SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 issue34Sérgio Muniz, 'Roda' and 'Outras Estórias'Bridges to you: the delicacy of Incorpo author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.12 no.34 Lisboa June 2021  Epub June 30, 2021

 

Artigos originais

Habitus para um corpo possível: caminhar com os objetos-roupa de Martha Araújo

Habitus for a possible body: walking with Martha Araújo's wearable objects

Susana Pires1 

1Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, departamento de Pintura. Largo da Academia Nacional de Belas Artes 4, 1249-058 Lisboa. Portugal.


Resumo

Martha Araújo nasceu em Maceó, no Brasil, em 1943. Durante a década de 1980 Araújo desenvolveu um conjunto de objetos vestíveis, destinados a promover experiências para o corpo. Nestes panos penetráveis, como “Hábito/Habitante” (1982-1985) o público é convocado a vestir a obra. O ato performativo conducente da experiência é estruturado a partir da dupla possibilidade de soltar ou juntar o hábito (roupa) ora dos limites físicos da habitação (galeria), ora de corpos próximos. Este texto propõe revisitar a proposição poética da obra como imagens de ensaio para um futuro próximo.

Palavras-chave: hábito, tecido, intercorporalidade, gestos; isolamento

Abstract

Martha Araújo was born in Maceó, Brazil, in 1943. During the 1980s Araújo developed a set of wearable objects, designed to promote experiences for the body. In “Habit/Inhabitant” (1982-1985), the public is invited to participate wearing the art work. By the use of velcro tape, this performance object is a proposal to choose to free or to join the habit (clothing) from the gallery's physical limits or form the body of other participants. This paper proposes to revisit Araújo's poetic propositions as rehearsal landscapes for one near future.

Keywords: habit; textile; intercorporality; gestures; isolation

1. Introdução

Habitamos um corpo. Cada corpo ocupa uma espacialidade própria e, como todos os territórios, possui uma fronteira de resistência e abertura ao que lhe é estrangeiro, o(s) outro(s).

A relação entre os corpos é caracterizada por um com, que é por si a condição de um nós. Nesse sentido, a intercorporalidade alicerça-se num espaço de negociação (empatia e conflito). No âmago da coexistência paira um intento: Como fazer sensibilidades diferentes viver em harmonia?

Martha Araújo firmou-se no panorama da arte contemporânea brasileira com um discurso irreverente sobre os limites do corpo próprio num espaço de compromisso entre a liberdade individual e um ideal social comum. A matriz conceptual de Araújo, implicada na dicotomia repressão/autodeterminação, remete ao período da Ditadura Militar Brasileira (1964-1985). Todavia, a premissa da obra permanece atual. Hoje, mais do que nunca, os corpos funcionam como vetores éticos. Aproximar, ligar ou soltar, atos deliberados pelas proposições poéticas de Araújo, entendidos como ações de relação recíproca, são agora foco de um compromisso desregulado face a habitus anteriores. Nesse âmbito, o presente texto propõe revisitar a série “Habito/Habitante” (1982-1985) de Araújo como ponto de partida para uma reflexão infundida sobre o isolamento, o medo versus a vontade de proximidade física e os gestos suspensos que urgem à reconstrução do tecido social.

2. Habitus para um corpo possível

Martha Araújo indaga os compromissos sociais e humanos que o corpo de cada um de nós protagoniza na relação com os outros e com o espaço em que nos movemos. Confronta as imposições explícitas e implícitas dos gestos comuns através de exercícios fenomenológicos que aferem estimular as capacidades sensoriais do corpo.

Com uma obra vasta e permeada pela experimentação, a identidade da sua produção artística eleva-se através de proposições que combinam performance e escultura, ou seja, “objetos performativos” de base têxtil. Cada objeto vestível implica uma determinada ação, potencia movimentos e gestos disruptivos ao espectador dentro do espaço expositivo, ou ainda a uma relação de proximidade entre os diferentes participantes por via das estruturas que os conectam.

Os têxteis estão no âmago da experiência humana, cercam os corpos no contacto com o mundo. Sobre os corpos, moldam a forma como nos movemos. No fluxo das interações corporais o vestuário funciona no limiar do sujeito, gerindo os predicados interiores e exteriores de cada um. Na obra de Araújo o têxtil assume um discurso e função duplos, a membrana protetora e simultaneamente mediadora na comunicação com os outros corpos. Tais premissas elevam-se na série “Hábito/Habitante” (1982-1985).

“Hábito/Habitante” decorre de três proposições distintas. Formalmente materializa-se por largos ponchos de tecido, completados com tiras de velcro ou cordas. O ato performativo conducente destas experiências é estruturado a partir da dupla possibilidade de soltar ou juntar o hábito (roupa) ora dos limites físicos da habitação (galeria), ora de corpos próximos (outros participantes).

No primeiro conjunto formal (Figura 1) um poncho de tecido negro é apresentado como um semicírculo bidimensional adjacente à parede no espaço expositivo, isto é, subscrevendo os pressupostos próprios da pintura. Contudo, a construção minimalista solicita o espectador a interferir na sua silenciosa estaticidade. O participante é convidado a vestir a obra e, consequentemente, a desprender-se das estruturas arquitetónicas, numa dinâmica de desapego (Figura 2). Dentro do hábito negro, o participante explora o espaço da galeria como quem ensaia os primeiros passos de liberdade. Procura reconhecer as volumetrias do local e as possibilidades de movimento após o aprisionamento. Por meio de um gesto simples (separar-se pelo velcro), Araújo induz o corpo a desafiar limites.

Figura 1 Martha Araújo, “Hábito/Habitante” (1982-85). Velcro e tecido. Fonte: Galería PM 8. 

Figura 2 Martha Araújo, “Hábito/Habitante” (1982-85). Velcro e tecido. Fonte: Galería PM 8. 

Quando Martha Araújo ofereceu, pela primeira vez, ao público a possibilidade de vestir um hábito, desprendendo-se de formatações impostas e das barreiras físicas do espaço, quis encenar uma metáfora pela autonomia de um indivíduo capaz de controlar a sua própria deriva pessoal, um indivíduo capaz de fazer as suas próprias escolhas. Num momento em que o Brasil chegava ao fim de um regime ditatorial severo, impunha-se a necessidade de contestar todas as forças de dominação social, física e simbólica. Neste contexto, o ato de desprender surge como fonte da intencionalidade de restituir ao corpo a sua capacidade criativa.

Num outro conjunto da mesma série (Figura 3 e Figura 4), Araújo usou o mesmo sistema de velcro para potenciar os atos de unir ou soltar duas partes distintas de um poncho duplo, ou seja, pensado para ser usado simultaneamente por duas pessoas. Nestas estruturas-roupa o gesto de um participante convida à resposta do gesto do outro. Entende-se que o impacto de um corpo sobre outro parece ser proporcional à força que se estabelece entre ambos. Encenam-se coreografias de conjunto. O tecido que os veste, é o tecido que os liga e que expõe as ligações como um excesso de visibilidade que não vulgariza o evento, que antes o remete para a aceção mítica do fio invisível que cose os corpos com significado entre si.

Figura 3 Martha Araújo, “Hábito/Habitante” (1982-85). Velcro e tecido. Fonte: Galeria Jaqueline Martins. 

Figura 4 Martha Araújo, “Hábito/Habitante” (1982-85). Velcro e tecido. Fonte: Galeria Jaqueline Martins 

Ainda sob o título “Hábito/Habitante”, um outro objeto vestível é composto por um enorme círculo de tecido laranja com oito perfurações circulares, próximas entre si (Figura 5). Esta construção está pronta para ser habitada por quatro indivíduos. No entanto, é um convite perverso, pois dentro dela, se aceitarem o desafio, ficarão aprisionados. Mais uma vez a “experiência-ação” sintoniza uma metáfora social, uma vez presos na obra só com movimentos de conjunto e coordenados vão conseguir retornar à liberdade do corpo, ou seja, só a coesão permite a libertação da opressão.

Figura 5 Martha Araújo, “Hábito/Habitante” (1982-85). Velcro e tecido. Fonte: Galeria Jaqueline Martins 

Depreende-se que obras têxteis de Martha Araújo são adereços vestíveis que prescrevem determinadas ações. Dentro da obra, os participantes ficam desde logo limitados à geometria de movimentos que esta permite. Todavia, salienta-se que o tempo da ação, a duração e a suspensão dos gestos quotidianos prevêem um desequilíbrio de posturas normativas.

No corpo que se empresta à obra de Araújo dissipam-se as referências do gesto aprendido. Encena-se um novo real em que hábitos anteriores são momentaneamente abandonados ou simplesmente questionados. Assim evidencia-se nestes trabalhos a proximidade etimológica, pouco inocente, entre hábito (costume), hábito (traje) e habitação, trilogia ancorada no termo habitus que do latim se traduz como “o estado do corpo ou de uma coisa.”

Na matriz aristotélica, habitus designa: as características do corpo e da alma adquiridas num processo de aprendizagem. Pierre Bourdieu atualizou o conceito, legitimando-o como um princípio de correspondência entre as práticas individuais e as condições sociais de existência (Bourdieu, 1994). Bourdieu analisou as disposições do esquema corporal, os movimentos, as técnicas e os usos do corpo como princípios ordenáveis, capazes de orientar ações de maneira inconsciente e sistemática. Contudo, contra a primeira evidência que faria do corpo o produto de uma construção social e consequentemente o vínculo antropológico para a pertença ao coletivo no qual se insere, a teoria do habitus de Bourdieu entende-se como um sistema de disposições para a ação que procura incorporar todos os graus de liberdade. Conclui-se que, os gestos e as posturas que consideramos adquiridos se reinventam constantemente face a novas situações e ambientes. É necessário expor o corpo aos seus próprios limites para que este se reinvente. Aprendemos isso com as preposições de Martha Araújo.

“Habito/Habitante” é um jogo que propõe “prender-para-soltar”, um ensaio de libertação potenciado pelo velcro, que emerge como alusão da vida coletiva, a busca da libertação ao que nos é imposto, a nós mesmos e às regulamentações omnipresentes do espaço público.

Ao nos debruçarmos sobre a obra de Araújo, facilmente esboçamos uma proximidade entre as suas pesquisas plásticas e o legado de artistas como Lygia Clark, Hélio Oiticica ou Lygia Pape. O paralelismo estabelece-se na realização de artefactos de carácter escultórico conceptualizados para promover experiências para o corpo em contexto estético, subsequente de uma reflexão sobre a escassez de liberdade, os vínculos sociais implícitos e o próprio sistema da arte.

Todos eles engendraram dinâmicas de grupo propostas sob a epítome da concretização metafórica dos vínculos sociais e afetivos. A relação com o outro e a intercorporeidade são usadas como tema e como obra. O objeto-ponte inaugura a relação espacial entre intervenientes, que são eles também parte da obra. O objeto-roupa surge como elemento propositivo que desafia o sujeito num espaço de vivência coletiva efémera. O têxtil assume-se como materialidade e protagonista do próprio discurso, o tecido conectivo indaga e promove o tecido coletivo.

“Hábito/Habitante debate-se por uma intercoporeidade que não se estabelece na homogeneidade, mas que permite várias modalidades de encontro, que se desregula e se engendra na fluidez aleatória do espaço tangível. Entre o sinal de protesto e a participação lúdica, estas vestimentas são a expressão utópica de um regime participativo, onde todos se podem ligar, onde todos podem entrar, experimentar e criar. Neste contexto poderá afirmar-se que os objetos de pano de Martha Araújo geram práticas comunicativas que estetizam a intercorporeidade. Propõem heteropias corporais desreguladoras sobre a construção de um corpo coletivo, pelo simples ato de vestir.

Conclusão

Em 2015 a Galeria Jaqueline Martins em São Paulo apresentou uma retrospectiva da obra de Martha Araújo sob o título “Para um corpo pleno de vazios”. Nesta exposição, além das estruturas têxteis anteriormente referidas, estavam presentes obras como “Para um corpo de desejos adormecidos” e “Para um corpo e o seu duplo” (1986/2016). Genericamente estes três títulos induzem uma reflexão à aposta nas proposições relacionais de “Habito/Habitante”.

“Para um corpo de desejos adormecidos” (1986/2016) são formas escultóricas pensadas para acolher um ser isolado, cansado, resguardado num falso conforto. São formas para um corpo inerte que parece ter olvidado a força empática dos gestos conjuntos.

O ano transacto de 2020 e os primeiros meses de 2021 conduziram-nos a uma existência privada da coexistência, nos moldes que conhecemos. A distância assegura agora o respeito e o cuidado pelo outro. Podemos perguntar que sentido tem existência sem a coexistência, quando a proibição do toque é uma forma de salvaguardar a vida de outra pessoa, bem como a nossa.

Somos ser de relação. O êxtase decorre pela contingência do que é distinto. Estamos em con(tacto), com os outros, na medida em que existimos. Enquanto aguardamos um futuro próximo onde o facto de nos soltarmos dos limites, agora impostos ao corpo, não vai mais implicar a vida/saúde do outro, podemo-nos debruçar sobre os registos fotográficos das performances de “Habito/Habitante” como proposições para readquirir habitus adormecidos. Nesse sentido a obra referenciada apresenta-se como imagem coreográfica de um ensaio de liberdade e humanidade que urge no, já amanhã, por vir.

Agradecimentos

A autora agradece ao CIEBA (Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes) o apoio para este trabalho de investigação.

Referências

Barthes, Roland (2003). Como viver junto: Simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. São Paulo: Martins Fontes [ Links ]

Bourdieu, P. (1994). Sociology in Question. Thousand Oaks: SAGE. ISBN 978-0803983380 [ Links ]

Nancy, Jean-Luc (2000). “Being Singular Plural.” Stanford University Press (Meridian - Crossing Aesthetics), California. [ Links ]

Salas, Francisco (2015). Martha Araújo. Disponível em: Disponível em: http://www.pm8galeria.com/exhibitions/51/habito-habitante . (Consultado a 12/01/2021). [ Links ]

Recebido: 28 de Fevereiro de 2021; Aceito: 01 de Março de 2021

1 Susana Pires é artista visual e investigadora. Doutorada em 2020 pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Ciência ID 641A-3D30-F430. Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Departamento de Pintura. Largo da Academia Nacional de Belas Artes 4, 1249-058 Lisboa. Email: pi.susana@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons