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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.12 no.35 Lisboa set. 2021  Epub 30-Set-2021

 

Editorial

Entre a pele da escultura e a mão da pintura

Between the sculpture’s skin and the painting’s hand

João Paulo Queiroz1 

1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes. Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.


Resumo

A arte é material ilusório que se ilude na sua polaridade. Entre a pele da pintura e a pele do pintor, existe uma continuidade interrompida pelo encerramento da peça, em que o autor se despede e abre caminho aos novos participantes. Estes são seres políticos, pois são público, são relação. As quinze propostas de abordagem à obra de outros tantos artistas que aqui são apresentadas, neste número 35 da Revista Estúdio, transportam um desejo interior de uma expansão para os vivos, para novas relações, novos trânsitos, no círculo aberto das artes.

Palavras-chave: Estúdio 35; arte; cinema; política; público

Abstract

Art is illusory material that is deluded in its polarity. Between the skin of the painting and the painter’s skin, there is a continuity interrupted by the closure of the piece, in which the author gives way to new participants. These are political beings, because they are public, they are relationship. The fifteen proposals to study the work of fifteen artists that are presented here, in this issue 35 of Revista Estúdio, carry an inner desire for an expansion towards life, for new relationships, new transfers, in the open circle of the arts.

Keywords: Estúdio 35; art; cinema; politics; audience

1. A capa das materialidades

Sob a capa das materialidades, há um corpo e uma vivência. Sobre um papel, uma camada e outra, de tinta, de agregação plástica, de espessura intencional e mobilizadora. Interrogar o suporte, encobri-lo, iludi-lo, enganá-lo. Uma mancha, um risco, um traçado, um apontamento (Corona, 2016; Prieto, 2014). Um pensamento que se delineia, tornado visível, enfrentando a pequenez das matérias mortas.A arte é material na sua vertente significante (Almozara, 2018; Fernández Fariña, 2010). E ao mesmo tempo é traçada pelos vivos, entre os vivos, estabelecendo entre estes uma relação, ou projeto de relação (Rizolli, 2021).

2. Um corpo desejante

A proposta é grande e pequena: uma ponte, uma comunicação, uma partilha de uma interrogação, envolvimento, comoção, desejo (Grando, 2015; Rizolli & Fontes, 2014). O desenho, com a pintura, a escultura e arquitetura, como o cinema ou a dança, assentam no corpo desejante do autor, do actor, do desenhador.

A autoria é equivalente no amor, o seu traçado um risco deixado no espaço, um vestígio de um abraço fechado. A mão abraça um lápis, um pincel. Os dedos tateiam um teclado, os periféricos são acariciados. A pele estende-se sobre a madeira do lápis, sobre a córnea do ecrã, sobre a tela da pintura, sobre o limite planar da escultura (Salvatori, 2017). Como uma película sensível de água, ela vibra e reflete o que a rodeia, pronta a agitar-se em ondulação que bem se pode tornar infinita.

3. Infinitude criativa

Entre a pele da pintura, uma casca frágil e logo ferida, escorrendo tintas e camadas vivas, e a mão da escultura, esta que se fere pela dureza dos materiais cortantes, entre as inércias e as densidades brutas que as artes pesadas reclamam. Entre as poeiras convocadas por um carvão, que se esmaga com suavidade e carinho pela aspereza de um papel lançado, estende-se um princípio geral de infinitude criativa (Maneschy, 2020).

É desta criação acesa que os quinze artigos reunidos neste número 35 da revista Estúdio nos falam, de um silêncio guardado e cúmplice entre artistas e as suas obras, que logo é entregue ao ruído da relação, da proposta, da intervenção, ou de outro modo, do posicionamento sempre, afinal, político.

4. Quinze artigos no número 35 da Estúdio

No artigo “Riscar o que interessa: a importância do erro na obra Gonçalo Barreiros” Orlando Miguel Gaspar Franco e Teresa Palma Rodrigues apresenta duas obras de Gonçalo Barreiros (n. 1978, Lisboa, Portugal). Explicam como, através do erro e da falha, estas obras, patentes na exposição WAIT, no Museu Berardo, em 2019 exploram as possibilidades plásticas da instalação. Uma destas obras, Sem título (William Tell Overture) é composto colunas de som, uma prateleira inclinada com um gira-discos, que toca repetidamente a abertura de Guilherme Tell, de Rossini. Outra peça, parecendo com rasuras a spray, trata-se afinal de escultura em ferro, pintado de preto, justaposta na parede com a sua espessura. A espessura de uma falha ocupa um intervalo percetível difícil, que ilude e contraria a legibilidade dos suportes, fazendo as narrativas vencerem níveis para uma nova referencialidade textual da escultura.Joana Gaudêncio Matos, no artigo “Scratching the Surface: participação e transformação social da cidade” propõe uma abordagem à obra do artista plástico Alexandre Farto aka Vhils (n.1987, Lisboa, Portugal). O seu projeto “Incisão”, incide na pequena comunidade indígena realojada na aldeia de Araçaí-Piraquara em 2000, a 50 quilómetros de Curitiba, Brasil. Usando o corte e o talhe das superfícies de madeira, Vihls produz imagens de grande impacto. Realiza imagens dos habitantes anónimos gravadas sobre portas de madeira e também escavadas na parede da Farmácia da povoação, para depois destas intervenções apresentar a exposição da residência na galeria Caixa Cultural, em Curitiba, em maio de 2014. Também em Hong Kong, em 2016, apresenta “Debris” no espaço Central Ferry Pier 4. Através de uma prática plástica decapante e destruidora, o artista descobre e deixa à vista uma extensa camada subcutânea, como que escarificada, revelando os rostos escondidos das comunidades, das mais pequenas às mais populosas.

No artigo “A ‘eternidade do presente’ na joalharia de Dulce Ferraz,” Isabel Ribeiro de Albuquerque aborda a obra da joalheira Dulce Ferraz (n. Lisboa, 1953). Influenciada pelas vivências madeirenses e pelas influências japonesas, nos quatro anos em que ali aprendeu artes como Chinkin, Rattan e Ikebana, e que contribuíram para as suas “Geojóias”, segundo Madalena Braz Teixeira, na exposição no Museu do Traje em 2003, ou as “joias de pousar”, segundo Rui Afonso Santos na exposição Abaixo das Nuvens, no Museu de História Natural de Lisboa em 2020. São espécie de sulcos que interrogam a representação e sobretudo a sua relação com os referentes, numa cartografia preciosa e intrigante. Como Hai kai, ou “territórios de brilho,” as peças condensam uma redução mundividente em que o ponto de fuga está no seu interior, e o ponto de vista lançado sobre o corpo entendido próximo, ou adivinhado a contemplar.

Marcos Rizolli, no artigo “Sempre Ela: a pintura de Cristina Troufa” debruça o seu olhar transatlântico sobre a jovem artista portuguesa Cristina Troufa (n. Porto, Portugal, 1974). Explorando a auto-referência, a artista representa-se explorando graduações expressivas e acentos cromáticos que deslocam os referentes para um onirismo transrealista, ora irónico, ora melancólico, saturado de sonoridades inaudíveis, por serem pintadas no espetro visível.

Isabel Carralero Díaz, no artigo “Lara Almarcegui: proyectos de tierra,” aborda alguns projetos de artista Lara Almarcegui (n. Saragoça, 1972). Dentro de um horizonte temático em que está presente a exploração da terra e do subsolo. Assim ocorre nas series “Opening an Empty lot” (Bruxelas, 2000), “Ex-Michelin Wasteland Opens to the Public” (Trento, 2006), “The Wastelands of the Norfolkline Open to the Public” (Haia, 2007), “Opening an Empty Lot, Removing a Fence” (Bordéus, 2009). Almarcegui adquire os direitos mineiros de uma pequena jazida em Tveitvangen (Noruega), em Buchkogel e em Thal (Áustria). Com esta licença Almarcegui obtém o exclusivo de investigar, prospetar e reclamar os minerais do subsolo até ao centro da terra durante nove anos. Assim também adquire licença de prospeção em Espanha, no Vulcão de Agras, em Cofrentes, Valencia, e expõe no IVAM (Institut Valencià d’Art Modern) 31 metros cúbicos de lava, 40 toneladas.

No artigo “Nano4814: más allá del graffiti” Alberto Santos Hermo aborda o artista Nano4814 (n. Vigo, 1978). É um artista ativo na área do graffiti e skateboarding, introduzindo o stencil grafitti depois de primeiros ensaios como writer (escritor) no âmbito urbano dentro do bombing, com os seus tags e throw-ups. Utiliza a sua imagem símbolo de um choco, el choquito, animal que é um aspersor de tinta natural e próximo da realidade piscatória de Vigo.

No artigo “Debris: un ejemplo de recolección,” Eva Monroy Pérez debruça-se sobre a obra de Julia Llerena (n. Sevilha, Espanha, 1985). Restos de objetos sem valor são coletados e apresentados metodicamente, relacionando escalas através de focos e projetores, expandido o micro em direção ao macro numa perspetiva de complexidade através das escalas e dos significantes, numa apropriação fractal da indexicalidade: o vestígio detém agora a máxima informação.

No artigo “Construcciones y performances II: los refugios de Alicia Framis” Montserrat López Páez aborda-se a obra de Alicia Framis (n. Mataró, Barcelona, Espanha, 1967). Erege construções simbólicas destinadas a debates e a alojamento temporário de artistas, como em Loneliness in the City, em Barcelona, 2000 em colaboração com o artista Dré Wapenaar. Uma plataforma neutra, onde artistas, arquitetos, e público puderam criar e debater ideias. Era uma tenda ovalada de 12×9 m com cinco quartos para os artistas participantes, sendo o resto espaço público. No projeto Arquitectura Prohibida (Nuremberga 2017) propõe-se Arquitectura para familias não binárias. E as instalações habitáveis prosseguem com propostas de uma interação interpelativa e poética, e ao mesmo tempo de provocação política dentro de temas urbanos, contemporâneos e atuais.

Luisa Paraguai, no artigo “Habitar ‘vazios:’ entre lugares e memórias de Alberto Bitar” debruça-se sobre o artista Alberto Bitar, (n. Belém, Pará, Brasil, 1970) e particularmente sobre o fotofilme “Vazios” (2012). A partir de um arquivo de quinze mil fotografias distribuídas entre as séries “Todo o Vazio” (2011) e “Qualquer Vazio” (2011). Do lado esquerdo o apartamento vazio de “Todo o Vazio” (2011) apenas com o desgaste nas paredes das divisões e do lado direito, os quartos de hotéis em “Qualquer Vazio” (2011), de poucos móveis, vestígios. É uma justaposição de vivências, passadas e presentes, numa iconografia do vestígio e da memória, da ausência e da síntese.

Andrea Davila Rubio, no artigo “Limitar, contener y proteger: tres funciones básicas de la piel y su representación en la escultura de Nora Aurrekoetxea” aborda a obra desta artista basca, Nora Aurrekoetxea (n. Bilbao, Espanha, 1989). Na exposição “Hard as horse hair, soft as feathers” (2020, Londres, UK), Aurrekoetxea Apresenta um cenário de corpos ausentes, dos vestígios íntimos y domésticos, na forma de planos fragmentados e suspensos na vertical. Em I bought flowers for myself, (2020, Galería Juan Silió, Madrid). Formas e objetos unidos, aglomerados, atravessados e soldados, exibindo uma organização do passado para o presente, como que exibindo a sua o vestígio de uma atuação passada.

No artigo “Disecciones: práctica y deseo en la obra artística de Daniel Tejero Olivares,” Leticia Fayos Bosch & Bartolomé Palazón Cascales abordam a obra escultórica e gráfica de Daniel Tejero Olivares (Univesidad Miguel Hernández de Elche) que procura as codificações associadas à sexualidade e aos discursos sobre o poder. Refletem-se os corpos significantes e as propostas de interferência sexualizada em enunciados descritivos portadores de uma síntese relacional pós genérica.

No artigo “Yoko Nishio: a mão como suporte possível de morte, vida e ação em tempos de pandemia,” Cláudia Matos Pereira apresenta as intervenções de Yoko Nishio (Rio de Janeiro, Brasil). É uma serie realizada diariamente, durante os confinamentos do COVID-19 em 2020. Neste período Yoko cumpria a quarentena no apartamento de sua mãe. Sem materiais artísticos, executa desenhos realizados sobre a palma da mão, com esferográfica, e fotografados. Resultou o Diário de Quarentena, publicado a partir de março, no Facebook, até dezembro desse ano. A introspeção como um contraponto do distanciamento generalizado.

No artigo “Ana Gallardo: De objetos apropiados, mudanzas perpetuas y otras orfandades” María Silvina Valesini apresenta a artista Ana Gallardo (1958, Rosario, Argentina). As suas instalações interrogam a propriedade objetual e o conforto das mobílias tantas vezes inúteis. A transitoriedade da vida e a procura de uma casa, marcada pela sucessiva mudança da artista com a sua filha pequena, de casa em casa de amigos, motivou a performance em que uma casa muito precária é rebocada de bicicleta pela artista durante 8 Km pelas ruas da cidade. São interrogações fortes, intensas feitas de uma relação muscular e háptica com a urbanidade contemporânea.

Na área do cinema, Marise Berta de Souza, no artigo “Um cinema feito de amor,” aborda o documentário “Cinema de amor” (2019), realizado por Edson Bastos e Henrique Filho. Os autores interrogam o documental num modelo híbrido ficção / documentário. Através do uso de telefones celulares como equipamentos de autorrepresentação fílmica, propõe-se o documentário como ferramenta de observação para contextos relacionais, numa procura de códigos dos novos discursos político-identitários. A subjetividade dos realizadores, um casal LGBT, debruçam-se sobre a fronteira do domínio privado e do domínio público. A resistência torna-se política quando há que resolver as tensões como o encerramento da produtora e a falta de verbas. A documentação é autorreferencial para um discurso de meta-linguagem.

Agora na área do cinema de animação, Eliane Muniz Gordeeff, no artigo “Um olhar feminino: María Lorenzo Hernández,” apresenta uma reflexão sobre obras desta realizadora, como El Gato Baila Con Su Sombra (2012), La Noche Del Océano (2015), Impromptu (2017), ou Esfinge Urbana (2020), todas de María Lorenzo Hernández (n. Torrevieja, Espanha, 1977). Utilizando grafismos e rotoscopia a par com desenhos de síntese a pastel e outros materiais, conseguem-se ultrapassar alguns dos limites materiais de expressividade plástica e temporal.

5. Novos corpos

Novos corpos, as novas propostas para um trânsito terrestre, entre impossibilidades políticas e autorizações poéticas. As obras jazem nos acervos, nas exposições, nas coleções, e aguardam a visita de um novo interveniente (Ortuño Mengual, 2017). O público, numa obra, é sempre coisa nova, até sempre, até existir humanidade. As propostas parecem assim repetir novos enunciados, um por cada novo participante numa dança participada na roda sem fim (Martin de Madrid, 2012). A imaginação não é já a que encerrou a criação, mas transporta-se pelos objetos, para cada nova participação, para cada novo amante no círculo aberto das artes.

Referências

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