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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.12 no.34 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

 

Artigos originais

A Pintura Mitológica de Carlos Reis: Arte, História e Nacionalismo entre a Monarquia e a 1ª República

The Mythological Painting of Carlos Reis: Art, History and Nationalism between the Monarchy and the 1st Republic

Maria José Marino Marcela Coelho1 
http://orcid.org/0000-0002-7638-7059

1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.


Resumo

Carlos Reis foi um dos mais prestigiados pintores naturalistas portugueses do início do século XX. Assumiu a estilística que Silva Porto promovera nos anos de 1880, reunindo à sua volta uma elite artística formada pelos discípulos da Academia de Belas-Artes. Fundou diversos grupos que tinham como desígnio pintar a paisagem e a vida rural portuguesa num contexto ar-livrista na linha estética de Barbizon. O presente artigo destaca as pinturas mitológicas de cariz decorativo que viria a realizar, sob encomenda, com o mesmo carácter cenográfico que utilizava no tratamento da paisagem.

Palavras chave: Carlos Reis; Pintura de História; Pintura Mitológica; Arte; Nacionalismo

Abstract

Carlos Reis was one of the most prestigious Portuguese naturalist painters of the early 20th century. He followed the stylistics that Silva Porto promoted in the 1880s, gathering around him an artistic elite formed by the disciples of the Academy of Fine Arts. He founded several groups whose purpose was to paint the Portuguese landscape and rural life in an open air context in the aesthetic line of Barbizon. This article highlights the mythological and decorative paintings that he produced, on request, with the same scenographic character that he used in the landscape treatment.

Keywords: Carlos Reis; History Painting; Mythological Painting; Art; Nationalism

1. Carlos Reis - Breve Enquadramento Biográfico

Carlos António Rodrigues dos Reis (Torres Novas, 1863 - Coimbra, 1940) foi um dos expoentes da pintura naturalista portuguesa do início do século XX [Figura 1]. Desde cedo manifestou uma tendência artística inata, tendo-se inscrito nas Belas-Artes de Lisboa em 1881. De origens modestas, debateu-se com dificuldades de natureza financeira dado o agravamento das condições económicas da família em consequência do falecimento de seu pai nesse ano. Em 1882, por intermédio de um parente, trava amizade com o príncipe herdeiro D. Carlos, grande amante das artes, cujo suporte lhe permitiu estudar Pintura em França. O futuro rei de Portugal atribui-lhe uma pensão mensal que mantem durante cerca de oito anos, período em que o artista frequenta o curso em Lisboa e também durante o tempo em que foi bolseiro do Estado em Paris (1889 a 1895), tendo aulas com o famoso retratista parisiense Bonnat (Costa, 2008: 278). Participa em 1886 e 1887 nas exposições do Grupo do Leão (1881-1889) enquanto ainda estudante na Academia de Belas-Artes.

Figura 1 Carlos Reis aos 17 anos, in Reis, 2006

A grande amizade com o monarca, que lhe permitiu mover-se no círculo aristocrático e que durou até ao Regicídio, valeu-lhe, após a implantação da República, o afastamento do cargo que então ocupava como primeiro Diretor-Conservador do Museu Nacional de Arte Contemporânea (1911-1914), aberto nas salas do Convento de São Francisco. Monárquico assumido, foi substituído pelo pintor Columbano Bordalo Pinheiro que assumiu a Direção a partir dessa data. A imprensa atribuiu este afastamento a motivos políticos devido às suas inclinações monárquicas, mas ao facto não terão sido alheias as dificuldades de relacionamento com o Conselho de Arte e Arqueologia e com José de Figueiredo, que lhe sucedeu no Museu das Janelas Verdes [Museu Nacional de Belas-Artes] após o mandato que cumpriu de 1905 a 1910, e com quem teve de tratar da transferência das coleções para o Convento, para acolher a produção artística portuguesa posterior a 1850 (Silva, 1994: 14), reformulado o património nacional e classificados os monumentos pátrios, após a desamortização das corporações religiosas ocorrida em 1834.

O seu talento permitiu-lhe atingir uma carreira artística de relevo, tendo exercido o cargo de professor de Pintura de Paisagem na Real Academia de Belas-Artes de Lisboa [Escola de Belas-Artes desde 1911] de 1896 até 1933, sucedendo a Silva Porto (1850-1893) depois de competir pelo lugar com António Ramalho e Artur Melo. A par do ensino artístico apoiou a criação de várias organizações promotoras das Artes. Em 1901 constitui-se como membro fundador da Sociedade Nacional de Belas-Artes, ocupando lugares na Direção em 1903, 1909 e 1911, participando assiduamente nas exposições realizadas por esta. Foram Carlos Reis e o escultor Tomás Costa (1861-1932) que se esforçaram por obter da Câmara Municipal de Lisboa a concessão do terreno da Rua Barata Salgueiro para a sede e galeria de exposições da SNBA, o que foi alcançado em 1906 (Gonçalves, 1963).

Foi mentor da Sociedade Silva Porto, fundada em 1900, que se manteve ativa até 1912. Com alguns alunos funda o Grupo Ar Livre (1910-1923), antecessor do Grupo Silva Porto (1927-1940) [Figura 2] cujo fim seria ditado pela sua morte, inserindo-se numa abordagem ar-livrista e num estilo pictórico que pretendia captar os aspectos definidores da paisagem e das vivências populares nacionais, num modelo marcadamente rural, prolongando a estética naturalista pelas primeiras décadas de Novecentos. A partir de 1918 fixa-se na serra da Lousã onde constrói atelier no Casal da Lagartixa, colhendo inspiração nos motivos campestres aí encontrados e nos costumes locais, iconografia que desenvolve na sua pintura de paisagem [Figura 3].

Figura 2 Inauguração da 1ª Exposição do Grupo Silva Porto em 1927. Da esquerda para a direita: António Saúde, João Reis, Falcão Trigoso, o Presidente da República Óscar Carmona, Carlos Reis, Frederico Aires, Alves Cardoso. Espólio da família do pintor Alves Cardoso, in Reis, 2006. 

Figura 3 Carlos Reis, A Feira, 1910. Óleo sobre tela, 277 x 400 cm. Fonte: http://www.museuartecontemporanea.gov.pt  

Carlos Reis, quer enquanto professor, quer enquanto promotor de vários grupos artísticos, manteve ao longo de quatro décadas (1900-1940) as referências e a metodologia de Silva Porto, que tinha substituído como regente da cadeira de Pintura de Paisagem, marcando sucessivas gerações de artistas. A proposta naturalista que evocava a memória do mestre perpetuava uma interpretação nacionalista do imaginário veiculado pelas pinturas expostas, definindo, a partir delas, códigos de identidade nacional (Serrão, 2009:360).

Pintor da terra e das gentes com uma extraordinária grandeza realista, de acordo com Pamplona (1964:26) soube encontrar nesses temas “uma secreta poesia que os transfigura”, não copiando o espectáculo da natureza, mas recriando a sua beleza latente com uma técnica prodigiosa que o caracterizava em todas as obras que produziu. As pinturas de grandes dimensões que apresentou nos salões do Grémio Artístico (1890) e na SNBA introduziram uma exuberância colorida e um brilhantismo inédito à época.

Considerada figura de grande prestígio no ensino e meio artístico, em 1940 ano da sua morte, foi-lhe concedida a Grã-Cruz da Ordem de Santiago. Em 1942 foi atribuído o seu nome ao Museu Municipal de Torres Novas, cujo acervo ficou instalado na Casa Mogo de Melo, onde foi depositado o mais completo núcleo museológico do país sobre a pintura do artista.

2. Arte, História e Nacionalismo entre a Monarquia e a 1ª República

O estado da Arte em Portugal sempre esteve intrinsecamente ligado aos acontecimentos políticos e ao desenvolvimento da economia, sendo reflexo de uma mentalidade cultural que se insere num enquadramento social específico. Desde o último quartel de Oitocentos até à implantação da República emergem vários movimentos articulados como uma causa etnográfica de revalorização dos símbolos pátrios. Em 1880 organizam-se os festejos do Tricentenário de Camões, retomando como foco de fundo ideológico positivista e reafirmações do valor português, a figura do poeta e as significações de uma revivescência nacional. Em 1882 celebra-se o Centenário do Marquês de Pombal, o do Infante D. Henrique em 1894, as Comemorações das Descobertas em 1898-1900.

A instabilidade política de Portugal nas décadas finais de Oitocentos, a braços com crises económicas recorrentes, foi ainda mais abalada pela morte de D. Luís I e as mudanças no trono em 1889. Seu filho, D. Carlos I enfrentaria logo uma grave disputa com as decisões tomadas frente ao Ultimatum de Inglaterra em 1890, que cortou a tentativa de afirmação nacional no continente africano, facto que desencadeou em Portugal uma fase anti-britânica e de manifestações patrióticas. A indefinição das fronteiras coloniais portuguesas, territórios de Angola e Moçambique, agravou a situação política do país que sofreu conspirações e mudanças na liderança parlamentar. A somar ao aumento do custo de vida o atraso a que Portugal tinha sido votado há longos anos, gerou uma insatisfação popular enquanto o movimento republicano amadurecia os seus ideais. Frente a um cenário caótico que resultaria no assassinato de D. Carlos e do príncipe D. Luís Filipe em 1908, o insucesso da partilha do governo entre regeneradores e progressistas, levou à implantação em 1910 do regime republicano em Portugal.

O panorama artístico português das décadas finais do século XIX é marcado por uma conjuntura cultural presa a referências literárias românticas com enorme peso sobre os artistas, que exploravam a ideologia liberal promotora da Regeneração. Este programa político e económico de renascimento nacional pressupôs uma carga simbólica de esperança e uma luta encetada para recuperar o atraso endémico português. A mentalidade de fin de siècle assentou numa ideologia republicana em crescendo que estimulou a elevação da consciência patriótica e a exaltação dos valores nacionalistas associados à simbologia identificadora da pátria portuguesa. A elite cultural que serve o republicanismo adopta então uma atitude proativa perante o estado da Nação, diagnosticando as qualidades, os recursos, e o carácter do país, pelo qual a força republicana irá encetar o processo de engrandecimento nacional (Silva, 1997:111-29).

Desde o último quartel de Oitocentos até à implantação da República emergia uma geração de figuras intelectuais, em que se inseriam os grupos artísticos liderados por Carlos Reis. Os ideais oitocentistas, renovados já em Novecentos pela defesa de opções estéticas trazidas pelos pensionistas portugueses via École de Barbizon, traduziram-se numa atividade dinamizadora do desenvolvimento das artes plásticas em Portugal. As confrarias de artistas contribuíram, assim, para a construção de um modelo identitário nacional junto dos portugueses, referências que atravessariam os anos finais da Monarquia e o advento da 1ª República.

O Naturalismo propagado na senda do Realismo como reacção às opções artísticas oficiais na linha romântica, foi difundido dentro das Academias, cujas opções ideológicas ganhariam eco na produção artística que, centrada no presente, privilegiava um inventário visual de lugares concretos influenciados pelo espírito etnográfico da época. A escola naturalista tratava a matéria numa linguagem acessível e emblemática, em composições luminosas e pinceladas soltas, retratando camponeses e personagens simples integradas numa ruralidade sentida, ou mesmo saloios do entorno lisboeta. A preferência pelo género da paisagem constituía o modelo estético e temático na procura de uma “verdade nacional”, passível de demonstrar a essência do carácter português na sua vertente ruralista, cujos panoramas se tornavam “verbos formuladores de identidades”, não apenas um mero género estético (Mitchel, 2002).

O género paisagístico manteve-se diante de alterações do cenário político-económico na transição do século XIX para o XX, no rumo do persistente legado de Silva Porto, apontado como o instituidor de pintura de paisagem em Portugal e responsável por desenvolver o sentimento nacionalista na arte pictórica, então ensinado por Carlos Reis. O naturalismo vernacular, “pelo seu compromisso identitário no enaltecimento dos valores antropológicos de uma sociedade resistente à industrialização” (Silva, 2012:77), tornou-se um elemento de orgulho nacional.

Apesar do triunfo do Naturalismo que correspondia aos anseios de uma arte pretensamente portuguesa, a Pintura de História de teor academizante mantinha-se numa atitude de continuidade face à tradição pictórica oitocentista. Este género pictórico, que só viria a perder importância dos anos cinquenta do século XX em diante (Tavares, 2006), foi adotado por uma série de autores que veiculavam um código historicista portador de sentido nacionalista que reportava a história pátria do seu país e o correspondente imaginário de glorificação, consagrando a arte como culto cívico à Nação.

A Pintura de História era ainda considerada como o género artístico mais nobre por evocar o virtuosismo da ação humana nas suas vertentes patrióticas, com evidente apropriação dos temas heróicos e da iconografia mitológica. Numa época em que o país sucumbia perante um sentimento de decadência numa conjuntura adversa, tanto política como económica, o projecto de reconstrução da nacionalidade do território apoiava-se, portanto, nas fontes historiográficas de um passado épico e monumental, ao mesmo tempo que utilizava a cenografia de grande escala na representação pictórica, estabelecendo um código em que o espectador se percebia parte integrante da História, contribuindo dessa forma para uma missão cívica, pedagógica e reunificadora do estado anímico de Portugal.

“No final de Oitocentos e princípio de Novecentos desenvolvia-se uma larga atividade de decoração em palácios públicos e privados” (França, 1990:194). Os ciclos e as campanhas de pintura multiplicavam-se e os elementos decorativos, vindos de uma tradição clássica e setecentista que o romantismo repusera em vigor, prolongavam-se em esquemas idênticos não acarretando significativa modificação de gosto. A representação de personagens e cenas da mitologia com sentido alegórico, com emolduramentos fantasistas abundavam. Conforme França (1990:313) “a implantação da República em 1910, não alterou as estruturas socioeconómicas da Nação nem as duma vivência estética oitocentista”.

Neste contexto, além das proposições paisagistas de teor naturalista, Carlos Reis mostrou igualmente a sua habilidade pictural numa série de Pinturas de História de natureza alegórica e mitológica, respondendo a várias encomendas públicas e privadas, num período em que as intervenções decorativas e cenográficas aplicadas a luxuosas residências e palacetes se constituíram como uma forma de coleccionismo das elites associadas à ostentação de prosperidade.

3. A Pintura Alegórica e Mitológica de Carlos Reis - Intervenções de Pintura Decorativa

Como artista consagrado com uma faceta artística multiforme, admirável paisagista e retratista de grande sensibilidade, Carlos Reis recebeu várias encomendas públicas executando trabalhos de decoração pictórica de grandes dimensões aplicada à arquitectura, no Museu de Artilharia, Sala Vasco da Gama [entre 1903 e 1909]; na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, Sala dos Actos [1905]; no Palace Hotel do Buçaco, na Sala de Leitura e Salão de Baile [1907]; no Paço Ducal de Vila Viçosa [1904 e 1908]; no Palácio Palmela; no Palácio Valle-Flor [entre 1910 e 1915]; no Palácio de São Bento [1935], entre outros, revelando um prodigioso dom artístico. Dada a vasta produção abordamos apenas alguns casos exemplificativos.

No Museu de Artilharia [denominado Museu Militar desde 1926] colaborou no programa de encomendas para a sua decoração, que fizeram deste o mais importante conjunto de pinturas dos fins do século XIX académico, sendo convidado a revestir as paredes da Sala Vasco da Gama com pinturas alusivas a poemas épicos camonianos dos Lusíadas. O quadro O Concílio dos Deuses - Mapa de Moçambique [Figura 4], que cobre a parede principal, foi concebido para a projetada Sala das Colónias, pois a primitiva ideia seria decorar as paredes da sala com os mapas das colónias portuguesas (Catálogo do MA, 1910: 29). Porém, foi depois decidido dedicar a sala a Vasco da Gama, símbolo máximo da era dos Descobrimentos portugueses e da expansão marítima e comercial.

Figura 4 Carlos Reis, Concílio dos Deuses - Vénus perante Júpiter e Mapa de Moçambique, 1903. Óleo sobre tela, 267 x 956 cm. Acervo MML, Sala Vasco da Gama. © MML. 

Conforme França (1996:43) esta tela seria de dupla autoria de Carlos Reis e do arquitecto Luigi Manini, também cenógrafo do Teatro Nacional de São Carlos, que pintou o mapa da província de Moçambique no centro da pintura além da grande tela que reveste o teto e que serviu também à seção portuguesa de terra e mar na exposição Universal de Paris de 1900, tendo sido oferecida ao Museu pelo Ministério das Obras Públicas em 1901: "Mas o tecto completa-se na grande parede do fundo em que Manini colaborou também, desenrolando, entre as figuras de Carlos Reis, um mapa de Moçambique".

À esquerda “figura-se uma audiencia solemne de Jupiter no Olympo. O senhor do Universo, sentado em uma poltrona dourada sobre um throno de nuvens escuta Vénus” (Catálogo do MA, 1910: 27) que, cercada pelas três Graças, Euphrosina, Thalia e Aglaia, suplica-lhe a favor dos portugueses, apontando as naus que se dirigem à Índia. França (2004: 197) considera a figura da Deusa “a mais bonita e alva carnação feminina do academismo nacional”. No extremo oposto do quadro, no lado direito, a Fama coroa o escudo de armas de Portugal sustentada por três meninos.

A parede que lhe fica à esquerda é coberta pela tela Sereias e Tritões Acalmam as Ondas [Figura 5], representando a viagem para as Índias, em que as entidades mitológicas têm por missão aplacar as ondas por ordem de Neptuno, para facilitar a navegação às três naus comandadas por Vasco da Gama.

Figura 5 Carlos Reis, Sereias e Tritões acalmam as ondas, 190.?. Óleo sobre tela, 267 x 520 cm. Acervo MML, Sala Vasco da Gama. © MML. 

Na parede que fica à direita, Vasco da Gama é levado em triunfo pelo deus Neptuno numa concha puxada pelos hipocampos [cavalos-marinhos] [Figura 6], em triunfal passeio marítimo, entre Ninfas, Sereias e Tritões, que bracejam alegremente nas águas espumosas, os quais por ordem de Neptuno vão aplacando a tempestade.

Figura 6 Carlos Reis, Vasco da Gama Transportado em Triunfo por Neptuno, 1909. Óleo sobre tela, 267 x 457 cm. Acervo MML, Sala Vasco da Gama. © MML. 

Os intervalos das janelas na Sala Vasco da Gama são também revestidos por telas de menores dimensões [Cupido, Caravelas a aproximarem-se do Cabo, Caravela a afastar-se do Cabo - 267x83 cm/cada]. Numa das quais “se vê o Adamastor colerico e espantado pela ousadia dos portuguezes, que elle vê dobrar o cabo das Tormentas até então desconhecido” (Catálogo do MA, 1910: 29). O Adamastor [Figura 7] espreita das furnas da rocha, em “disforme e grandíssima estatura” vendo-os a dobrar o Cabo, depois denominado da Boa Esperança, até então nunca ultrapassado. Esta é uma figuração alegórica de Camões, de um dos gigantes mitológicos filhos da terra, na sua “postura medonha e má”, que Júpiter venceu e jaz enterrado sob o promontório sul de África que marca o encontro dos oceanos Atlântico e Índico.

Figura 7 Carlos Reis, Adamastor, 190.?. Óleo sobre tela, 267 x 205 cm. Acervo MML, Sala Vasco da Gama. © MML. 

No Palace Hotel do Buçaco, os painéis decorativos na Sala de Leitura e no Grande Salão de Baile [Figura 8] são da autoria de Carlos Reis, obra que terminou em 1907. Para o Salão Nobre o artista pintou duas telas com cenas campestres - motivos florestais ao gosto pré-rafaelista em trompe d’oeil - enquadrando a lareira no centro da sala e duas portas envidraçadas emolduradas em arco pleno com figuração nas enjuntas. O grande friso decorativo corresponde ao timbre medievalizante, pontuado por personagens características, jograis, bobos e donzelas, que habitam uma floresta.

Figura 8 Carlos Reis, Um Concerto ao Ar Livre no Séc. XV, 1907. Palace Hotel do Buçaco. Fonte: https://nona.blogs.sapo.pt/por-terras-de-portugal-hotel-palace  

O edifício foi mandado construir entre 1888 e 1907 pelo rei D. Carlos I como pavilhão real de caça. É exemplar da moda arquitetónica da época conhecida por Burgenromantik [Romantismo Castelar], que cultivava uma ode nacionalista à Epopeia dos Descobrimentos Portugueses. Construído ao gosto ecléctico da época, revivalista e neomanuelino, abundantemente decorado com esculturas e pinturas encomendadas a mestres portugueses da viragem do século, tal como o Museu de Artilharia, insere-se num tipo de projecto denominado de Edifício Monumental.

No Palácio Valle-Flor, edifício em que as opções decorativas privilegiam os estilos franceses associados aos luxos contemporâneos, os tetos e as sobreportas foram pintados com trechos paisagistas e mitológicos obedecendo à temática comum, com flores e alegorias à música, tendo Carlos Reis participado na decoração mural entre 1910 e 1915.

Destacam-se várias pinturas decorativas no teto, em formato circular, em compartimentos do andar nobre. Exemplifica-se com uma sala decorada segundo o estilo Luís XV, ou Rocaille, que possui ao centro no teto uma tela da autoria do artista, emoldurada por um friso em gesso pintado de dourado, rodeada por ornamentações em trompe l’oeil [Figura 9]. Uma figura feminina semidesnuda, envolta em um magnífico panejamento e com uma coroa de rosas, toca guitarra enquanto seis putti brincam ao seu redor.

Figura 9 Carlos Reis, A Primavera. Teto da Sala Luís XV do Palácio de Valle-Flor. In Leal, 2014

Outra obra de relevo na linha alegórica da obra de Carlos Reis encontra-se na Sala do Senado do Palácio de S. Bento. Alegoria à Pátria [Figura 10] foi uma pintura encomendada ao artista para figurar na parede da Presidência da Sala das Sessões da Câmara Corporativa do Palácio do Congresso. O processo de encomenda foi conduzido pelo Engenheiro-Delegado Leal de Faria, em 1934, da Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN).

Figura 10 Carlos Reis, Alegoria à Pátria, 1935. Óleo sobre tela, 315 x 228 cm. Museu da Assembleia da República, Palácio de São Bento. Fonte: https://museu.parlamento.pt/  

A composição pictórica construída em pirâmide ao jeito renascentista, representa cinco figuras femininas num espaço aquitetónico de interior com chão de pedra enxequetado (preto e branco com gregas rosa) que se abre para um exterior de paisagem. O quadro representa a Pátria recebendo as homenagens das Artes, das Ciências, do Comércio e da Indústria. No eixo central da composição, em plano recuado, uma figura feminina enverga uma toga clássica branca, com diadema dourado e coroa de louros sobre o cabelo. Segura na mão direita as armas portuguesas (brasão com as cinco quinas e seis castelos) e um ramo de oliveira na mão esquerda. Está sentada num trono de pedra elevado sobre três degraus, esculpido com motivos arquitectónicos de costas subidas funcionando visualmente como drap d'honneur, com a palavra PATRIA em baixo relevo simulado por tromp l'oeil, que enquadra simbolicamente a figura num adequado sistema formal.

Num plano mais próximo e de cada lado vêm-se duas figuras femininas em pé. À esquerda, a que se apresenta de costas com o elmo dourado na cabeça, empunha uma palma na mão direita e um pilo romano na mão esquerda - alegoria bélica correspondente à deusa grega Atena; a outra segura uma paleta com pincéis e compasso na mão esquerda - alegoria às Artes, Pintura e Arquitectura. À direita, a que tem o cabelo coroado de espigas com papoilas, empunha uma palma e uma flor na mão direita e carrega um molho de espigas debaixo do braço esquerdo - alegoria à Agricultura correspondente à deusa romana Ceres; a outra, inclinada para a frente, segura uma coroa de louros na mão esquerda com a menção de depô-la aos pés da figura central - alegoria à Vitória.

O Jornal A Voz, de 5 de Janeiro de 1935, comenta:

… Fica a soberba tela ante a majestosa mesa presidencial, no lugar outrora ocupado pelo retrato imponente de el-rei D. Carlos. Como se sabe, a antiga Câmara dos Pares tem um aspecto de boas linhas artísticas, certamente, mas um tanto pesado na cor e nos elementos decorativos. O quadro sucedâneo vai marcar ali uma nota viva de cor, de graça, de leveza, sem perturbar, todavia, as novas e harmoniosas linhas do conjunto (Reis, 2006: 318)

Reflexões Finais

Carlos Reis distingue-se entre os artistas da chamada “segunda geração de naturalistas” tendo sido um dos pintores mais eminentes da viragem do século XIX para o XX. Consideramos uma tríplice visão temática no entendimento da sua obra: produtos ar-livistas com paisagens e cenas de costumes da vida rural sob uma essência romântica, retratos executados com uma virtuosa técnica realista, e pinturas murais de cariz decorativo.

No género paisagístico pintou cenas da vida quotidiana do povo português integrado em paisagens bucólicas, destacando-se pela sua capacidade para transmitir as luminosidades com um extraordinário sentido poético. Na área do retrato ficou reconhecido pela sensibilidade com que representava a realeza e a nobreza contemporânea, e a própria família, captando admiravelmente o requinte aristocrático e as feições, numa diversidade de tipos psicológicos.

Carlos Reis, que assegurou um ciclo estilístico na linha do projecto de Silva Porto, deixou um legado notável entendido no conjunto da sua obra marcadamente naturalista, mas também de teor decorativo e académico no que respeita às suas pinturas de iconografia alegórica e mitológica que desenvolveu sob encomenda para distintas entidades, na transição de Oitocentos para Novecentos e continuado nas primeiras décadas do século XX, que temos a oportunidade de apresentar.

A sua produção pictural, impregnada de um forte sentimento lusitano, apresenta naturalmente um diálogo entre os temas que tratou, num período conturbado da nossa História que ficou marcado pelo Ultimatum britânico, pela queda da monarquia e pela convulsão social e política que caracterizou a primeira República, correspondendo ao aparecimento de tendências artísticas que coabitaram com a ordem estética de uma elite burguesa pouco receptiva a modernismos.

Agradecimentos

A autora agradece ao Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes (CIEBA) o apoio para este trabalho de investigação.

Bibliografia citada

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Recebido: 30 de Dezembro de 2020; Aceito: 22 de Janeiro de 2021

1 Maria José Marino Marcela Coelho é artista plástica e conservadora-restauradora de Pintura. Está a realizar o Doutoramento em Belas-Artes na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, com especialidade em Ciências da Arte e do Património. É Mestre em Ciências da Conservação, Restauro e Produção de Arte Contemporânea (2016) e Licenciada em Ciências da Arte (2013), também pela FBA-UL [http://www.belasartes.ulisboa.pt/]. As suas principais linhas de investigação são os materiais de produção pictórica, a Conservação e Restauro de Pintura, a História da Arte e a Museologia. Morada: Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Afiliação no Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal. Email: coelho.mjm@gmail.com

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