1. Apresentação
Enquanto criador, comentei sobre a obra de Marcello Grassmann e assinalei a linha de seu desenho para investigar um sentido de ser criador sobre outras obras. Meus comentários estão dirigidos para três obras do artista: duas calcogravuras e um desenho (Figura 1, Figura 2,Figura 3).
Encontrar capacidades de juízo a partir de uma suspensão do julgamento das figuras, das relações espaciais entre elas, das manchas, da sua imaginação perturbadora foi meta permanente. Quando encontrei essa suspensão de juízo, apareceu um único elemento em comum nestas obras, isto é, a linha, desenhada e gravada, coexistiu na minha consciência a partir das obras. O problema de ser criador requer um encontro com aquilo que aparece como “verdade” desvelada mais pela obra do que pelo artista. Portanto, a poética da linha foi o único caminho encontrado para eu escrever este texto.
Busquei essa “verdade” na linha sob um ponto de vista fenomenológico. Para o XII Congresso Internacional, o “sobre” - uma preposição retirada do tema, “Criadores Sobre outras Obras” - ganhou sentido indicado por Martin Heidegger, quando responde a seu interlocutor: “No título de seu trabalho ‘Sobre a Linha’, ‘sobre’ significa algo assim como: para além de trans, meta. As observações que seguem entendem, pelo contrário, o ‘sobre’ apenas na acepção de: de, peri.” (1969:14) Adotei a mesma direção e me situei no mesmo pensamento de Heidegger, quando este escreve o texto “Sobre o problema do ser”, em 1955. Em seu processo de pensar interrogando, constantemente, ele atribui um sentido à palavra ‘sobre’, o qual adotarei neste texto. Sempre me situei em volta de Grassmann, tanto pelas obras quanto pela amizade com o qual travei nos últimos anos de sua vida. Isto não foi só um privilégio imprevisível, mas um aprendizado inesperado adquirido no final do meu doutorado, em 2010. Dessa maneira, permaneci em torno de sua obra, e “em torno”, como periferia, é o sentido de “sobre” neste artigo.
Evidentemente, em torno da linha há figuras, manchas, espaços, no entanto, esse haver linhas me mostra um campo sem limites, pois elas não criam divisões de espaços na folha de papel, elas configuram uma poética, um processo de criação artística singular e histórico ao mesmo tempo. Quando a linha aparece, na calcogravura, a água-forte não foi a melhor solução técnica encontrada. Ele encontrou um jeito próprio de gravar sua linha em lift ground.
2. Introdução
A proposta de comunicação que segue está dividida em três tempos: Da gravura; Dos acontecimentos gerais; Do mundo da minha casa. Foram pensados a partir da obra de Marcello Grassmann, cada qual particularizado por meu hábito visual diante de um desenho e de duas calcogravuras.
Considerei o tempo “Da gravura” menos como técnica no sentido usual do termo do que “desencobrimento” do mistério da linha. “Dos acontecimentos gerais”, sugiro um pensamento em torno de uma breve consideração biográfica do artista, passando logo para uma evocação sobre A origem da obra de arte, de Martin Heidegger. Apresento “Do mundo da minha casa” como prótese de um habitar poético a partir das referidas obras.
Olhei do meu modo para as imagens de que trata este artigo, mas falei a partir de Heidegger. Alguns pensamentos se ligaram entre si, a partir da prática de artista e/ou de “criador” que coexistem, criticamente, com a de professor de gravura.
O primeiro olhar que eu estimulo nos estudantes é para o encavo das linhas na matriz. Sugiro imaginarem um microscópio a mostrar o fundo das cavidades gravadas. A pequena abertura do encavo na superfície revela o fundo côncavo que molda a linha convexa quando impressa sobre o papel. Concreta e fisicamente, há uma relação microscópica entre o espaço vazio e a tinta que se depositou na cava para imprimir o côncavo da linha.
Eu estimulo os estudantes a pensar em torno de um mundo infinitamente pequeno, perceptivelmente visível apenas pelo microscópio imaginado. A relação entre estes dois estados, a saber, o visível e o invisível, o perceptível e o imaginado, evoca uma vizinhança entre o que se pode ver e escutar. Ver mexe com as palavras.
Quando olho para o desenho de Grassmann, como criador, a minha percepção é a da ausência de relevos, de texturas, mas não de espaço poético. Depois, olho para as gravuras de soslaio, de frente e observo as texturas como uma passagem através da qual me movimento do desenho às gravuras, ou vice-versa. Enxergo instâncias que medram mundos infinitamente pequenos entre cavidades da matriz e protuberâncias na cópia. Quando Grassmann revira o fundo do encavo e mostra, em relevo, a linha impressa, sinto que está potencializando o desenho na calcogravura.
O meu olhar, ignora as figuras, bem como suas relações de representação, permanece nessa movimentação como um escrutinador obsessivo para me comunicar menos pelo senso comum do que pela ambiguidade. Não uso, aqui, o termo ambiguidade com uma intenção expressa de dissimulação e de deturpação dos sentidos, porque não se trata somente da minha consciência dessas obras, mas delas próprias, em si mesmas. Não uso, também, o senso comum de um modo depreciativo, porque “O Falatório”, “A Curiosidade” e “A Ambiguidade” (§35, 36 e 37 de Ser e Tempo, de Martin Heidegger) criam os sentidos que ora aparecem para serem mostrados do modo que se segue, a saber, em três tempos.
3. Da Gravura
Enquanto criador, olho para a obra de Marcello Grassmann e reconheço um artista; olho para o seu desenho e vejo uma linha; olho para a gravura e enxergo algo vindo do interior de seu mundo de gravurista, a saber, a arte (Figura 4).
Assim, a “Curiosidade” me leva a decifrar um enigma, menos de suas figuras do que de sua linha. Em algumas gravuras, Grassmann mostra um tipo de linha gravada que me surpreende não pela técnica, no seu sentido tradicional de meio pelo qual se chega a um fim, mas por esta desvelar e fazer aparecer um mistério. Heidegger escreve:
A técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma forma de desencobrimento. Levando isso em conta, abre-se diante de nós todo um outro âmbito para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desencobrimento, isto é, da verdade (Heidegger, 2012:17).
O desencobrimento do incognoscível pode fazer o desconhecido aparecer como verdade explícita na técnica, mas esta é apenas coadjuvante. O mistério é incognoscível, mas aparece pela abertura do próximo instante, no porvir, sempre surpreendente, desvelando o “como” ele gravou determinada linha. Entretanto, o cerne enigmático ainda continua no “porquê”. Provavelmente, havia algo que o incomodava na água-forte. O encavo, no metal, dependendo da profundidade em relação à superfície da matriz, não lhe abria para o que procurava. A linha gravada na calcogravura, quando feita por uma incisão rápida, não muito profunda, servia-lhe para potencializar suas figuras, mas a linha, sua obsessão, precisava falar mais alto do que as figuras. A única saída seria a profundidade, o tempo de gravação no ácido, mas, quando o encavo era mais profundo, a forma da figura se sobrepunha à linha (Figura 5,Figura 6,Figura 7). Grassmann era um pesquisador inquieto.
A poética da linha ou, de outro modo, a pesquisa do “como” ele gravaria sua linha em água-tinta foi uma possibilidade de abertura que ele esperava e que aconteceu. Forçado, talvez, por sua própria ideia de limite da água-forte, não se apoiou na forma que o encavo possibilitou, porque a forma detém um poder metafísico. Ele era materialista demais para se contentar com a forma. Buscou apoio no mistério de sua linha. Se este aspecto enigmático o surpreendeu conscientemente, eu não sei. Em seu dia a dia, porém, buscou os recursos simples para desvendá-lo.
Encontrou, assim, a solução mais genial, mas também simples, que buscou do seguinte modo: usou uma anilina para tingir tinta de parede, acrescentou detergente e, com uma caneta a bico de pena, desenhou como se essa tinta fosse de caligrafia. Secou esse material no fogão, aqueceu a chapa e, depois disso, encobriu a superfície da chapa com um compressor e borrifou sobre ela asfalto diluído em querosene. Precisava de uma película muito fina que encobrisse a linha e a fizesse soltar-se da chapa quando embebida em banheira de água, levantando, assim, a película asfáltica sobre ela. Quando a linha ficou livre do asfalto, desvelou-se a superfície do cobre ou matriz. Finalmente, desengordurou a linha e acrescentou breu nessa brecha, aquecendo, pela última vez, a chapa. Assim, criou a linha em água-tinta ou em lift ground.
Essa descrição, que pode ser confundida com a busca de Grassmann apenas por uma solução técnica, parece-me uma intenção explícita nesse artista, mas a intensidade com que se envolvia deu a tonalidade afetiva de sua poética. Parafraseando Deleuze: extensão, intensidade e indivíduo manifestaram-se por meio de uma das abstrações do pensamento imaginativo de Grassmann, que criou um suposto caos e, de uma sucessão de crivos e autocríticas, aproximou o desenho da calcogravura com uma espontaneidade de gente do interior, ou seja, excessivamente sincera. Esse indivíduo, talvez um pouco antissocial, criou sua mundanidade de artista.
A gravura como parte dessa mundanidade revelou a elucidação da coexistência de indivíduos, artistas, pesquisadores. Portanto, a calcogravura, o desenho e o artista apareceram como compossíveis, combinados, aqui, para serem apresentados como poética da linha e pelo seu processo de criação artística singular e anacrônico. Grassmann foi um artista anacrônico. Não que tenha cometido um erro de cronologia, nem que tenha sido retrógrado, mas um artista que não estava de acordo com os acontecimentos de sua época.
4. Dos acontecimentos gerais
Os acontecimentos de sua época fizeram-no um desterrado em relação à arte contemporânea. Não um prisioneiro monástico, mas um prisioneiro de sua linha, de seu mistério profundo de entalhador, xilogravador. Assim, de uma sucessão de crivos, de acontecimentos, surgiram a gravura em metal, a obra e o artista.
Saiu do interior do Estado de São Paulo, viveu na Capital e foi até à Europa. As figuras que criou resvalaram em mistérios do Renascimento, do Barroco e até da Arte Moderna europeia, sempre que sua obra necessitasse desses conceitos. A linha continuou como um mistério singular de suas figuras as quais podem coexistirem, historicamente, a partir de Leonardo da Vinci, Rembrandt, Bosch, Goya, Picasso, Kubin, Kokoschka, Schiele.
Não houve sucessão, mas uma obra e um artista inquieto. Indagar por uma etiologia para saber quem originou o quê, a história ou a obra, parece brincadeira de criança de interior: Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Então, pergunto: O que fez dele um artista? A obra. Mas a que a obra remete? Respondo: À arte e ao confronto de um indivíduo do interior com a cultura europeia.
Entretanto, cabe, aqui, apenas uma indicação de uma de minhas leituras de Martin Heidegger, a saber, A origem da obra de arte.
Origem significa aqui aquilo a partir do qual e através do qual uma coisa é o que é, e como é. [...] Através da obra; pois é pela obra que se conhece o artista, ou seja: a obra é que primeiro faz aparecer o artista como um mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. E, todavia, nenhum dos dois se sustenta isoladamente. Artista e obra são, em si mesmos, e na sua relação recíproca, graças a um terceiro, que é o primeiro, a saber, graças àquilo a que o artista e a obra de arte vão buscar o seu nome, graças à arte (Heidegger, s/d:11).
No entanto, abri essa brecha e saí rapidamente dela para não me perder em “círculos crescentes” e caminhar “sobre as coisas” de Rilke (De O Livro de Horas traduzido por José Paulo Paes, 1993:43), como é meu hábito. Como não posso me distanciar do entorno da obra de Grassmann, reconduzo-me aos acontecimentos aqui assinalados. Assim, retorno à reflexão sobre a linha.
Para analisar a poética da linha, pensei em seu braço, punho e mão enquanto desenhava. Quem faz a linha? Quem faz o gesto? Evidentemente que não foram o braço, o punho, a mão, mas uma mente inquieta, inteligente e sensível. Corpo, mão..., nada mais existe, no entanto, há uma parte do mundo de sua poética em minha casa.
Ele era o artista de uma estética definida antes de ser teoria. Eu sou o criador que pensa nessa suposta poética da linha como parte do mundo, da minha casa, dentro do qual suas gravuras e seu desenho constituem uma das paredes, não do ponto de vista arquitetônico, mas do hábito visual de pesquisador que sou, enquanto criador.
5. Do mundo da minha casa
Minha casa e meu hábito de morar, às vezes, resvalam no caos que, segundo Deleuze:
[...] não existe, é uma abstração, porque é inseparável de um crivo que dele faz sair alguma coisa (algo em vez de nada). O caos seria um puro Many, pura diversidade disjuntiva, ao passo que o alguma coisa é um One, não já uma unidade mas sobretudo o artigo indefinido que designa uma singularidade qualquer (Deleuze, 1991:132).
Dentro da minha casa, desse mundo, aparece um crivo condensado por mistérios revelados nas obras aqui enfocadas que estão dentro de meu hábito de habitar poeticamente.
Não me perguntarei pela minha intenção. Não pretendo assinalar nenhum aspecto subjetivo. O mistério, evidentemente, oculto e óbvio, abre-se por um suposto acontecimento dentro da minha casa.
Persigo, então, alguns sinais nas obras, desvelados graças ao meu hábito visual nascido da convivência com as mesmas, aqui destacadas, porque as tenho diante de mim, em meu campo habitual de visão. Trago, aqui, a afirmação de Nelson Rodrigues: “Paisagem é hábito visual. Só começa a existir depois de 1500 olhares” (Rodrigues, 1997:126). Os sinais do hábito se condensam na referência à linha que vejo diariamente.
O sinal e a referência coexistem no hábito de olhar. Nas figuras de Grassmann aparece uma fantasmática do sinal de artista singular referente à História da Arte. Há, sim, uma referência explícita à cultura europeia, mas com sinais sinistros de sua fantasmática, a qual, arriscaria dizer, vem da superstição de ser canhoto, mas ele não usava a mão esquerda, mas o ser artista sinistro foi uma alcunha que lhe impuseram. Ele afirmou uma história da arte sem narrativa linear sugestionando alguns com o mau agouro. Coisa que discordo radicalmente.
Do interior do Brasil chega à Europa, encharcado do mundo germânico da família, menos como da esquerda azarenta, do que de imaginação profícua. A linha, no seu desenho, não vinha de um gesto prestidigitador, mas de um “crivo” que só deixa passar coexistências, ou seja, elementos compossíveis. Ele conciliou a bagagem que trazia com uma cultura europeia livre de formas idealizadas, mas com consciência de uma linha, ora imprecisa, ora incisiva, mas certeira para o desenho, porque foi um desenhador, depois gravador, para “revirar” artista. Sua obra é pura coerência, coragem com muita revolta, menos na vida prática do que na artística. Ele era um artista revoltadíssimo com seu tempo, mas sua revolta pela vida estava latente, assim, deixava a ira passar pela obra, tão coerente quanto esteticamente rara para a cultura brasileira.
No entanto, não estou autorizado, nem por mim mesmo, a comunicar uma declaração tão imensa; estou caminhando por uma imensidão íntima, a partir do mundo da minha casa. Por isso, não retiro o que escrevi, mas ressalvo que é uma opinião pessoal e intransferível. Com o perdão da ousadia, eu envio este artigo, mesmo assim, com algumas considerações críticas mais amplas, como a que fiz no parágrafo anterior, por esperar uma cumplicidade por parte dos organizadores.
6. Considerações finais
Preciso destacar, neste final, que a gravura não é uma linguagem em terceira dimensão, seus relevos não podem ser, a meu ver, mensuráveis em relação à altura da linha impressa, mas, sejam eles perceptíveis a olho nu ou não, dão à gravura uma linguagem de transferência única, da matriz ao papel, da gravura ao desenho, do artista à obra.
Da espessura da linha do desenho ao pequeno relevo da linha da gravura não mostram a terceira, mas a quarta dimensão do espaço, a saber, o tempo. A primeira noção de tempo que me aparece é o das horas ou minutos de gravação das linhas no ácido (Figura 8,Figura 9). Não é a esse tipo de cronologia que me refiro. Cada gravador, depois de muito experimentar, cria hábitos de tempo pela sua disposição no ambiente em que trabalha.
Não digo que Marcello trabalhava sem ou com relógio, mas mostrei apenas a fala de um professor de gravura que não se ampara em relógios, mas em temporalidade e criação. A obra de Grassmann constitui os mundos e me dá energia para o meu trabalho de professor e criador sobre outras obras.
Ao imprimir alguma das minhas matrizes, estabeleço uma interação com a temporalidade de Ser e Tempo, de Martin Heidegger da seguinte maneira: uma prova de estado impressa dá-se no porvir atualizado, no já ser-sido matriz. Enfim, a cópia veio pela matriz gravada e passada pelas molas da prensa. Portanto, concluo, a partir de uma metáfora da faixa de Moëbius: o caminho do criador sobre outras obras é o de dois lados dessa faixa, pelos quais caminho como pesquisador. Apenas torci as extremidades dessa faixa constituída pelo desenho e gravuras de Marcello Grassmann para pensar sobre o tema do já citado Congresso. Nessa torção, apareceu a linha diante da qual me mantive na periferia, ou de um outro modo, em torno de...