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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.12 no.35 Lisboa set. 2021  Epub 30-Set-2021

 

Artigos Originais

Yoko Nishio: a mão como suporte possível de morte, vida e ação em tempos de pandemia

Yoko Nishio: the hand as a possible support for death, life and action in times of pandemic

Claudia Matos Pereira1 
http://orcid.org/0000-0002-8196-6995

1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes, CIEBA, Largo da Academia Nacional de Belas Artes 4, 1249-058, Lisboa, Portugal.


Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre uma série de desenhos da artista visual brasileira Yoko Nishio, realizados diariamente, durante a pandemia da Covid-19 no ano de 2020. Ela publicou um Diário de Quarentena, a partir do mês de março, em sua timeline do Facebook, que se prolongou até dezembro deste ano. Pretende-se analisar o seu processo artístico neste contexto, verificando como a Arte pode se manifestar, mesmo com a ausência de materiais específicos e de espaços usualmente necessários aos artistas. Yoko Nishio utilizou a sua própria mão como o suporte destes desenhos efêmeros, em uma poética artística de superação do caos quotidiano.

Palavras-chave: desenho; arte; Covid-19

Abstract

This article proposes a reflection on a series of drawings by the Brazilian visual artist Yoko Nishio, made daily during the Covid-19 pandemic in 2020. She published a Quarantine Diary, which has started in March on her Facebook’s timeline and lasted until December of this year. It is intended to analyze her artistic process in this context, verifying how Art can manifest itself, even with the absence of specific materials and spaces usually necessary for artists. Yoko Nishio used his own hand as the support of these ephemeral drawings, in an artistic poetics of overcoming everyday chaos.

Keywords: drawing; art; Covid-19

1. A mão e a Artista

Gosto das formas que se tornam outras.

- Júlio Pomar, 2014

A mais remota imagem representada do corpo humano - a mão na arte rupestre - data de 39.900 anos, antes do presente. A expressão da mão sobre a pedra é a marca da identidade que torna visível a existência do ser humano. A mão comunica, fala, se expressa. É gesto, sobrevivência. Denota habilidades, capacidades, atuação, movimento. É Presença - Vida - Resistência. Desde arte rupestre, ela foi representada, no decorrer da história da arte na pintura, escultura, desenho, gravura, fotografia, demais expressões artísticas, assim como no desenho gráfico e publicidade.

Neste breve estudo, a mão se apresenta como suporte para a Arte.

Yoko Nishio é uma artista visual que focaliza o seu olhar para as questões relacionadas à imagem e às periferias urbanas. Ela vive e trabalha no Rio de Janeiro, Brasil. Desenvolve a pesquisa “Pintura e materialidade: imagens da violência e do controle.” Mestre e doutora em Artes Visuais, é pesquisadora e professora na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ). Em seu doutorado dedicou-se ao tema “Desenhos nas paredes prisionais: traços, riscos e percursos.”

As suas três últimas séries de pinturas Praesidium (pinturas com base em imagens de assaltos registrados por câmeras de segurança, cujos pontos de vista dos cenários e narrativas pictóricas são provenientes destas máquinas), Bem-te-vi e Mirantes (pinturas com um jogo imaginário, de dispositivos de segurança que invertem os sentidos, ao confundir quem vigia e quem é vigiado) e Enquadramentos de Bertillon (onde os retratados, de frente e de perfil, estão de capacetes, gorros e bonés, como formas de escapar da vigilância urbana). Estas obras podem ser vistas no site da artista (Nishio, 2020a), disponível na bibliografia. Em todos os seus trabalhos é possível perceber um pano de fundo que é a preocupação com o medo e as formas de resistência, diante de certas situações-limite da sociedade urbana. Este artigo irá se debruçar sobre mais uma circunstância que assola a humanidade de forma global - a pandemia da Covid-19.

Defronte a este contexto, a artista inicia uma nova série em desenho, cujo processo se distingue dos revelados em sua pintura, mas que mantém a coerência de raciocínio e de conceitos expressos em suas propostas artísticas. Ela cria um Diário efêmero, onde a própria mão se torna o suporte pictórico de sua poética.

2. Nada a detém em “um Diário que nada retém

Esse Diário, se escrito fosse, poderia ter início com as palavras de Henri Bergson, em que o autor revela:

Tudo se passa como se, nesse conjunto de imagens que chamo universo, nada se pudesse produzir de realmente novo, a não ser por intermédio de certas imagens particulares, cujo modelo me é fornecido por meu corpo (Bergson, 1999:12).

Neste universo de Yoko Nishio, a parte do corpo em questão é a Mão - um suporte vivo, que emana calor, cuja textura deflagra movimento, maciez e sensibilidade. Difere-se de outros suportes inertes e frios.

A artista publicou um Diário de Quarentena, a partir de 22 de março de 2020, em sua timeline do Facebook (Nishio, 2020b). Relatou que uma amiga passava por um período de angústia e de falta de concentração, diante do cenário da pandemia. Um grupo de amigos então lhe propôs uma troca de desenhos através das redes sociais e, desta forma, Yoko Nishio desencadeou um ritmo próprio em seu quotidiano.

Segundo a artista, a sua cabeça era “também um torvelinho de medo e ansiedade” (Nishio, 2020b). Ela cumpria a quarentena no apartamento de sua mãe, longe de seu atelier e de sua casa. Distante completamente de seus materiais artísticos, não havia quaisquer cadernos, papéis, lápis ou tintas para que pudesse se expressar. Devido ao seu abatimento, levou dois dias para enviar um primeiro desenho, realizado a 24 de março, com uma caneta comum, esferográfica - desenho realizado sobre a palma da mão e fotografado.

Assim ela inicia um processo em que - nada a detém - em “um Diário que nada retém (Nishio, 2020b).

As formas da linguagem elaboradas pelos artistas em suas propostas, geralmente se utilizam de códigos próprios e específicos, como resultado inevitável da liberdade da arte (Kosuth,1991), diante das restrições e dos contextos. A arte contemporânea decorre deste exercício de autonomia e de diálogo com a realidade.

O Diário de Quarentena torna-se a poética artística do confinamento, para Yoko Nishio. Segundo Franco Berardi (2020: 142) “o ato poético é a emanação de um fluxo semiótico que inaugura no mundo tons não convencionais de sentido.” Naquele momento, havia a ausência de materiais para a expressão artística… e a artista escolheu parte do seu corpo como suporte, por que?

[…] alguns artistas usam seus corpos como material das artes visuais, com a intenção de colocar a arte num lugar mais próximo da vida. Assim, o corpo, forma e conteúdo ao mesmo tempo, instaura a primazia dos sujeitos humanos sobre os objetos. Ao enfatizar o corpo como arte, estes artistas impuseram a predominância do processo sobre o produto e deslocaram a produção de objetos representativos para a apresentação de ações (Melendi, 2006: 75).

Essa poética do quotidiano surge como ação e superação do caos - conforme uma entrevista realizada com a artista em janeiro de 2021, onde ela revela: “é muita transformação, é muita suspensão ao mesmo tempo de tudo e de todos. O desenho me colocou neste diálogo.” Ainda complementa: “não é uma espécie de controle, não é cura, é uma conversa com o medo” (Nishio, 2021).

A construção simbólica e a reorganização íntima através do desenho possibilitaram à artista a criação de uma nova atmosfera de significação, capaz de uma tentativa em suplantar o caos, utilizando o mínimo de recursos materiais - a caneta e a mão. Poeticamente, Paul Valéry aborda a questão do caos:

Vejamos então esse grande ato de construir. Observa, Fedro, que o Demiurgo, ao se dispor a criar o mundo, enfrentou a confusão do Caos. Todo o informe estava diante dele. E não havia, nesse abismo, um só punhado de matéria, que ele pudesse tomar em suas mãos, que não estivesse infinitamente impuro, composto de uma infinidade de substâncias (Valéry, 2006: 169).

O medo, a incerteza e a angústia surgiram em meio ao clima da pandemia e as oscilações diárias alteraram os ritmos das rotinas, alterando também as relações entre a mente e o mundo, afetando a todos.

Félix Guattari fala em “caosmose”: o processo de reequilibrar a osmose entre a mente e o caos. Hölderlin fala em poesia como vibração linguística, uma oscilação, uma busca de um ritmo afinado à evolução que envolve ao mesmo tempo mente e mundo (Berardi, 2020: 142)

Não só o sentido da desesperança, mas a sensação de que há um mal que nunca passa, como também o medo constante da contaminação, aliado às novas rotinas exaustivas de limpeza de objetos, de compras e protocolos, fazem com que o ser humano busque alguma forma de manter-se são.

Este projeto com o desenho era uma tentativa de equilibrar o caos interior- exterior através de um diálogo, afirma Yoko Nishio:

É uma espécie de conversa com o medo. Colocar o medo para conversar. Neste diálogo: rir dele, colocá-lo do lado, na convivência, como se fosse um diálogo com a iminência da perda de tudo…da perda - não de uma pessoa - mas de tudo, da perda de uma realidade! A gente começa a sentir a angústia da perda do presente mesmo, do que se tem, do que se é. Como a gente vai sair depois desta pandemia? (Nishio, 2021)

Neste período de quarentena, a artista dedicou-se também à leitura de dois livros Asfixia e Depois do futuro, de Franco Berardi. Ela comenta que as obras foram escritas antes da pandemia, mas se encaixam perfeitamente ao contexto, pois tratam de uma crise distópica, de uma crise de futuro, “de tudo isso que nós não somos, porque nós não temos futuro” (Nishio,2021). Segundo o autor, “a utopia demora a morrer no século que acreditou no futuro, e sua última manifestação é a utopia virtual” e complementa que esta “floresce viçosa e colorida na última década do século XX” (Berardi, 2019).

O ambiente virtual acaba por abrigar o Diário de Quarentena neste contexto e cenário pandêmico, como única possibilidade viável de exposição, em tempos de isolamento social. As redes sociais, plataformas digitais e demais tecnologias se sobressaem com maior força a nível mundial, em termos de trabalho, comunicação, divulgação e disseminação de conhecimento, devido ao confinamento.

2.1. O processo - Asfixia e Respiração

Asfixia - Desenho - Respiração. Entre o ritmo da Asfixia e da Respiração está o Desenho.

O processo desencadeia também uma cadência, uma melodia própria. A escolha do tema, o desenho na palma da mão, a fotografia, a lavagem das mãos, a divulgação da fotografia nas redes sociais. Sentir - Pensar - Desenhar - Fotografar - Lavar - Divulgar.

Ritualística - todos os dias Yoko Nishio desenhava na palma de sua mão. Era o primeiro ato realizado por ela, ao acordar, para tirar a “sensação de vulnerabilidade.” “Ter uma ação…ter um compromisso com o desenho, me equilibrava, me minha punha no eixo. Virou um rito de abertura do dia” (Nishio, 2021).

Esse contato, a partir de parte do seu corpo como suporte, tornou-se também uma experiência identitária, de registro de um tempo fugaz de existência. Sobre o corpo, a autora Patrícia Franca afirma:

Pelo simples fato de o artista criar sentidos pelo seu corpo, ele vive uma experiência única: a de ser testemunha de uma realidade ou de uma realização que a sua linguagem produz e reflete (Franca, 2006: 191).

Seus desenhos eram feitos rapidamente. Para ser um exercício diário, deveria ser fácil de se cumprir. Em média, ela gastava cerca de cinco minutos para realizá-lo e depois uns dois minutos fotografá-lo. Para Yoko Nishio, a mão é um suporte antigo da prática de apontamento, esquema, rascunho, anotação de um numero de telefone ou bilhete. A caneta esferográfica Bic, utilizada, servia como anotação e “escrita de um Diário em uma situação pandêmica, sem nenhuma pretensão de funcionar como material artístico.” Seria a ideia da escrita e “da retensão de uma visualidade” (Nishio, 2021).

Neste Diário de Quarentena o nascer e renascer íntimos estão presentes nos ritos quotidianos voláteis. Esta questão abordada no Diário é individual, no entanto, é também coletiva e sobretudo global.

Uma Categoria Híbrida - assim considera a artista, pois cada trabalho é a fotografia de um desenho efêmero. Yoko Nishio (2021) afirma que o projeto tem mais força como desenho, mas só pode ser visto através da fotografia. Há também a expressão de um pensamento compositivo. O que ela apresenta, está cortado. “Eu tenho fotos da mão inteira, mas eu não gosto. O corte é também um desenho.” A primeira vez que ela fotografou cortando, pensou: “… parece um vírus… a mão parece um pouco as espículas, as linhas do vírus…” Ela ficou satisfeita com o tipo de proporção do quadrado e ressalta que há também um pouco do pensamento fotográfico, mas é pouco. “A força da proposta consiste no ato de desenhar mesmo, sobre a mão - como uma problemática do desenho” (Nishio, 2021).

Para que o desenho funcionasse neste suporte, diante da escala reduzida, a artista tentou equacionar duas questões: o assunto (o contexto da pandemia) e a realidade de desenho. Optou por pequenos objetos corriqueiros de sua preferência, que permitiram uma melhor centralização na palma da mão, com um certo foco e “que falavam do toque” (Nishio, 2021).

O Toque - um olhar que mapeia superfícies. A artista está na casa de sua mãe e somente ela faz o contato com o exterior, mantendo protocolos de segurança necessários. Yoko Nishio (2021) descreve: “Eu não toco maçanetas, por exemplo, eu abro por cima. Eu mapeei as superfícies comuns da gente. Onde ela toca, eu não toco.” Essa foi a sequência que lhe trouxe maior satisfação em realizar. “Gosto muito das maçanetas, do interruptor, das torneiras, na verdade é o meu olhar para a mão atuando nas superfícies da casa.”

A torneira - que a acompanha todos os dias em seus ritos de lavagem das mãos, em tempos de pandemia - foi o primeiro desenho desta série (Figura 1). Desenhos de copos, vasos de plantas e santos (Figura 4), objetos simples (Figuras 2 e 6), maçanetas de portas (Figura 5) entre outros (Figuras 1 a 10), se seguiram, até o dia 31 de dezembro de 2020. Alguns desenhos desta série foram publicados na Revista Pandemônio_2_3 (Nishio, 2020c).

Figura 1: Yoko Nishio, “Série Diário de Quarentena,” desenho de caneta esferográfica sobre a mão da artista em 24/03/2020. Fonte: fotografia cedida pela artista. 

Figura 2: Yoko Nishio, “Série Diário de Quarentena,” desenho de caneta esferográfica sobre a mão da artista em 25/03/2020. Fonte: fotografia cedida pela artista. 

Figura 3: Yoko Nishio, “Série Diário de Quarentena,” desenho de caneta esferográfica sobre a mão da artista em 26/03/2020. Fonte: fotografia cedida pela artista. 

Figura 4: Yoko Nishio, “Série Diário de Quarentena,” desenho de caneta esferográfica sobre a mão da artista em 27/03/2020. Fonte: fotografia cedida pela artista. 

Figura 5: Yoko Nishio, “Série Diário de Quarentena,” desenho de caneta esferográfica sobre a mão da artista em 08/04/2020. Fonte: fotografia cedida pela artista. 

Figura 6: Yoko Nishio, “Série Diário de Quarentena,” desenho de caneta esferográfica sobre a mão da artista em 27/04/2020. Fonte: fotografia cedida pela artista. 

2.2. “Apagamento”

Neste exercício diário de Yoko Nishio, o ato de fixar é, ao mesmo tempo, o ato de perder, apagar.

O desenho transforma a palma da mão em uma testemunha efêmera da pulsação de vida, que rapidamente se torna abrigo de um vazio habitado.

“O apagamento é uma elaboração do risco de morte” (Nishio, 2021).

A artista está até hoje na casa da sua mãe, a Srª Maria do Socorro Lucena Nishio, desde o início da pandemia. Dentre os objetos, que são - todos da mãe - Yoko Nishio também a representou, algumas vezes, sentada (Figura 3) e através de desenhos do corpo e do rosto (Figuras 7 e 8).

No manuseio das mãos, a tinta manchava. Assim relembra: “Logo que eu lavava as mãos, também percebi que ganhei uma outra série, que era o Apagamento. Guardei as fotos dos desenhos lavados.” Ela relata que este exercício não foi rigoroso. “Os desenhos eram quase fantasmagóricos na mão. Desenhar era uma maneira de elaboração das perdas e da possibilidade deste risco iminente.” A artista complementa: “era uma maneira não de antecipar, mas de imaginar este risco. Imaginar fazendo, imaginar desenhando. Uma maneira de conviver com o medo, de conviver com um fantasma” (Nishio, 2021).

Na figura 8, a artista destaca: “a minha mãe sendo apagada é o que mais me dói: é o que me permeia nessa pandemia. Ela é o centro afetivo deste registro” (Nishio, 2021).

Os desenhos quotidianos efêmeros se apagaram, nesta ação de pela vida, através da higienização das mãos.

Figura 7: Yoko Nishio, “Série Diário de Quarentena,” desenho de caneta esferográfica sobre a mão da artista em 05/04/2020. Fonte: fotografia cedida pela artista. 

Figura 8: Yoko Nishio, “Série Diário de Quarentena - Apagamento,” desenho lavado, previamente realizado em caneta esferográfica sobre a mão da artista, em 05/04/2020. Fonte: fotografia cedida pela artista. 

2.3. Desenhos - Contagem do Tempo

Desenhos - Yoko Nishio realizou mais de trezentos desenhos. Primeiramente ela realizou uma série de desenhos figurativos (Figuras 1 a 8). Logo após, iniciou uma sequência com traços similares a uma “contagem de presos, um estereótipo de contagem de tempo. Eram exatamente sete traços, como se fosse uma semana fechando, ao final.” Linhas similares àquelas encontradas em algumas paredes de presídios, ou espaços prisionais. Sobre o desenho da Figura 9, ela conclui: “havia o momento em que eu me via prisioneira nesta condição, com aqueles traços…”(Nishio, 2021)

Após esta sequência, alterou os seus desenhos para a representação de números (Figura 10) e assim, ela explicou: “por exemplo, se eu estivesse no 19º dia, e então eu desenharia o 19.” Yoko Nishio revelou que talvez o seu trabalho tivesse uma referência ao artista japonês On Kawara (1933-2014), quando ela começou a desenhar só o número na palma da mão. Prolongou esta dinâmica até o dia 31 de dezembro, desenvolvendo uma numeração (Nishio, 2021).

Figura 9: Yoko Nishio, “Série Diário de Quarentena,” desenho de caneta esferográfica sobre a mão da artista em 22/07/2020. Fonte: fotografia cedida pela artista. 

O Tempo - A contagem nos desenhos terminou no número 351, no fim de dezembro. Yoko Nishio percebeu que errou, já que o seu primeiro desenho foi a 24 de março e o ano completo possui 365 dias. A contagem está incorreta. É provável que tenha ocorrido o erro na passagem da sequência dos traços (Figura 9) para a sequência numérica (Figura 10). Ela relembra que a sua tese de doutorado foi sobre o presídio e comenta sobre a situação de aprisionamento, em que a pessoa se sentia perdida no tempo.

Para Henri Bergson, o tempo é definido do ponto de vista de nossa consciência da duração. O tempo é a objetivação do ato sensível e consciente de respirar realizado por um organismo biológico. A respiração individual é concatenada com as respirações de outros, e é a essa correspiração que chamamos “sociedade”. Sociedade é a dimensão em que durações individuais são rearranjadas em um intervalo de tempo compartilhado (Berardi, 2020:144).

Pode-se refletir, a partir desta perspectiva supracitada, que se não há o “intervalo de tempo compartilhado”, como normalmente o ser humano está habituado, o isolamento e o confinamento, provavelmente, são capazes de alterar a sua noção de temporalidade. Yoko Nishio (2021) revela: “talvez a falha nesta contagem reverbere a própria condição de isolamento.”

Figura 10: Yoko Nishio, “Série Diário de Quarentena,” desenho de caneta esferográfica sobre a mão da artista em 21/08/2020. Fonte: fotografia cedida pela artista. 

Na Figura 10 observa-se a “pele funcionando como signo - a pele sendo maltratada pela lavagem” (Nishio,2021). A artista ressalta a sua preferência pelas fotos em que a mão se apresenta em descamação.

Esta topografia epidérmica é uma textura que delineia a presença daquilo que se desfaz em nós -a presença da impermanência.

Conclusão

A mão: suporte que abriga um desenho - como um flash do tempo. A temperatura, o suor que dilui e mancha os traços. A água, o sabão e o álcool apagam a história, as memórias do registro. A água sanitária descama, redesenha a pele, redesenha a vida. Tudo se desfaz em um apagamento, prevalecendo novamente a permanência da cor e do tônus da epiderme. Como diria Adélia Prado (2003) em seu poema A Serenata, de 1976, resta “a pele assaltada de indecisão.”

Deixai fazer, trabalho invisível. Mas a obra, por natureza, dá ao visível o que lhe pertence. Na fruição desse visível, o pôr a nu, tornado utilização, torna-se, também ele, obra. Obra que vive da tensão entre o que é conhecido e o que acaba de ser realizado e lhe escapa (Pomar, 2014: 35).

Esta indecisão quotidiana, este trabalho visível-invisível, aquilo que escapa pela condição do efêmero e o que transcende, é o caráter que permeia a obra Diário de Quarentena e lhe configura a força nesta tripla condição cíclica entre angústia, vida e morte - onde a ação se apresenta constante.

No contexto da Covid-19, o toque das mãos, pode levar ao contágio. A Arte sempre encontra meios de se manifestar. Yoko Nishio (2020b) revela: “E a mão, na sua tripla contradição, é o suporte possível de morte, vida e ação.”

Agradecimentos

A autora agradece ao Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes da Universidade de Lisboa (CIEBA), pelo apoio para este trabalho de investigação.

Referências

Berardi, Franco (2020) Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. São Paulo: Ubu Editora. ISBN-10: 8571260613 e ISBN-13: 978-8571260610. [ Links ]

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Recebido: 15 de Fevereiro de 2021; Aceito: 01 de Março de 2021

Cláudia Matos Pereira é artista visual e investigadora do Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes da Universidade de Lisboa (CIEBA), onde faz parte do Grupo de Investigação e Estudos em Ciências da Arte e do Património - “Francisco de Holanda.” As suas principais linhas de investigação são: Arte e território, Imagem e Cultura, Pintura, Arte e ecologia, História da Arte Brasileira. Email: claudiamatosp@hotmail.com Morada: Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes, CIEBA, Largo da Academia Nacional de Belas Artes 4, 1249-058, Lisboa, Portugal.

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