quando observada através do uso desta janela. Desta forma Vier Nev não só estabelece uma maneira de guiar o olhar do espetador, como aumenta a sua sensação de imersividade fazendo o observador acreditar que tem um objeto na mão e que o pode usar para ver algo mais na realidade que está a experienciar. Estas janelas digitais ou portais para além de mostrarem outra realidade também pretendem mostrar um novo ponto de vista, uma nova realidade e interpretação da imagem que está presente. No entanto, o artista vai mais longe ao criar um segundo nível de imersividade ao proporcionar o sentido de Agência no observador (que é a possibilidade de interação e influência na narrativa através das suas escolhas) possibilitando escolher-se experienciar o momento que se está a ver ou o momento que se vê dentro da janela/portal. Primeiro podemos observar o momento como meros voyeurs e depois podemos optar por entrar para essa realidade. E consoante a escolha do observador entre ficar ou ir para a narrativa paralela a história vai-se bifurcando.

A narrativa tem várias bifurcações dependendo da opção que o observador decidir escolher seguir, contudo todas vão culminar no mesmo final.

“Dar Cria” traz muitas das imagens presentes em “Mãe de Sangue”, mas desta vez todas elas se encontram em 3D já que a Realidade Virtual é construída por um ambiente a três dimensões e de certa forma assim o exige (Figura 2).

Figura 2: Vier Nev, Dar Cria, 2019. Fotoframas da experiência em Realidade Virtual. Fonte: http://viernev.com/assets/images/6-vier-nev-dar-cria-art-virtual-reality-multistable-perception.gif  

3. Lucido

“Lucido” é a experiência mais recente do artista que ainda está a ser trabalhada, ao contrário das outras obras que tinham todo o trabalho de 3D feito em programas convencionais como o Maya (programa de 3D) e depois exportar para o Unity (plataforma de desenvolvimento de jogos), tentou criar todos os modelos que precisaria para a experiência no programa de modelação de Realidade Virtual - Medium - que tinha acesso a partir do uso do Oculus Quest que é um HMD (Head-Mounted Display) e só depois é que passaria para o Unity. O artista admite que, se os objetos 3D fossem mais complexo, não os poderia ter modelado diretamente em Realidade Virtual (no Medium)e teria de ter optado por uma rota mais tradicional. Para dar a sensação de imagem dupla à narrativa, o artista teve de criar 2 modelos diferentes para a mesma imagem e em vez de criar uma janela para o observador poder espreitar criou uma maneira de se poder através do movimento das mãos, como que “limpar o vidro de uma janela embaciada” para desvendar o segundo nível narrativo que está escondido na imagem (Figura 3).

Figura 3: Vier Nev, Lucido, 2020. Fotoframas da apresentação. Fonte: https://fb.watch/3XUfm6Et7J/  

4. O autor

O Artista multidisciplinar português - Vier Nev - tem um especial interesse pela perceção visual por parte dos espetadores das suas experiências em Realidade Virtual e Aumentada onde explora o potencial das novas tecnologias. Vier Nev é licenciado em Multimédia pela Escola Superior de Media Artes e Design e Mestre em Realidade Virtual pela London College of Communication da University of Arts em Londres. Vier Nev trabalha a perceção visual em vários formatos, sendo o mais tradicional a curta-metragem de animação “A Mãe de Sangue” onde trabalha imagens com duplo sentido brincando com a Figura Vs. Fundo, em Realidade Virtual pode-se experiências “Dar Cria” e “Lucido” onde continua esse jogo Figura vs. Forma, mas com uma perspetiva mais imersiva e em Realidade Aumentada “A Terra é Tela”.

Conclusão

Apesar de ser muito difícil criar uma narrativa animada em realidade virtual sem causar um Paradoxo Narrativo que é despoletado pelo desequilíbrio entre a Narrativa e a Agência (Isto significa que, na criação de uma narrativa, o seu criador quer ter o controlo total da história que o observador vai presenciar, contudo quere-se criar momentos de interatividade. No entanto, quanto mais interatividade e mudanças houver na história, menos dramatismo e complexidade emocional se irá ter, e quanto mais linear e controlada for a história, menos interações haverá. E por isso é necessário criar um equilíbrio entre a história que se quer contar e o nível de interatividade que se dará ao utilizador). Vier Nev trabalha o Paradoxo Narrativo através do número de níveis narrativos na experiência e dando a possibilidade ao observador de escolher o que pretende ver sem este perder a sensação de imersão e o Suspension of Disbelief.

Agradecimentos

Os autores agradecem ao Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA) o apoio para este trabalho de investigação.

Referências

Cinanima. (2020, nov. 11). Brincar com a Percepção [vídeo] Facebook. https://www.facebook.com/cinanima/videos/880613489143220Links ]

Ebert, G. (2020, jun. 22). A Transfixing Animation Utilizes the Optical Illusions of Pareidolia to Parallel Two Narratives About Birth. Colossal. https://www.thisiscolossal.com/2020/06/a-mind-sang-vier-nev/Links ]

[s.n.] (2019, 22 nov.). Caminho do Cinema Português (ed.XXV). https://kpxn2jn5beex.cdn.shift8web.com/wp-content/uploads/2019/11/Catalogo_XXV-web.pdfLinks ]

Riggs, S. (2019). The end of storytelling: The future of narrative in the storyplex. Beat Media Group. ISBN:978-1-7-329559-2-9 [ Links ]

Eco, Umberto (2007) Como se Faz uma Tese em Ciências Humanas. Lisboa: Presença. ISBN: 978-972-23-1351-3 [ Links ]

Recebido: 28 de Fevereiro de 2021; Aceito: 01 de Março de 2021

1 Diana David é uma artista digital e estudante de doutoramento na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Mestre em 3D Computer Animation pela Universidade de Bournemouth e Licencias em Arte e Multimédia pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. As suas principais linhas de investigação são as Narrativas Animadas em Realidade Virtual e Animação. Email: dianadavid@campus.ul.pt

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